Heresia ao longo da História
A Igreja Católica que hoje conhecemos surgiu pela mão de Constantino numa tentativa de unir pela religião um Império Romano em decadência. Em que todos os créus, pela autoridade divina do braço religioso do Império, a Igreja de Roma, seriam compelidos a lutar pelo Império e espalhar a fé.
Era necessária uma religião suficientemente forte para se impor aos povos dominados por Roma; para consolidar na crendice indissociável dos povos da época o poder conquistado pela força. Uma religião autoritária, rígida, inflexível, estabelecida mediante poderes, leis e morais terrenas. Assim começou o Catolicismo: um expediente político para tornar a Religião Imperial Católica Apostólica Romana a Toda Poderosa, nominalmente predicando o perdão mas de facto imposta e sustentada pela força da espada.
Constantino precisava criar a religião adequada aos seus propósitos hegemónicos e o catolicismo existente no início do século IV não tinha a autoridade suficiente para tal. Era necessário acabar com as grandes controvérsias doutrinais da igreja e estabelecer claramente não só a autoridade em questões de fé de Roma como um conjunto de dogmas em torno do qual se desenvolvesse a teologia necessária a Constantino para cumprir as suas ambições hegemónicas. Assim, Constantino convoca o concílio de Niceia (hoje Iznik, na Anatólia, Turquia), em 325.
O concílio de Arles, em 314, já tinha condenado uma «heresia» desastrosa para a Igreja, a dos Donatistas, que ameaçava alastrar perigosamente e «contaminar» a fé. Os «hereges» Donatos (dois bispos com o mesmo nome: Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia; e Donato, o Grande, bispo de Cartago) ensinavam que a Igreja deveria compor-se só de justos, reconhecidos pela sua vida pia e frugal; no momento em que fossem tolerados pecadores no seu seio deixaria de ser a Igreja de Cristo. Pior, diziam que o baptismo administrado por um sacerdote em estado de pecado, é inválido e que um bispo, se com um pecado manchando a respectiva alma, não pode crismar nem ordenar sacerdotes. Esta «heresia», somada à heresia máxima da pregada separação entre Igreja e Estado, era uma ameaça para a ambiciosa, pecadora e faustosa hierarquia cristã de forma que a sua supressão marcou o mote para os restantes concílios, a maioria deles destinados a erradicar pensamentos perigosos para a Igreja, pensamentos identificados como «hereges».
Assim, os pontos a ser discutidos no sínodo de Niceia foram:
- A questão Ariana,
- A celebração da Páscoa
- O cisma de Milécio
- O baptismo de heréticos
- O estatuto dos prisioneiros na perseguição de Licínio.
O primeiro ponto era igualmente o mais importante a ser clarificado. De facto, a controvérsia que urgia ser esclarecida tinha a ver com algo que incomodava a cristandade: era o seu mito divino e se sim como conciliar a divindade do Cristo com o dogma de fé num único Deus?
Especialmente porque Ário defendia que o mítico fundador da seita, Jesus, é apenas uma «criatura do Pai», não sendo, portanto, nem eterno nem divino. Insistindo em dizer que «houve um tempo em que o Filho não existia». O arianismo, a que aderiram muitos ilustres prelados, entre eles o bispo Eusébio de Cesareia, conhecido escritor da Igreja, ameaçava atingir proporções inadmissíveis, tão mais inadmissíveis porque sem a natureza divina do Cristo o cristianismo não era mais do que uma divisão do judaísmo.
Aliás, o anti-judaísmo, ou o anti-semitismo cristão, firmou-se com a tomada do controle do Império Romano, sendo o concílio de Niceia um marco neste sentido. Os posteriores Concílios da Igreja manteriam esta linha. O concílio seguinte, o de Antioquia (341) proibiu aos Cristãos a celebração da Páscoa com os Judeus. O estabelecimento da Páscoa foi o 2º ponto decidido em Niceia, em que foi acordado que a Páscoa se celebraria sempre no primeiro domingo a seguir ao 14º dia da primeira lua da Primavera, o 14º Nisan, e não no 14º Nisan, como os judeus e algumas igrejas cristãs o faziam.
O concílio de Niceia ilustra ainda o que acontece quando os teólogos tentam racionalizar o rídiculo. Assim como ilustra algo indissociável da teologia, uma crescente complexidade linguistica que pretende consolidar a autoridade e o poder da Igreja baralhando os mais incautos com uma linguagem hermética e assim pomposamente disfarçar a vacuidade das pretensões em que assenta a religião.
Mais concretamente, foi necessário recorrer a obscura e rebuscada linguagem para estabelecer a divindade de Jesus, conseguida através do recurso à pagã Trindade, ou deus(a) triuno. Faltava resolver como exprimir simultaneamente a unidade e distinção dentro da Trindade, o que foi feito através de uma manipulação judiciosa dos termos ousia (essência) e hypostasis (pessoa). Assim, a Trindade corresponderia a uma única ousia mas as distinções entre Pai, Filho e Espírito Santo eram estabelecidas por três hypostasis. Não era (nem é) claro como estes termos se aplicam na cristologia. Isto é, não só o Cristo para além da baralhação triuna tinha duas essências como falar na ousia divina unida com a ousia humana do mítico Cristo implica que toda a trindade encarnou…
Antes do concílio de Niceia physis e hypostasis eram habitualmente utilizadas para realidades concretas enquanto ousia detinha um significado mais geral e abstracto, sendo as três palavras usadas como sinónimos em muitos casos.