Loading

Etiqueta: Reflexão

3 de Agosto, 2024 João Nascimento

O Lamento da Existência

Gerado por Dall-E.

Porque é que existe maldade humana no mundo? Porque é que as pessoas sofrem? Porque é que as crianças suportam o horror inimaginável de serem violadas pelos próprios pais, depois mortas, desmembradas e descartadas como lixo?

Porque é que a vida é tão incrivelmente injusta? Porque é que nós, seres humanos, muitas vezes morremos miseravelmente e sozinhos?

Enquanto os apologistas cristãos tentam encontrar maneiras cada vez mais surpreendentes de desviar estas perguntas prementes sobre a frágil existência humana, nós, os descrentes, os ateus, os humanistas seculares, oferecemos uma resposta mais direta: somos primatas. Primatas superiores, mas ainda assim apenas mais um ramo na árvore da evolução, com um longo caminho pela frente, espero eu.

Como Charles Darwin escreveu, carregamos, todos nós, a humilde marca da nossa origem, e isto permanece uma verdade incontestável, quer gostemos ou não. As nossas glândulas supra-renais são demasiado grandes, os nossos lobos pré-frontais demasiado pequenos, e os nossos órgãos reprodutivos parecem ter sido construídos por um comité administrativo com objetivos claramente mal delineados.

Uma combinação que, sozinha ou em conjunto, levará certamente a alguma infelicidade, desordem e inevitável caos. Somos demasiado apaixonados por ideias, e normalmente só sabemos se são más ou boas quando já é tarde demais para refletir antes de agir.

Todos temos a habilidade de reconhecer padrões, e usamo-la desde o princípio em praticamente tudo. Em tudo o que nos rodeava, descobrimos uma maneira, subtil e automática, de construir realidades, à nossa medida, que nos ajudaram a compreender os vários ciclos da natureza, incluindo os nossos. 

Ajudou-nos a interpretá-los e a tirar ilações tão necessárias. E, permitiu-nos dar uma utilidade prática ao aparente caos à nossa volta. Aprendemos a construir a nossa realidade, que tem aquela tendência chata de ser um bocado diferente em cada um de nós.

Já houve uma altura em que a religião e a dimensão do sobrenatural poderiam ter tido uma palavra a dizer. Um género de filosofia insana, solipsista, carente, temente, ignorante, que tentou fornecer-nos as respostas que ninguém tinha, mas as quais todos ansiavam ter.

A doença e tudo o que assolava a humanidade, os fenómenos naturais, eventos geológicos, eventos humanos, políticos; tudo podia ser explicado recorrendo ao obscurantismo religioso. Não havia grande distinção entre a dimensão do sobrenatural e a realidade.

E, também, segundo estudiosos daqueles tempos mais antigos, se algumas pessoas morriam num povoado qualquer derivado a surtos de atacantes microscópicos, por exemplo, foi porque os judeus envenenaram os poços.

Quando uma catástrofe natural, como o terramoto que atingiu o Haiti em 2010, tira milhares de vidas, nós, ateus, entendemos que não se deve a qualquer interferência divina. Reconhecemos que vivemos num planeta ainda em fase de arrefecimento, e que atribuir tais eventos a uma causa sobrenatural não é boa ideia, no mínimo.

Atrevo-me a dizer, também, que culpar um evento natural na homossexualidade das pessoas não é só incrivelmente estúpido, como também se desvia descaradamente do tão amado conceito de livre arbítrio.

Considera isto: se Deus nos deu o livre arbítrio, não será matar-nos com catástrofes naturais uma violação dessa liberdade, mesmo que nos envolvamos em comportamentos pecaminosos? Se Deus está realmente a punir as pessoas causando tais mortes em massa, tem de haver algo extraordinariamente de errado com Ele.

Não concordas?

Outra pergunta, e esta eu fazia constantemente a mim próprio há umas décadas: será que o tão amado livre-arbítrio não perde o significado quando é dado? Quer dizer, “Deus, o Senhor dos Senhores, deu-me livre-arbítrio”. Detectam a ironia aqui, ou sou só eu?

Se Ele interfere, contradiz o pacto com a humanidade, destruindo qualquer noção de livre arbítrio. Como justificas então a morte de um recém-nascido às mãos de um dos seus pais? Ou a morte de um bebé sob os escombros de uma casa, após um terramoto? Se ainda consideras que estas tragédias são causadas pelos majestosos poderes de Deus, não terás tu também uma problemática a resolver na tua mente?

Usar Deus para explicar o mundo natural foi um dos grandes erros da humanidade. No entanto, seria arrogante da minha parte vilificar o desgraçado do Homo sapiens que nasceu com tudo contra ele. Sozinho, entregue às intempéries de um cosmos que nem sequer sabe que ele existe. Não quereria saber se deixasse de existir.

Contudo, já não vivemos na pura ignorância, e existem certas técnicas lógicas que nos fornecem as ferramentas de que necessitamos para nos protegermos das algemas mentais criadas por nós. Acredito que a religião seja apenas a principal dessas algemas.

A Navalha de Ockham, por exemplo, ajuda a libertar a mente para encontrar soluções reais para os verdadeiros problemas. Christopher Hitchens afirmava que este conceito filosófico era a morte da religião. Tendo a concordar.

Afirmar que Deus, ou a suposta imoralidade da sociedade, é a culpada por eventos naturais trágicos é apenas uma forma de ignorar as verdadeiras causas do sofrimento humano e animal, e permitir que persistam de formas cada vez mais variadas e, por sua vez, mais insidiosas.

Não há nada no mundo natural ou no nosso comportamento que exija uma explicação sobrenatural. Novamente: Deus é responsável por todo o mal, ou não é. Ele é indiferente ao nosso sofrimento, ou é a entidade mais sádica do cosmos.

A questão é que não tens de escolher entre nenhum destes extremos.

Pensa nisso.

2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.