Bento XVI e a palestra de Regensburg II
Há uns tempos, e a propósito da «guerra dos cartoons», escrevi que a liberdade de expressão é o valor em que assenta a nossa sociedade democrática e livre. Foi a liberdade de expressão que pemitiu a abolição da escravatura, a instituição da democracia, a igualdade de direitos para todos, independentemente de cor da epiderme, credo, sexo ou opção sexual. Não precisamos de «lições» de comportamento de sociedades que não respeitam os mais elementares direitos humanos, onde as mulheres são sub-humanos sem quaisquer direitos, a não ser o apedrejamento por suposto adultério, o mesmo destino dos homossexuais! Ou seja, estou plenamente de acordo com o Carlos Abreu Amorim (CAA), pelo que a hiperligação no post anterior está francamente mal colocada, facto pelo qual peço desculpa ao CAA.
No entanto, embora seja a primeira a defender o direito à liberdade de expressão do Papa – e a primeira a criticar os seus apelos para que a liberdade de expressão dos ateístas seja coarctada – não posso deixar de achar divertido que uns escassos dias depois de perorar contra esta, chamando cinismo à ideia de que é «um direito da liberdade ridicularizar o sagrado» – nem sequer admitindo que não exista «sagrado» para uma fracção considerável da população europeia – Ratzinger produza (cinicamente?) este tipo de palestra.
E considero complicado que um profissional da religião, que reitero ser na minha opinião o Papa mais inteligente que ocupou o trono papal, um especialista em teologia dogmática que dirigiu durante décadas a ex-Inquisição e analisou ao pormenor textos e declarações sortidas em busca de ideias «hereges», que analisou aprofundadamente o Islão em pelo menos dois livros, tenha sido simplesmente desastrado numa alocução que foi certamente vista e revista por outros profissionais da fé. Alocução que, dados o mediatismo da visita e a conjuntura actual, o Vaticano sabia ir ser dissecada e analisada por todo o Globo. Isto é, acho complicado que Ratzinger não previsse as reacções dos profissionais da fé da concorrência. Especialmente uns escassos meses depois da «guerra dos cartoons»…
Mas há muito que só os mais desatentos poderiam achar que o actual Papa, o autor de Dominus Iesus, que afirmou que o «verdadeiro» cristianismo apenas «subsiste na Igreja Católica», de facto considere que todas as religiões merecem ser igualmente respeitadas. Muito menos alguém, mesmo muito desatento, o poderia confundir com um defensor da liberdade de expressão…
Chamar «erotismo espiritual» ao budismo ou afirmar que o hinduismo se baseia num conceito «moralmente cruel», não é exactamente coerente com o seu apelo durante a guerra dos cartoons de que é «necessário e urgente que as religiões e os seus símbolos sejam respeitados». Diria que este apelo se refere apenas à religião católica e respectivos símbolos. Aliás, certamente por coincidência, no rescaldo da «guerra dos cartoons» uma revista ligada ao Opus Dei publicou um cartoon de Maomé francamente mais directo que aqueles na origem da dita guerra. Curiosamente muito na linha da citação do imperador bizantino Manuel II Paleólogo…
E de qualquer forma, os 3 parágrafos dedicados ao Islão, que Bento XVI lamenta profundamente terem sido mal entendidos, expressam apenas o pensamento de Ratzinger sobre o islamismo, abordado, por exemplo, no livro que ilustra este texto ou no «Values in Times of Upheaval» (Valores em tempos de crise).
Em síntese, concordo com os dois Carlos, o CAA e o Carlos Esperança, apenas acrescento que para além da liberdade de expressão, que apenas a laicidade assegura, é esta que importa e urge defender. E o ataque à laicidade foi o tema principal desta palestra de Ratzinger. O que passou despercebido dadas as reacções islâmicas e importa analisar!