10 de Outubro, 2024 Ernesto Martins
O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 2/3
Na primeira parte deste artigo argumentei contra o facto de o Cristianismo poder servir de base para um sistema ético universal. Referi também que, além de não apresentar soluções adequadas, a religião cristã é, muitas vezes, ela própria geradora de problemas graves. Nesta segunda parte examino três desses problemas: a moral sexual repressiva, a doutrinação infantil e a negação da ciência.
Moral sexual repressiva
O sexo foi sempre motivo de obsessão no Cristianismo e os ditames morais que emanam da Igreja Católica sobre esta matéria nunca encontraram eco no melhor conhecimento das ciências humanas sobre o assunto
O Catecismo da Igreja Católica [1], autoridade absoluta em assuntos doutrinais, estabelece no seu artigo 2351 que “o prazer sexual é moralmente desordenado quando procurado por si mesmo, isolado das finalidades da procriação e da união”, algo que deveria ser ponderado seriamente pelas mulheres crentes que decidem não ter filhos. No artigo 2370 lemos que “qualquer acção que (…) se proponha tornar impossível a procriação” é intrinsecamente má. Ou seja, contraceptivos não naturais são inaceitáveis. E enquanto a ciência do sexo informa que a masturbação é uma actividade natural no reino animal, o artigo 2352 do mesmo Catecismo assegura-nos que “a masturbação é um acto intrínseca e gravemente desordenado”. Para que serve afinal a ciência?
Um dos aspectos mais negativos do Cristianismo, profundamente contrário a uma ética humanista de respeito pelas opções pessoais dos seres humanos, é a condenação da homossexualidade. Segundo o artigo 2357, “os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados… e não podem, em caso algum, ser aprovados”. Contrariamente ao que a ciência nos diz sobre esta orientação sexual em particular, para a Igreja os homossexuais são aberrações da natureza. Além de traduzir uma atitude hostil para com um grupo social, inaceitável numa sociedade inclusiva, esta é mais uma instância do lamentável choque frontal entre fé e ciência.
Ironicamente a atitude repressiva da Igreja Católica, no que toca a assuntos como a homossexualidade e os contraceptivos, tem resultado em verdadeiros tiros certeiros nos pés dada a consequente alienação de muitos fiéis. De facto, numa sondagem da Pew Research realizada em vários países da Europa em 2018, 58% das pessoas sem religião (os chamados nones, que aqui se identificam maioritariamente como indivíduos baptizados e criados como cristãos) dizem ter-se afastado da religião por discordar com as posições oficiais da Igreja em questões como a homossexualidade e o aborto [2].
O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um facto social cuja aceitação depende muito da religiosidade dos sujeitos. Segundo a mesma sondagem da Pew Research, em todos os países estudados os cristãos que frequentam a igreja são consideravelmente mais conservadores do que os cristãos não praticantes e os nones em questões como o casamento gay e o aborto [3]. Em Portugal 82% dos nones são a favor do casamento gay contra apenas 43% dos cristãos que frequentam a igreja, que também são a favor. Dados como estes parecem tornar incontornável a conclusão de que a religião favorece efectivamente a repressão.
Doutrinação infantil
Um dos principais factores que perpetuam as religiões ao longo dos tempos é a doutrinação das crianças. E o problema é que se transmite a mensagem religiosa como se esta fosse imprescindível para o desenvolvimento moral dos jovens. Ao mesmo tempo, as narrativas são transmitidas como se de verdades factuais se tratassem: as histórias em torno da vida de Jesus, por exemplo, incluindo os episódios sobrenaturais, são apresentadas como se fossem tão bem atestadas historicamente como os factos em torno da Revolução Francesa (pelo menos, nenhuma ressalva em contrário é feita). Também nunca se refere que só algumas pessoas no mundo (os cristãos, em particular) acreditam efectivamente nessas narrativas e que para muitos milhões (e.g. os muçulmanos) alguns desses relatos são apenas fantasiosos. Finalmente não se fala às crianças de outras tradições alternativas, religiosas e não religiosas, tão ou mais relevantes e com histórias igualmente inspiradoras e de conteúdo moral tão significativo como as do Cristianismo. Em resumo, a visão afunilada e redutora que se transmite é evidentemente tendenciosa e formatadora.
O crescimento substancial do número de nones nas últimas décadas tem levado a estudos sobre os efeitos da educação de crianças em lares não religiosos. No melhor dos casos os estudos sugerem que não há diferenças perceptíveis entre crianças criadas em lares religiosos e em lares seculares [4]. Mas também já se detectaram efeitos nocivos nas crianças sujeitas a uma educação religiosa, nomeadamente na dificuldade que estas evidenciam na distinção entre realidade e ficção [5].
Negação da ciência
Muitas doutrinas cristãs, particularmente as evangélicas, são negacionistas da ciência. O Criacionismo nega os factos da Teoria da Evolução por Selecção Natural. Ao afirmarem a verdade literal da Bíblia promovem também a factualidade do dilúvio universal, ideia cuja credibilidade científica há muito caiu em desgraça [6].
A primeira versão do Criacionismo advogava a criação do universo em seis dias, de acordo com a interpretação literal do Génesis. Uma versão mais sofisticada, o Criacionismo Científico, tentou mostrar que o registo fóssil é compatível com um primeiro acto de criação divina seguido de um dilúvio universal. Uma apresentação ainda mais sofisticada surgiu depois na forma do Projecto Inteligente, que tenta argumentar, usando termos putativamente científicos, que existem na natureza instâncias de “complexidade irredutível” que só poderiam ter surgido por via de um acto de criação divina.
Algumas versões do cristianismo são menos radicais do que as variedades evangélicas, colocando a mão de deus por detrás dos processos evolutivos. No entanto nem estas versões fazem sentido se considerarmos o conceito tradicional de deus como entidade omnipotente, omnisciente e sumamente benevolente: se os organismos foram propositadamente criados por condução do processo evolutivo, então deus só pode ser um criador incompetente, esbanjador e cruel se atendermos ao que se observa no reino biológico com os seus múltiplos sinais de imperfeições (e.g. má localização do nervo óptico, que se traduz num ponto cego no campo de visão; complicações causadas na próstata pelo trato urinário), orgãos redundantes e problemas causados por adaptações evolutivas (diafragma entre a cavidade toráxica e o abdómen; canal pélvico apertado nas mulheres, etc.) bem como doenças várias. Enfim, tudo contingências de um processo evolutivo não guiado. Mas mesmo aceitando a evolução Darwiniana do ser humano, o Cristianismo tem ainda o problema de decidir em que momento da evolução é que a linhagem homo passou a ser agraciada com aquilo a que chamam de alma imortal. Não há como conciliar fé e ciência.
— EVM
Notas:
[1] https://www.vatican.va/archive/cathechism_po
[2] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[3] ibid.
[4] “Does religion make people moral?” Ara Norenzayan, Department of Psychology, University of British Columbia, 5 December 2013, Behaviour, 151 (2014) 365–384.
[5] “Judgments About Fact and Fiction by Children From Religious and Nonreligious Backgrounds”, Kathleen H. Corriveaua, Eva E. Chenb, Paul L. Harris; Cognitive Science Journal, 151 (2014) 365–384.
[6] 65% dos americanos os adultos dizem que “os humanos e outros seres vivos evoluíram ao longo do tempo”, enquanto 31% dizem que os humanos e outros seres vivos “têm o aspecto actual desde o início dos tempos”. Destes, 43% dos protestantes e 27% dos católicos acreditam que os seres humanos têm o aspecto actual desde o início dos tempos (não evoluíram). Dados de 2015.
Ver: https://www.pewresearch.org/science/2015/10/22/strong-role-of-religion-in-views-about-evolution-and-perceptions-of-scientific-consensus/