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Etiqueta: Religião

30 de Junho, 2023 João Monteiro

REPÚBLICA LAICA

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Fomos, durante séculos, um país dolorosamente católico vivendo os horrores da Inquisição e o atraso no ensino científico. A subserviência do Povo aos clérigos habituados a dominarem a população crente e temente, agrilhoou o pensamento popular aos interesses do culto. 

Mais de um século volvido após a separação Estado/Igreja em 1911 (com um interregno no Estado Novo de Salazar, sendo a separação reatada após a Revolução de 25 de Abril de 1974 com a promulgação da Constituição da República em 2 de Abril de 1976), uma grande parte do nosso bom Povo ainda não conseguiu libertar-se do jugo da Religião, nem a Igreja quer desalojar da sua cabeça o poder temporal que sempre exerceu desde quando coroava reis a seu contento, e era, de facto, a dona da Europa. 

A América Latina, colonizada pelo espírito católico-ibérico desde os séculos XV e XVI, é paradigmática em termos do poder opressor da Religião sobre os povos (mas também da vingança letal de interesses da extrema-Direita que mata sacerdotes defensores dos pobres e oprimidos como aconteceu ao padre Romero, de El Salvador, em 24 de Março de 1980). 

No Chile, quando o ditador Pinochet, em Setembro de 1973, derrubou, com muito sangue, o socialista Salvador Allende (que fora eleito democraticamente) estabeleceu uma sangrenta ditadura, dizendo: “Estou aqui por ordem divina”. 

Fora da latinidade, Osama bin Laden apoiava actos terroristas em nome do mesmo Deus a quem orava Pinochet e a quem reza Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres, Cavaco Silva, Santana Lopes, Passos Coelho, Paulo Portas e José Sócrates… mas também Bush, Trump e Joe Biden, que não são católicos nem muçulmanos. 

Em Portugal, este nosso apego à religiosidade que preenche a cabeça da maioria de nós, pode explicar o facto de termos a presidir à República Portuguesa que (consta) é Laica… um empedernido católico que escolheu para sua primeira viagem oficial a visita ao Vaticano, e se vergou perante o Papa beijando-lhe a mão!… Barack Obama também visitou o Papa. Cumprimentou-o com um aperto de mão e de cabeça erguida, numa atitude de dignidade e igualdade entre chefes de Estado, que é isso mesmo que o Papa é: Chefe do Estado do Vaticano. 

Já tivemos a governar o país gente que foi mostrada demasiadas vezes a assistir a missas. Cavaco Silva e Santana Lopes usavam nos seus discursos frases como “se Deus quiser” e “graças a Deus” também demasiadas vezes, à boa maneira muçulmana. António Guterres, enquanto primeiro-ministro, numa entrevista que deu ao jornal espanhol El País (5/7/1998), disse esta pérola de sacristia: “Cada um será julgado por Deus de acordo com a capacidade de pôr os seus valores em benefício dos outros”. E o primeiro-ministro José Sócrates, em Setembro de 2007, assistiu à inauguração de uma escola pública em S. Martinho de Mouros (Resende) e benzeu-se na missa do acto medieval de benzedura daquele equipamento laico!

Temos hospitais públicos com nomes como: Santo António, São João, S. Marcos, S. José e Santa Maria. Eu sou assistido (e bem) no posto médico da Segurança Social de Rio Tinto, com o nome de: S. Bento. E no ensino particular encontrei o “Colégio das Escravas do Sagrado Coração de Maria”!… Que tipo de pai matricula ali a sua filha?! 

Vivemos, de facto, numa República Laica muito “sui generis”… e pelos exemplos citados da América Latina, só podemos concluir que a extrema crença em Deus pode tornar-se muito perigosa!

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

30 de Abril, 2023 João Monteiro

Afinal para que serve a arte?

Texto em resposta à censura da obra de Onofre Varela.

Onofre Varela é um homem da cultura. Conhecido intelectualmente pelos seus livros, assim como pelos textos publicados sobre ateísmo na imprensa escrita, é também reconhecido profissionalmente pelas suas
ilustrações e pelos seus cartoons que já estiveram em destaque em várias exposições e galerias.

Foi o caso deste mês, abril, em que os seus cartoons estiveram expostos na Bienal Internacional de Arte de Gaia. Porém, o que poderia ser um momento de celebração tornou-se numa situação de polémica diplomático-cultural com projeção mediática a nível nacional. O motivo foi um dos seus cartoons ter
sido retirado após o autor, a organização e os autarcas terem sido alvo de pressão por parte de membros da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) que, alegadamente, se terão sentido incomodados e ofendidos pelo desenho. Segundo o comunicado da própria CIL enviado ao presidente da Câmara Municipal de Gaia, citado pelo jornal Público, “[o cartoon] banaliza o Holocausto cometido pelo regime nazi e
diaboliza os judeus na sua relação com a Palestina”, acrescentando que a “estrela de David sobreposta no coração de uma imagem desenhada de Hitler é uma ofensa grave e indecorosa”.

Embora a decisão de retirada do cartoon tenha partido do autor, a verdade é que essa mesma decisão decorreu das pressões exteriores, conferindo ao caso um carácter de censura.

Para compreendermos o que está em causa, o cartoon visado é o que abaixo se apresenta:

Uma vez que o autor do cartoon, Onofre Varela, é não só associado da AAP como até é o seu vice-presidente, cabe-me, na qualidade de dirigente, emitir umas palavras sobre o tema.

Em primeiro lugar, quero expressar-me contra qualquer forma de negação ou menorização do que foi o Holocausto, um episódio negro e vergonhoso do século XX cujas raízes do preconceito remontam, infelizmente, a épocas anteriores. Em segundo lugar, afirmar-me contra a perseguição do povo hebreu, do mesmo modo que sou contra a perseguição de outros povos minoritários, pois revejo-me nos
valores Humanistas que defendem a segurança e paz para todas as pessoas e populações. Apresentado o meu posicionamento geral, passemos ao caso concreto.

Em causa está um cartoon de tipo caricatural, ou seja, um desenho que pelo exagero pretende passar uma mensagem. A imagem ilustra uma figura masculina representada por uma mescla de uma personagem judia e nazi em simultâneo. Ora, isto é deliberadamente um contrassenso, por representar na mesma figura o opressor e o oprimido, ou o tirano e a vítima. Se isto não fosse suficiente para nos fazer parar e questionar sobre qual o tipo de mensagem, o autor fez acompanhar a figura pela frase “Israel trata os palestinos com o mesmo desrespeito com que Hitler tratava os judeus”. Ou seja, o autor pretendeu lançar um alerta, ou criar uma forma de questionamento, sobre a perseguição política
e social, de quase genocídio, que Israel tem vindo a fazer em território palestiniano (interpretação minha). As obras para serem devidamente entendidas devem ser analisadas no seu contexto histórico, e este cartoon foi desenhado precisamente numa altura em que abundavam notícias nos meios de comunicação social sobre os atentados do governo de Israel contra os palestinianos. Perante as evidências,
o autor enquanto artista limitou-se a representar a realidade na forma a que está habituado: através do desenho. O facto de a forma escolhida ter sido um cartoon caricatural remete para a sátira e a crítica de costumes, portanto para a reflexão crítica de um evento sociopolítico.  

Terá a CIL motivos para se sentir incomodada ou ofendida? Devido à alusão ao nazismo na figura, por motivos históricos, até poderia concordar. Porém, a representação num todo (texto e imagem) vai além disso. Mais do que uma crítica, é uma denúncia, um alerta, uma chamada de atenção para o que acontece lá ao longe (mas não assim tão longe). Não se trata de antissemitismo. Isto são factos: o governo israelita expandiu o seu território unilateralmente, usurpando, ocupando e colonizando território palestiniano; tem atacado, perseguido e assassinado palestinianos que defendem o seu território; entre os membros da
população morta ao longo dos anos, já se perdeu a conta ao número de crianças que viram a sua vida ceifada nesta guerra por terra e fronteiras, que mais não é do que uma guerra por poder. Contra estes factos é que a CIL deveria sentir-se incomodada, e não com um desenho.

Isto leva-nos à questão do título: afinal, para que serve a arte? Esta pergunta tem um conjunto alargado de possíveis respostas. Podemos dizer que a arte serve como forma de comunicação e de expressão; reflexão e crítica; inspiração e estímulo criativo; entretenimento e deleite estético; preservação de património cultural e histórico; transformação e ativismo social, apenas para dar alguns exemplos. A boa arte consegue mexer connosco, suscitar sentimentos e emoções do âmago da nossa pessoa. Olhando para o cartoon de Onofre Varela e para as reações por ele geradas, podemos então dizer que a arte
e o artista cumpriram o seu propósito.

Termino com um abraço de solidariedade ao nosso estimado Onofre Varela.

Este caso nas notícias:

https://www.publico.pt/2023/04/18/culturaipsilon/noticia/cartoon-retirado-bienal-gaia-apos-criticas-comunidade-israelita-2046595

https://www.publico.pt/2023/04/21/culturaipsilon/noticia/presidente-associacao-jornalistas-considera-lamentavel-censura-cartoon-onofre-varela-2046925

https://cnnportugal.iol.pt/videos/uma-ofensa-grave-que-menoriza-o-horror-e-a-tragedia-do-holocausto-cartoonista-onofre-varela-retira-cartoon-apos-polemica-com-comunidade-israelita/643ffb6e0cf2dce741b55724

https://observador.pt/2023/04/20/bienal-de-gaia-cartoonista-onofre-varela-refuta-acusacoes-da-comunidade-israelita-de-lisboa-e-ataca-israel/

https://portocanal.sapo.pt/noticia/325186

https://www.jn.pt/artes/cartunista-explica-que-retirou-obra-de-exposicao-para-nao-provocar-guerras-16205765.html/

23 de Dezembro, 2022 João Monteiro

A confissão

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa dividido em duas partes. Em baixo podem encontrar o texto completo.

Parte I:

Da minha meninice de escola primária, lembro que um dia fui levado em grupo para a igreja. Não sabia ao que ia. Dentro do templo formamos duas filas em frente de duas cadeiras de grande espaldar, onde se sentavam dois padres, um em cada lado da nave. Era a primeira vez que entrava numa igreja. Vi os meus colegas da frente das filas ajoelharem quando chegavam junto do padre. Entre eles havia uma troca de palavras, para mim imperceptíveis, e comecei a sentir-me inquieto. Não fazia ideia do que iria acontecer quando chegasse a minha vez. Sentia uma brasa no peito a queimar-me por dentro. Chegado o momento de ficar em frente do padre, fiz o que vira fazer. Ajoelhei e esperei o que viesse… sem fazer qualquer ideia do que poderia vir!

O padre, de queixo enfiado no peito, disse algo em tom de voz tão baixo, que não percebi. Ele usava barba e bigode que lhe tapava a boca impedindo-me de ler o movimento dos lábios. Mantive-me em silêncio a olhá-lo, siderado, sentindo o cheiro a naftalina que o seu hábito branco exalava.

Ele levantou a cabeça com lentidão e olhou-me. O coitado deve ter visto a expressão mais aparvalhada de toda a sua vida, e imagino que repetiu o que acabara de dizer e que dessa vez percebi:

– Diz a confissão. – Pedido estranho!… Não fazia ideia nenhuma do que ele queria que eu dissesse…

– Não sei. – Respondi, com a boca seca pelo nervosismo já transformado em pânico.

Nunca tinha experimentado aquilo, nem sabia o que haveria eu de confessar! Haveria algum acto praticado, do qual eu deveria desculpar-me àquele padre?!…

Senti que o dia, até aí solarengo, se transformou em tormenta. Invadia-me um negrume; não sabia o que era a confissão… e encontrava-me sozinho no mundo sem ter alguém que me pudesse socorrer na aflição que ali se abatia sobre mim.

Salvou-me o que o sacerdote disse logo a seguir:

– Então vai para casa aprender, e quando souberes volta cá.

Fez-se Sol na minha alma! Levantei-me rapidamente sentindo-me leve… e saí dali.

Nunca quis aprender a confissão, nem tive vontade de voltar a entrar numa igreja!…

Esta experiência de infância obriga-me a acrescentar algo mais ao discurso. Ela levou-me a pensar, já em idade adulta, na estratégia usada pela Igreja para prender a consciência das crianças mais tenrinhas ao credo católico, com a finalidade de acorrentar aquelas almas à fé. No meu caso particular essa estratégia funcionou ao contrário. Repeliu-me… soltou-me, em vez de me prender.

O que a minha consciência me disse desta experiência, relatarei na próxima edição, porque para esta já esgotei o espaço… 

(Continua)

Parte II:

Aquela estranha atitude do professor primário conduzir os alunos para a igreja com o intuito de as crianças se confessarem (“estranha atitude” digo eu, hoje. Na época era uma obrigação decretada pelo Estado Novo de Oliveira Salazar. Lembremos que estávamos em 1952) levou-me, muito mais tarde, já em idade de ter pensamento próprio, a este raciocínio:

Tenho dúvidas de que uma criança de oito anos entenda o que é a “confissão católica”. Provavelmente, nem uma boa parte dos adultos beatos que desferem punhadas no peito a entenderá.

Para existir uma confissão, no sentido de se obter um perdão, tem de, antecipadamente, existir um delito que justifique aquele acto de confidência (e pura fé) a um sacerdote. E depois, esta confissão do delito não o elimina… pois é necessário compensar a vítima que prejudicamos com a nossa acção delituosa. Essa função de julgamento, condenação, absolvição ou perdão, pertence aos tribunais… não à Igreja!

A função da Igreja no acto da confissão está a outro nível. Enquanto que a minha culpa é redimida após uma conversa com quem desrespeitei ou prejudiquei, sanando o conflito (ou é condenada por um tribunal que me leva a expiar com prisão ou multa, a falta que tive) a confissão católica remete o perdão da minha falta com alguém, para a responsabilidade de Deus!… Sinto-me perdoado pela divindade da minha crença… mas aquele a quem prejudiquei continua prejudicado sem ser ressarcido dos danos que lhe causei… porém, eu fico na maior leveza de consciência porque Deus me perdoou!…

Isto é, simplesmente, indecente!… É de um egoísmo extremo, premiando o prevaricador e esquecendo o prevaricado. Há na confissão católica uma atitude psicológica que será positiva para o faltoso, podendo este, eventualmente, emendar o erro e jamais voltar a cometê-lo (do que duvido)… mas o outro, aquele a quem o faltoso prejudicou, continua prejudicado.

Era este tipo de “confissão a Deus” que queriam de mim aos oito anos de idade, envolvendo-me, contra a minha vontade, num acto que eu desconhecia!… Acto puramente religioso, de fé, primitivo e sem nexo para quem tenha dois dedos de testa!… Era assim (e se calhar ainda é) que a Igreja pescava crentes para fornecer a sua lota. No meu caso partiu-se a linha e perdeu-se o anzol com o isco, pois não voltei à igreja!…

O sentimento de culpa que resulta de uma transgressão, só poderá ser anulado mediante uma reconciliação com o outro num processo de pacificação. Esta é a naturalidade da resolução de um conflito. Porém, se o transgressor for um crente na divindade, nessa tentativa de reconciliação entra um outro elemento estranho ao problema, já que a reconciliação envolve a relação com Deus!…

(Se você, leitor, é crente e se sente bem depois de ter confessado os seus maus actos a um sacerdote, pensando estar perdoado pelo deus da sua crença… óptimo. Isso é muito bom para si!… Mas não se esqueça de falar com quem prejudicou, apresentar-lhe as suas desculpas… e indemenizá-lo, se for caso disso. Está combinado?… Tome lá um abraço)

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Hands off my tags! Michael Gaida por Pixabay
21 de Dezembro, 2022 João Monteiro

Cirilo I e a Guerra de Putin

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa.

No suplemento cultural “La Lectura” do jornal espanhol “El Mundo” (edição do último dia 23 de Setembro), leio uma entrevista que a escritora russa exilada em Berlim, Liudmila Ulítskaya, de 77 anos, deu à jornalista Marta Rebón. Acabada de ser premiada, Liudmila considera que o prémio “foi um raio de luz no estado de depressão que compartilho com muitos compatriotas”. A escritora diz que hoje muitos agentes culturais se perguntam “como pôde acontecer que a Rússia, que no período posterior à Segunda Guerra Mundial foi líder do movimento pela Paz no Mundo, se convertesse de repente no emblema da agressão, declarando guerra a um Estado vizinho sempre considerado como amigo e habitado por um povo irmão?!”. 

Confessa que as relações humanas lhe interessam muito mais do que as relações estatais e que é fiel a  “uma ideia que me acompanha desde os meus estudos de genética: toda a actividade cultural humana, desde os seus inícios, é de carácter global. E sob esse ponto de vista carece de entendimento relevante o modo como se construíram as relações entre a Rússia e a Europa”. Nesse sentido, a escritora considera que a guerra iniciada pelos seus compatriotas é um caso muito sério que “minou a nossa esperança de que a Rússia alcance, algum dia, um lugar digno entre o grupo dos estados respeitáveis”. 

Sobre as relações da Igreja Ortodoxa com o Kremlin, Liudmila considera que na Rússia a Igreja está ligada ao poder político, concluindo que “o Cristianismo oficial depende do Estado para obter dinheiro e todos os privilégios. Entristece-me ver que alguns hierarcas ortodoxos apoiam a guerra… mas é lógico”. 

Esta entrevista remeteu-me a memória para a tentativa de o Papa Francisco I chegar à fala com Putin, cerca de dois meses após a invasão da Ucrânia, mas sem sucesso. Porém, conseguiu falar com o Patriarca do Cristianismo Ortodoxo, Cirilo I, cuja conversa o Papa reportou a um jornalista italiano: “Falei com ele durante 40 minutos por tele-chamada. Nos primeiros 20 minutos, com uma lista na mão, ele leu todas as justificações para a guerra que Putin move contra a Ucrânia. Ouvi tudo e respondi que não entendia nada disso… que não somos clérigos de Estado e não podemos usar o discurso político, mas sim o de Jesus”. 

Cirilo está do lado do invasor e não só culpa o invadido… também afirma que o “Estado Russo é o legítimo líder do Ocidente”. O patriarca do Cristianismo Ortodoxo e chefe da Igreja Russa é amigo íntimo de Putin desde que este era agente da KGB. Tem um estilo de vida extravagante, colecciona relógios suíços de valor elevado (algumas peças atingem os 30.000 euros), possui uma frota de carros alemães topo de gama e mantém um magnífico palácio junto ao Mar Negro. 

Rematando este pequeno esboço da personalidade do dono da Igreja Russa, falta dizer que ele se afirma como “o grande imperador e herdeiro legítimo do Cristianismo do Império Romano e de toda a Cristandade”. Um pensamento caracteristicamente medieval, embora situado no século XXI, aliado a outro candidato a imperador arrancado da mesma medievalidade e sentado no trono do Kremlin!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Joachim Schnürle por Pixabay
16 de Dezembro, 2022 João Monteiro

Agir em nome de deus

Texto de Onofre Varela, previamente publicado no jornal Alto Minho. A crónica inicial estava dividida em duas partes, que agora aqui replicamos em conjunto.

Parte I:

Peguei no livro “La fé explicada”, de Leo J. Trese (Patmos, Libros de Espiritualidad. Ediciones Rialp, Madrid, 2001. 20ª Edição) e fiquei preocupado com uma passagem do texto onde o autor dá conta do seu pensamento religioso, o qual, no mínimo, dá para preocupar qualquer alma, mesmo que essa alminha seja ateia… ou principalmente se o for. Resulta evidente que tal preocupação só é possível desde o momento em que o leitor se interroga sobre o que leu… se não se interrogar a preocupação não existe.

Depois de o autor nos afirmar que fomos criados por Deus, sem nos explicar nada sobre o processo criativo nem referir os materiais usados para conceber a obra que terminou nesta perfeita máquina pensante que somos todos nós, confronta-nos com esta inquietante pergunta: “Para que nos fez Deus?”.

A resposta dá-a ele mesmo logo a seguir, antes que nos afoguemos na dúvida: Deus fez-nos “para mostrar a sua bondade. Dado que Deus é um ser infinitamente perfeito, a principal causa pela qual faz algo deve ser uma razão infinitamente perfeita”.

Depreendemos, portanto, que Deus nos criou para poder demonstrar que é bondoso. Se nós não fossemos criados, Deus não teria a oportunidade de demonstrar a sua imensa bondade, porque a restante criação é composta por bestas… isto é, não são seres dotados de capacidades intelectuais que lhes permitam reconhecer e apreciar a excelsa bondade do Criador. Então devemos concluir que Deus nos criou para sua auto-satisfação?!… Para alimentar a sua vaidade de poder ser reconhecido como bondoso?!

Ora… sendo a vaidade um pecado, na óptica do mesmo Deus, ele começa por pecar na sua intenção de nos criar!… Mas, sendo Deus um ser “infinitamente perfeito”, então devemos concluir que a vaidade, afinal, é uma virtude divina!

O seu discurso continua com a demonstração da pequenez dos homens perante Deus, e afirma que fazer algo bem feito “é fazê-lo por Deus”.

Segundo este raciocínio de Leo J. Trese, quando alguém ajuda o próximo com a única intenção de ser útil, alheando-se de que aquilo que faz, só o faz por superior desígnio de Deus, o acto de ajudar não é perfeito, mesmo que tenha alimentado um faminto, salvo um náufrago e vestido um nu!

Se no mesmo momento de agir, o autor da acção não pensou que a sua atitude era exclusivamente tomada por excelsa vontade divina e em nome de Deus, não sei se o faminto se saciava, se o náufrago se salvava e se o nu se agasalhava!…

Esta é a conclusão que me foi possível atingir (talvez entre muitas outras conclusões possíveis) do discurso deste padre católico norte-americano que escreveu um “best-seller” que em 2001 já ia na vigésima edição… por isso, muitíssimo cotado na tribo católica… mas que lido por quem não alinha em certezas de fé, dá matéria para conclusões inquietantes, como veremos na próxima edição.

Parte II:

Pelo exposto no último artigo, podemos concluir que, sob o ponto de vista de Deus (a crer no padre católico norte-americano Leo J. Trese, autor do livro La fé explicada), ajudar o próximo sem a intenção reconhecidamente divina, fazê-lo apenas pelo mais elementar sentido de fraternidade para ajudar o outro quando ele precisa, não tem ponta de interesse nem réstia de valor. Deus alhear-se-à destas práticas solidárias, se elas não forem executadas, expressamente, em nome de Deus. Aquele que tem um comportamento cívico exemplar, bem pode ir às urtigas e deitar-se a afogar, porque não passa de uma autêntica nódoa se não tiver bem gravado na sua mente que só é exemplarmente cívico se as suas cívicas atitudes forem conscientemente tomadas em nome de Deus!

“Atitudes cívicas” é o meu modo de entender “algo bem feito”; o autor não se refere à qualidade da atitude… ele apenas diz: “Fazer algo bem feito, é fazê-lo em nome de Deus”. Esse algo por si referido não tem que coincidir com o meu conceito de “coisa bem feita”.

Então, sendo assim, podemos concluir que os activistas religiosos islâmicos, autores do desvio de dois aviões cheios de passageiros, que fizeram explodir contra as Torres Gémeas de Nova Iorque cheias de gente, porque o fizeram em nome de Deus, fizeram-no por uma razão infinitamente perfeita… (?!). Fica esclarecido que quem mata em nome de Deus, convencido de que é isso que Deus quer (mesmo sabendo-se que, por ser inexistente, Deus não quer, nem pode, coisíssima nenhuma… os homens é que querem e podem, e tanto são bons como maus em nome da inexistente divindade) porque assim interpretou as suas vontades bíblicas ou corânicas, não é louco nem terrorista assassino; apenas cumpre, e bem, pelos vistos, os superiores desígnios de Deus!

Bem sei que o discurso da prática do bem em nome de Deus não passa de um modo de prender as mentes dos crentes à divindade, impedindo os desvios nos actos de fé que alimentam as Igrejas e as seitas religiosas, fidelizando o crente.

Mas este “meu saber” é baseado no meu raciocínio humanista de ateu. Os crentes não raciocinam assim e bebem o discurso religioso como se fosse água da mais pura e cristalina, mesmo que esteja envenenada!…

Não fui além da página 16 na leitura da prosa do padre Trese (o livro tem 632 páginas) e vi, não só, justificados e abençoados todos os actos terroristas cometidos em nome de uma religião e de um deus, como ficava esboçada a ideia de que os semeadores do terror perpetrado em nome de Deus estão no caminho da beatificação!

Só um louco produz um discurso deste teor, e é demasiado comum ouvi-lo da boca de agentes religiosos que dominam o pensamento de um imenso número de crentes… e que, por isso mesmo, constitui um facto assustador!…

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

7 de Novembro, 2022 João Monteiro

A Guerra

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na Gazeta

Na Europa alastra uma guerra que na Ucrânia ensombra a vida de crianças, mulheres e homens, e de muita gente com idade avançada que mal consegue deslocar-se com a intenção de fugir à morte violenta, não sabendo como nem para onde ir, na expectativa de conservar a vida.

Para trás ficam ruínas de cidades com corpos mortos nas ruas como assinatura do Exército Russo apostado em cumprir as ordens do seu chefe supremo Vladimir Putin, na aniquilação de um povo e de um país. Exército que também comporta cerca de 10 mil (número anunciado pela imprensa) assassinos profissionais Chechenos, aos quais estão colados os adjectivos de sanguinários, cruéis e impiedosos.

A Igreja Católica tem como líder um homem com um carácter único, impossível de encontrar, sequer parecido, na colecção de Papas recentes. Francisco I (F1) tem demonstrado ser um homem comum, sem tiques de superioridade nem de figura cimeira, dispensando mordomias habitualmente concedidas a um Papa como se fosse um animal raro com o rótulo de “representante de Deus na Terra”.

F1 tem-se afadigado na tentativa de convencer os responsáveis pelo fazer da guerra a fazerem o contrário: a desfazê-la!…

“A guerra é sempre cruel e desumana” disse F1 em reacção às notícias do massacre de Bucha, e afirmou-se “disposto a fazer tudo o que puder” para que se ponha fim a esta guerra tão estúpida por todas as razões e mais uma: a de russos e ucranianos serem povos irmãos.

Considerou, até, viajar a Kiev ou encontrar-se no Médio Oriente com o líder da Igreja Ortodoxa Russa que tem relações de amizade com o ditador Vladimir Putin, candidato a imperador em tempo de não haver impérios.

No plano diplomático F1 está a tentar contribuir para o fim desta guerra ignóbil como são todas as guerras e cujos resultados são sempre a crueldade da morte impossível de se entender por quem defende a Paz. A realidade deste conflito, por se encontrar em variadas geografias diferentes das nossas, tem alicerces que se aprofundam em situações sociais, históricas e antropológicas muito diversas das que nos são familiares no Ocidente e que ditaram a nossa formação humanística.

Esta realidade faz com que o Papa e outros agentes políticos apostados no fim da guerra, tratem este conflito com pinças, evitando ferir sensibilidades tão irritáveis. Nesse sentido F1 já cancelou o seu esboçado encontro com o patriarca Ortodoxo Cirilo (acusado de ter ligações com a KGB durante boa parte do período soviético), o qual apoia a invasão Russa da Ucrânia!

O diálogo inter-religioso nunca foi fácil. E se pode ser compreensível a dificuldade encontrada no tratamento do tema entre credos com origens e filosofias diversas, como, por exemplo, entre Cristãos e Islâmicos extremistas, já se me afigura de difícil compreensão a discórdia sobre a “legitimação” da guerra entre dois credos Cristãos… pois, sendo Jesus Cristo o mesmo defensor da Paz e o veio-rotor de ambos os credos (Católico e Ortodoxo) na defesa da concórdia, da fraternidade e do amor concedido ao outro do mesmo modo que o desejamos para nós… resulta muito difícil compreender a tomada de posição a favor de Putin – invasor cruel da casa do vizinho – por parte do líder de um ramo do Cristianismo.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

25 de Outubro, 2022 João Monteiro

Honestidade papal

Texto de Onofre Varela

Em Janeiro de 1999 a cadeira de S. Pedro estava ocupada pelo Papa João Paulo II (JP2).

Em alguns dos seus discursos dirigidos ao mundo, eu sentia que o Papa usava de alguma honestidade intelectual.

Particularmente em dois deles, essa honestidade foi tão notória que não me parecia ser o discurso de um Papa tradicional… pelo menos não era habitual ouvir tais palavras saindo da boca de personagens com responsabilidades eclesiásticas.

Nesse dia, JP2, usando de honestidade intelectual, tentou pôr as coisas nos seus devidos lugares colocando a crença numa prateleira própria, mas com vasos comunicantes com a prateleira da Ciência.

Disse ele que o céu não é um lugar paradisíaco situado algures para lá das nuvens, mas que é, isso sim, uma boa relação psicológica com (a ideia de) Deus; e que o inferno é a total ausência dessa relação.

Foi um discurso que por me parecer autêntico eu aplaudi, e que vinha na sequência de um outro onde JP2 afirmara que “Deus não é um velho com barba”, mas sim “uma relação psicológica com a ideia da divindade”. Totalmente certo!

Finalmente eu ouvia um discurso sério saído da boca de um Papa!…

Recordo que fazia uma viagem de automóvel quando ouvi estas afirmações de JP2 num bloco noticioso da rádio e, entusiasmado com a honestidade do Papa, esperei por notícias bombásticas nos jornais do dia seguinte… mas nada aconteceu!

Nesse dia havia um qualquer jogo de futebol entre duas equipas consideradas importantes, num qualquer campeonato também importantíssimo para a tribo do futebol, e a imprensa deu destaque ao jogo da bola em todos os dias da semana, esquecendo o discurso do Papa! É sempre assim… as coisas verdadeiramente importantes para o pensamento, são atropeladas pelas notícias futebolísticas que os responsáveis pela informação jornalística colocam em nível superior, exaltando-as, dando-as a comer aos consumidores ávidos do supérfluo, esquecendo o que realmente é importante (ou devia ser) para o intelecto de qualquer cidadão.

O jornal Público foi o único diário nacional que noticiou o discurso do Papa, mas com pouca visibilidade. Acabei por me informar mais e melhor na imprensa espanhola, pela qual também fiquei a saber que os padres Dominicanos se apressaram a divulgar diversa leitura do discurso papal, reafirmando as tradicionais imagens do céu paradisíaco, do inferno medonho e tenebroso, e da figura de Deus com barba alva, tal e qual como foi pintado pelos artistas da Idade Média e da Renascença.

E quando Ratzinger assumiu o seu papel de Papa no teatro da Santa Sé, tratou de oficializar as tradicionais imagens de fé medievais e despediu o director do Observatório Astronómico do Vaticano, alegadamente por ter apoiado JP2 na recuperação da memória de Galileu Galilei na onda de perdões que varreu a Igreja Católica em 2000, o ano do seu jubileu.

Para Ratzinger, Galileu não é recuperável… e cá para mim, Ratzinger (todos os “Ratzingeres” deste mundo e da Igreja) não têm recuperação possível!

O trono do Vaticano, abandonado por Ratzinger que resignou ao cargo, foi ocupado por Mário Bergoglio (Francisco I) em Março de 2013, que se mostrou um homem mais cordato, mais humano, mais atento às realidades, olhando o mundo tal como ele se apresenta na realidade, sem o enfeitar com as vestes místicas como muitos sacerdotes afirmam ser.

A honestidade intelectual é o que se espera de quem exerce cargos tão importantes para o mundo, como se reconhece serem os políticos com responsabilidades de governação… e o Papa, por ser o monarca de uma igreja com tantos aderentes.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

28 de Julho, 2022 João Monteiro

Fé e senso comum

Texto da autoria de Onofre Varela

Se o meu discurso for lido com radicalismo, dir-se-á que sou inimigo da fé e da crença. Não o sou, nem valeria a pena sê-lo… a crença é um acto intelectual, faz parte do cérebro que possuímos e só somos crentes porque pensamos (e também somos ateus por isso mesmo!). Negar a crença seria tão estúpido como negar a importância do oxigénio para a manutenção da vida. 

Eu não tenho nada contra a crença e a fé. O que eu tenho é tudo contra o aproveitamento malicioso da fé (o que é coisa bem diferente) quando os crentes são assim mantidos com propósitos muitas vezes inconfessáveis… e que em alguns casos até pode constituir crime (os vigaristas aproveitam-se da “boa fé” de cada um… a IURD também!…). 

Perante os discursos de fé de qualquer religião ou seita, o bom senso aconselha duas atitudes: ou não lhe damos ouvidos, ou ouvimo-los como narrativas de fé aparentadas às fábulas. As fábulas têm importância e um lugar cativo no plano dos interesses intelectuais e culturais, mas não alcançam o valor que damos à realidade que a História conta e documenta… nem à Ciência, que estuda e comprova mediante experimentação e método. As fábulas são outra coisa! Cada matéria tem a sua prateleira própria e não se mistura com outras que lhe são estranhas. Fé, é apenas fé!… Cada um tem direito e legitimidade de ter fé no que quiser, e de cumprir os rituais que entender serem merecidos aos seus santos ou outras entidades que considere sagradas pela sua fé. 

A minha crítica ultrapassa a fé de cada um, para ir às causas que a constrói, alimenta e conduz à exploração das vítimas das várias formas de fé e de crenças, sempre em benefício de alguém… mas nunca do crente… embora ele creia que sim; por isso é crente!… O crente alimenta-se da fé que lhe dão para consumir, e há agentes da fé que usam uma linguagem beata e infantil como que se quem os ouve não tenha um raciocínio amadurecido e seja incapaz de interpretar o discurso. E também há quem alimente um fanatismo extremado e violento. Nenhum deles merece a minha consideração pela falta de racionalidade, humildade e humanidade que sobressai dos seus discursos e que sublinha as suas atitudes. Salvam-se “os outros”, aqueles que creem (ou não creem) com a racionalidade que a inteligência lhes confere, e interrogam-se. Por isso não se radicalizam. Podem ser crentes mas não engolem, sem mastigar muito bem, tudo quanto o guru lhe quer dar a comer. Muitos dos meus amigos e amigas crentes pertencem a este saudável grupo. 

O nosso Povo é católico e na sua generalidade é bom, hospitaleiro, pacífico e respeitador. Penso que estas características têm muito da educação cristã que recebemos desde o berço. O Cristianismo, na sua essência – expurgado do mito que lhe dá forma enquanto Religião teísta – tem positividade porque é universalista no respeito devido ao outro. E esta característica aproxima-o do Ateísmo… mesmo que católicos, e outros cristãos, se sintam escandalizados com tal aproximação. Retirando-lhe o nascimento divino, os milagres e a ressurreição, tudo quanto sobra é Ateísmo puro… e talvez, até, Comunismo!… 

A diversidade de sensibilidades faz com que haja quem repudie tudo quanto tresande a Igreja, e quem fuja de tudo quanto cheire a Ateísmo! Parece não haver meio termo… e todos nós sabemos, pelos adágios sapientais dos nossos ancestrais avós, que… “no meio é que está a virtude”. Virtude que é, tão só, a capacidade de criar diálogo, impedindo imposições, extremismos, zangas e ódios!… 

Porém não se deve pintar o discurso da virtude com um cinzentismo inócuo! Afinal, a virtude é o senso-comum… sendo que este nem sempre é verdadeiro, e nem tudo quanto o contradiz será falso! Não se pode confundir senso-comum com Razão: há verdades certíssimas e comprováveis (como o movimento da Terra à volta do Sol) em contra-ponto com preconceitos de fé que nem por estarem muito espalhados e façam parte do senso-comum de uma época ou elite, deixarão de ser erróneos (como acontecia com a defesa que a Igreja fazia da ideia de o Sol rodar à volta da Terra). Estes exemplos também querem dizer que o senso-comum é adquirido e cada tempo e sociedade tem o seu. E quando se trata do estudo científico, aquilo que faz o senso-comum pode, até, ser um empecilho ao estudo quando não se considera que a verdade procurada possa estar para lá do que o senso-comum delimita. Perguntem a Galileu!… 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

23 de Junho, 2022 João Monteiro

Debate: Religião no Século XXI

João Monteiro, presidente da Associação Ateísta Portuguesa, participou num debate com Luísa Jacinto, que representou o Movimento Católico de Estudantes. A moderação esteve a cargo de João Mendes, da Escola Superior de Comunicação Social, onde teve lugar o debate. A conversa pode ser ouvida aqui.

18 de Março, 2022 João Monteiro

“Nossa Senhora de Fátima” já está na Ucrânia

No dia 12 de Março deste ano, os jornais informavam que o Santuário de Fátima iria enviar uma estátua da Virgem Peregrina para a Ucrânia. A motivação terá estado num pedido do arcebispo local Ihor Vozniak, com o intuito de alcançar a paz pela oração.

Está então encontrada a resolução para o conflito: qual resistência do povo ucraniano contra os invasores, quais negociações, quais intervenções políticas – afinal bastava parar e rezar.

Os crentes poderão argumentar que não devemos escarnecer desta estátua com supostos poderes milagrosos, pois a mesma será a personificação da “verdadeira Nossa Senhora”. E, de facto, esta estátua que foi para a Ucrânia não é uma estátua qualquer: é a réplica nº13 (a original continua em Portugal).

A mesma chegou ontem à Ucrânia (17 de Março) e aí ficará durante um mês. Se a paz for alcançada, e nós queremos que seja, a Igreja irá fazer dessa situação um aproveitamento atribuindo a responsabilidade à presença da estátua, mesmo que a causa verdadeira tenha sido a intervenção política ucraniana e internacional.

Acho incrível a capacidade de acreditar que um pedaço de madeira/barro/plástico que constitui a estátua possa parar uma guerra. Mais incrível quando se sabe que se trata de uma réplica e não da estátua original!

Além disso, porquê desejar uma estátua portuguesa e não utilizar uma estátua de uma santa ou santo local? Para quê levar uma estátua a viajar entre países, quando a própria Virgem poderia aparecer diretamente ao vivo no local? (a resposta a esta é fácil, porque a dita Virgem não existe e por isso nunca apareceu presencialmente).

A crença, frequentemente, é irracional. Mas para continuar a acreditar é necessário atribuir uma virtude que compense essa irracionalidade: a fé é essa virtude. É elogiado o que tem fé e criticado publicamente quem não a tem. Aí está o reforço psicológico para continuar a acreditar.

É claro que compreendo que a nível emocional, e ainda para mais num contexto desesperante como este, de uma guerra, as pessoas precisem de algo que lhes dê animo – e portanto, diriam alguns, está aí a função da religião. Porém, condeno o recurso à crença e à superstição para dar esse ânimo, porque é uma falsa esperança, um apoio frágil e enganador, enfim, é uma atitude paternalista. O ânimo deve ser dado por aquilo que realmente existe: as pessoas e a capacidade de mudança por intervenção do coletivo.