Bento XVI e a modernidade – um esclarecimento
Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Mario Vargas Llosa
Antes de continuar a análise da relação antagónica de Ratzinger com a modernidade e com os valores civilizacionais correspondentes a essa modernidade – a democracia, a tolerância, a prevalência da ciência e da razão em relação à fé, os direitos humanos,especialmente os direitos das mulheres e a liberdade de opinião e expressão, etc. – gostaria de relembrar aos nossos leitores que esgrimem como argumento da superioridade do cristianismo em relação ao islamismo o facto de existir liberdade de religião e não existir perseguição religiosa nos países de maioria cristã, que estão a cair numa falácia causal ou post hoc ergo propter hoc.
Isto é, não é por serem países de maioria cristã que tal acontece, mas simplesmente porque são países democráticos assentes num conceito de estado moderno, onde, depois de muitas lutas, algumas sangrentas, com a Igreja Católica, se conseguiu a separação religião estado que não existe na esmagadora maioria dos países de maioria islâmica.
Se olharmos criticamente para a História, a violência na defesa e imposição da fé que se associa actualmente ao Islão mimifica na perfeição o que acontecia no Ocidente quando esta separação não existia. A «ordem de divulgar a fé usando a espada» não é exclusivo do Islão, foi indissociável do cristianismo até muito na tarde na história e não foi abandonada por vontade da Igreja, foi imposta pelas transformações sociais decorrentes do Iluminismo, por sua vez herdeiro da Renascença e do humanismo renascentista. Iluminismo que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo, o alvo principal de críticas por Ratzinger na palestra da qual apenas os três parágrafos referentes ao Islão têm merecido análises mas que importa não esquecer, já que é esta crítica que nos permite apreciar a total dissociação de Ratzinger da modernidade e o seu manifesto desejo de retorno ao integrismo católico, isto é, à cristandade.
Apenas a laicidade inerente ao nosso modelo democrático impede que o fanatismo/fundamentalismo cristão se exprima da mesma forma que o equivalente islâmico. Basta pensar nas pretensões dos fanáticos cristãos americanos, da imposição de um direito baseado na «lei» bíblica, que prevê penas de morte para adultério, «sodomia», apostasia, heresia, aborto e demais «pecados», para confirmarmos que não existe qualquer diferença entre ambos os fundamentalismos, as suas manifestações apenas são diferentes porque se inserem em países com modelos políticos diferentes e a laicidade reprime as demências e as orgias violentas de fé a que temos assistido por parte dos fundamentalistas islâmicos!
A razão pela qual o Islão se mostra resistente à modernidade, isto é, à tendência geral de secularização, só pode ser entendida à luz do pós-colonialismo e da emergência do nacionalismo árabe, uma reacção à aculturação colonianista recuperando uma utopia – mais um «entre» bhabhiano (de Homi Bhabha), isto é, uma tentativa de recuperação de uma cultura desaparecida há séculos e como tal construída no imaginário – baseada no Islão político. Uma leitura de Khaled Ahmed ou mesmo Bassam Tibi ajuda a perceber porquê.
Por outro lado, em relação ao argumento tão gasto que já maça, que confunde laicidade com estalinismo ou maoismo, gostaria apenas de relembrar que o totalitarismo político não tem nada a ver com laicidade, na realidade é uma cópia fiel do totalitarismo religioso, caracterizada por um culto de personalidade do ditador – quasi considerado um «deus», basta pensar no culto a Lenin, Stalin, Mao e actualmente a Fidel ou Kim Jong II – e as ideologias políticas são dogmas inquestionáveis, verdades absolutas apenas questionadas por «hereges» merecedores de «fogueiras» sortidas. O totalitarismo político não dispensa sequer cerimónias «religiosas» como comícios políticos e demais rituais de comunhão em que os «fiéis» papagueiam palavras de ordem em tudo análogas a orações…
Assim, como já escrevi, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, assentam em três pilares:
1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.
A palestra de Ratzinger é uma ilustração do ponto 3, em que o «inimigo» é identificado com todos os que não aceitam a «supremacia» da razão. Razão que para Ratzinger, que distribui generosamente epitetos de irracionalidade a todas as mundivisões que não a sua, reside apenas no catolicismo. Apenas o catolicismo é racional e como tal a ele todos se devem submeter é tão só a mensagem que Ratzinger quis transmitir nesta palestra…
Assim, como para todos os totalitarismos, o homem livre e racional é o principal inimigo para Ratzinger, que declarou guerra à modernidade, isto é, à «ditadura do relativismo» decorrente do que apelida de «secularismo ideológico» e «profanidade total», a separação entre a igreja e o estado. Ratzinger que se lamuria estarem os fundamentalistas católicos sob o «jugo» de uma «ditadura» que o impede, cruzado empenhado contra as liberdades «imorais» e representante mor desses fundamentalistas, de impor a sua pseudo-moralidade a todos.
Assim, este papado tem sido apenas uma sequência de ululações que denigrem e rejeitam a liberdade, a democracia, a tolerância e o pluralismo, a tal «ditadura» do relativismo, pretendendo que só a obediência cega a um mito, Deus – para o ditador do Vaticano a sujeição total aos seus ditames imbecis – é a verdadeira liberdade.