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O milagre do Simplício*

 

 

 

Simplício é bom rapaz. Crente furioso e católico compulsivo, acredita no poder imenso de tudo quanto é deidade ou santidade. Mas a sua fé não conseguiu, apesar de tudo, livrá-lo de um cancro na garganta. “Faça-se em mim segundo a Sua vontade”, resignou-se mas, no fundo, sabia que o Senhor não queria que ele, Simplício, morresse de cancro, tanto mais que é consabido que raras são as pessoas que falecem dessa patologia, sendo muito mais vulgar que se morra de doença prolongada. Ora, o Senhor, na Sua infinita misericórdia, tinha presenteado Simplício com um corriqueiro cancro, e não com uma mortífera doença prolongada, o que Simplício entendeu como um sinal de esperança. Sendo assim, entendeu não ser ofensivo para com o Senhor o recurso à Ciência, porém, sempre se foi prevenindo com toda uma parafernália de rezas, benzeduras, promessas, terços, novenas e outras actividades religiosas, que isto da Ciência não é muito de fiar, hoje dizem uma coisa e amanhã o seu contrário. O que é certo é que, após dezenas de avé-marias, outros tantos padre-nossos, genuflexões e quilos de cera, devidamente acolitados por doses cavalares de quimioterapia e radioterapia apontada à garganta, eis que Simplício recebe, do médico, a notícia de que o cancro estava devidamente controlado. “Graças a Deus!”, exclamou Simplício, desde logo desatando a planear o cumprimento das promessas feitas, logo que o estado físico lhe permitisse as preditas 157 voltas no joelhómetro de Fátima.

Mas nem tudo são rosas, e eis que, após uma TAC de vigilância, um médico regista uma qualquer anomalia na parte superior dos pulmões. Com uma diplomacia própria de um sargento instrutor, o pneumologista decretou: “Meu caro, isto ou é cancro ou tuberculose” sem aventar, sequer, uma terceira hipótese. Simplício entrou em compreensível pânico, já prevendo a transformação do ridículo cancro na temível doença prolongada. “Desta vez, já estou”, resignou-se. “Nem Deus me pode valer”. Mas a verdade é que Deus escreve direito por linhas tortas, como adiante se verá.

Simplício, embora resignado, tornou-se meditabundo e cabisbaixo. Deixou-se arrastar penosamente pelo caminho do que, no seu entender pouco, lhe restava de vida. E foi nesse estado patético de depressão quase a tornar-se crónica, que se apresentou na consulta de vigilância de Oncologia não sem que, previamente, tivesse prometido mais todo um rol de velinhas, missas, esmolas, genuflexões e, cereja em cima do bolo, uma peregrinação ao Vaticano, que Fátima lhe parecia preço pouco a pagar por tamanha graça, caso ela se concretizasse.

– Então, Sr. Simplício, como se sente?

– Mal, doutor. Muito mal. A última TAC revelou uma qualquer coisa nos pulmões, e desta já não me safo. Ou cancro, ou tuberculose. Ora, aplicando a Lei de Murphy, é cancro.

Franzindo o sobrolho com divertida estranheza, o esculápio retirou do envelope os documentos clínicos, que examinou atentamente. Depois, deixou que um sorriso se lhe abrisse, de orelha a orelha:

– Nada disso, Sr. Simplício. Ainda não é desta. O que o senhor tem é a parte superior dos pulmões queimada pela radioterapia. Nada de grave.

– Então… não é doença prolongada?

– Nem prolongada, nem doença, meu caro.

“Milagre!” exclamou silenciosamente Simplício. Embora sem certezas quanto à autoria do milagre, decidiu atribuí-lo ao São João Paulo II que, ao que parece, também estava no ramo da oncologia, para além da neurologia, o que se compreende já que, liberto, finalmente das preocupações pontifícias, tinha todo o tempo do outro mundo para estudar e se especializar em vários ramos da ciência médica.

*Baseado em factos verídicos.

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