10 de Setembro, 2021 João Monteiro
Ateu, graças a Deus
Texto de Onofre Varela, publicado no jornal Trevim.
É comum ouvirmos os crentes darem graças a Deus pelos mais diversos motivos: por terem saúde, por terem trabalho, por chover ou não chover, por fazer sol ou por terem feito boa viagem. Do mesmo modo os religiosos islâmicos – os da facção mais extremista e negativa – também evocam Deus antes de se fazerem explodir entre a multidão de um mercado, de uma estação de Metro ou de um aeroporto. Excluindo desta apreciação os bandidos que matam convictos de estarem a executar uma acção de santidade, sobram aqueles que têm de Deus a mais pacífica das imagens e, em seu nome, procuram ser bondosos. Muitos destes são, essencialmente, hipócritas. Afirmam-se boas pessoas dando esmola na igreja e oferecendo pacotes de arroz para missões caritativas, porque a ideia que têm de Deus é a de um polícia e juíz que espia e condena os crentes apanhados em falso. Soubessem que Deus estava distraído, ou que não existe… e borrifavam-se na caridadezinha social!
(Aliás, a caridade por hábito religioso [que não em situações extremas de calamidade] deve ser substituída pela obrigação social do Governo promover o bem-estar dos cidadãos. É essa a primeira e mais importante missão de um Governo, e é para isso que foi eleito. A caridade não resolve o problema da fome… ajuda a mantê-la! Os carenciados deste ano são os mesmos do ano passado, acrescentados de outros que a caridade produz quando os governos não resolvem o problema na sua base. Só há necessidade da caridade pública quando o Governo não é eficaz).
Estamos programados para dar graças a Deus pelos bons desfechos. Dizemos “graças a Deus fizemos boa viagem”, quando chegamos bem ao nosso destino. Se houver um acidente, nunca dizemos “graças a Deus espatifamos o carro e o tio Zé morreu”!… O que não se entende!… Porque sendo Deus o guardião de todos nós, deve ser responsabilizado, também, pelos maus desfechos, pois retirou-se do seu posto de vigia precisamente no momento em que fazia mais falta!… E quando os meus piadéticos amigos me dizem “és ateu graças a Deus”, não fazem ideia da verdade que estão a proferir para além da anedota que os motiva a debitarem essa frase velha como o mundo.
Vejamos: Um crítico literário, ou cinematográfico, só existe porque existe Literatura e Cinema. Se não existissem estes, não havia razão para existirem aqueles! Do mesmo modo, um Ateu (a: partícula de negação; + teo: Deus) é um crítico do conceito de Deus. Se não existisse o conceito, não haveria lugar para a existência dos seus críticos. Na verdade é graças a (o conceito de) Deus, que os ateus (seus críticos) existem!
(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico)
OV