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Etiqueta: Humor

15 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O Natal de um ateu

Já me têm perguntado: “como é o Natal de um ateu?”. É uma curiosidade motivada pela ideia generalizada de que a sociedade está dividida em segmentos. Há o segmento religioso, o segmento político e o segmento futebolístico (no mínimo…). E também há quem pense que em cada segmento as pessoas funcionam de modo diverso das outras.

Para satisfazer os curiosos… cá vai:

Não posso falar pelos ateus em geral, porque cada pessoa é ela própria e não o decalque de quaisquer outras (consideração válida para ateus e religiosos); como os meus amigos sabem, religiosamente sou ateu, politicamente sou de Esquerda, e em futebol… sou contra! Não gosto de futebol, nunca joguei a bola nem entrei num estádio e não vejo campeonatos, nem pela televisão. Costumo dizer aos meus amigos que, para mim, o futebol está ao nível de Deus… não existe!

Quanto ao Natal… é uma festa religiosa das sociedades cristãs. Cada um de nós, embora seja dotado de raciocínio próprio, é sempre o resultado do meio em que nasceu – cresceu e foi educado – não lhe podendo fugir. O Natal e a Páscoa são festas religiosas do meio que me fez, mas também são profanas. A Páscoa nunca teve significado no meu meio familiar; é um Domingo como qualquer outro… sempre assim se procedeu em minha casa porque “a ressurreição” (no figurino em que os religiosos cristãos a apresentam) não tem sentido.

Já o Natal é a “Festa da Família”. É um dia em que se reúnem familiares mais chegados, habitualmente separados por factores profissionais ou de residência distante, num jantar comunitário (designado por Consoada, palavra derivada do latim Consolata que quer dizer “refeição partilhada”) onde se sacrifica um bacalhau salgado, já sacrificado no Mar do Norte, regado com azeite de Trás-os-Montes e acompanhado de um bom vinho. Há sobremesas doces e distribuição de prendas, e findo o serão vou dormir sem assistir “à missa do galo”.

Imagem da Unsplash

Portanto, retirando a missa e as orações dos Católicos (que nem todos cumprem), o meu Natal de ateu é igual ao Natal de um religioso!

As datas religiosas da Igreja Católica, como Páscoa e Natal, têm a ver com a vida de Jesus Cristo, enquanto ícone deífico dos cristãos… mas também estão ligadas à Natureza, aos equinócios do Inverno e da Primavera. Toda a vida dos Seres Humanos é baseada, em primeiro lugar, na Natureza, e depois na sociedade e no seu folclore próprio e sazonal, que pode ser laico ou religioso, mas que é, sempre, folclore inerente a cada grupo social, que a Antropologia, a Etnologia e a Sociologia, estudam e explicam.

O Pinheiro e o Presépio

Nos meus tempos de miúdo ia cortar, numa bouça próxima de casa, um pequeno pinheiro recém-nascido, que enfeitava com bugalhos forrados com prata retirada dos maços de cigarros (encontrados no lixo e no chão da rua) rematando a obra com bocadinhos de algodão a fingir de neve (se tivesse vinte e cinco tostões para comprar pequenas bolas de vidro, coloridas e muito frágeis, e dois pacotinhos de minúsculos chocolates amarrados com uma fita de seda, para pendurar na árvore… era uma festa e a obra ficava espectacular!) sem ter consciência de que a tradição da árvore de Natal estaria ligada às crenças dos povos pagãos do norte da Europa, principalmente à celebração do Solstício de Inverno – a noite mais longa do ano – como homenagem à Natureza adormecida.

Já o Presépio encerra uma outra história para além da relação com o Solstício de Inverno. Uma breve consulta ao Novo Testamento mostra-nos que de entre os evangelistas que nos falam da história de Jesus nenhum deles narra a cena que estamos habituados a ver designada por Presépio. Mateus (2:11) diz-nos que os reis magos “entrando na casa acharam o menino com Maria”. Logo, o estábulo da tradição não existe nesta referência, já que o local do nascimento seria “uma casa”.

Marcos e João omitem o nascimento de Jesus, referindo-o já como adulto, quando é baptizado nas águas do rio Jordão por João Baptista.

Lucas (2:7) já nos diz que Maria “deu à luz o seu filho primogénito e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

A necessidade de José e Maria terem um lugar para pernoitar, devia-se ao facto de se terem deslocado de Nazaré, onde viviam, para Belém, na obrigação de se recensearem, no cumprimento de um decreto do imperador César Augusto que obrigava ao recenseamento de todos os cidadãos; e o casal partira para o local quando Maria já estaria num estado avançado de gravidez.

A imagem do Presépio que hoje figura na maioria das casas e nas montras das lojas na época natalícia, teve origem numa ideia de Francisco de Assis que, em 1223, festejou o Natal fora da igreja, montando uma manjedoura na floresta de Greccio, Itália, colocando junto dela um boi e um burro como elementos tradicionais de um estábulo.

O povo não entendeu de imediato o significado daquela encenação, mas durante a Idade Média o costume espalhou-se e, em 1567, a Duquesa de Amalfi mandou montar um grandioso Presépio com 116 figuras representando o nascimento de Jesus Cristo com a adoração dos reis magos, dos pastores e com anjos a cantar.

A partir do século XVIII o costume espalhou-se pelas casas dos crentes, mantendo-se até hoje… e convenhamos que o Presépio, enquanto decoração natalícia, fica muito bem nas montras das lojas e nos centros comerciais, nesta época de chamamento ao consumo desenfreado… conotando uma festa de cariz religioso, com o consumismo.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

19 de Agosto, 2024 Onofre Varela

“O Homem Criou Deus”

“O Homem Criou Deus” é o título do livro de que sou autor e foi editado pela Edium Editores em Dezembro de 2011. A obra, que estava esgotada, teve agora uma segunda edição revista e aumentada (muito aumentada!) pela Seda Publicações (herdeira da Edium), em Junho de 2024.

Adão era canhoto”, ilustração do autor para a capa do livro. Grafite e lápis de cor.

São 411 páginas (contra as 239 da primeira edição) onde discorro sobre o tema Religião de acordo com a minha ideia de não crente e como cidadão interessado no fenómeno religioso, assumindo-me crítico, não da fé (que é perfeitamente lícita) mas sim da exploração que dela se faz através de credos religiosos estabelecidos na sociedade, mas também da Política e da Economia, os outros dois poderes sociais que, somados à fé religiosa, constituem “a troica” que nos submete a situações indesejadas, mas que aceitamos docilmente pela “anestesia da fé” (seja em Deus ou nos gurus de seitas e partidos políticos). São situações de “escravatura mental” a que nos submetemos sem disso darmos conta.

Do sumário do livro destaco alguns temas:

A criação do conceito de Deus (criado por sentirmos necessidade dele, pois o Homem só cria o que necessita); Bíblia e História; a poesia contida no Génesis; os feitos de Moisés que a História não regista; fundamentalistas religiosos que atacam o Humor e assassinam Caricaturistas; o Mito e a Razão; o Sudário de Turim; a Arte e o Sagrado; Mulher, a eterna vítima das sociedades patriarcais bíblicas e corânicas; a desumanidade e selvajaria da Pena de Morte; as fantasias da Trindade e do Dogma; Jesus Cristo e o seu tempo, os Evangelhos e o seu valor social, hoje.

Deixo-vos três parágrafos do livro, como aperitivo:

«…Nas democracias é norma afirmar-se o respeito pelo outro e o reconhecimento dos direitos de todos, incluindo as minorias. Mas também é comum vermos esses direitos constantemente atropelados, com incidência no modo como se tratam etnias e as mulheres. Até no mercado de trabalho, nesta nossa sociedade tão ciosamente democrata e temente a Deus, as mulheres desempenham funções iguais às dos homens, com a mesma capacidade e perfeição, mas auferem menor ordenado pelo facto de serem mulheres! Em Janeiro de 2018 circulava nos media a ideia política de se igualar os vencimentos de homens e mulheres, alertando-se a opinião pública para o facto de os homens ganharem mais 17,8%…» (Página 268).

«…Hoje, quando assisto a uma missa, observando com olhos de antropólogo amador o que ali acontece, se diz e se sente, retrocedo para a Idade Média! Constato que a Igreja não ouviu os seus pensadores […] nem nada de mais actual transmitiu à sua clientela consumidora de missas, do que aquilo que vem transmitindo desde o tempo em que a ignorância imperava sobre os povos crentes anteriores ao Iluminismo… e os seus clientes continuam a afluir em rancho!… Isto parece-me negativamente impressionante e alimenta a minha preocupação e desconfiança no futuro próximo, por me aperceber da existência de tantos cérebros tão mal alimentados e desaproveitados! A qualidade do interesse intelectual da maioria de nós… também é mito…» (Página 351).

«…Se Jesus Cristo vivesse hoje não faria carreira no Vaticano, nem a sua doutrina seria aprovada após uma inspecção teológica de Ratzinger, nem como cardeal, nem travestido de Papa Bento 16. Jesus foi um político do seu tempo, protestante da religião judaica a qual pretendeu purificar. Hoje seria um feroz crítico do luxo que a Igreja ostenta desde a Alta Idade Média. Talvez por isso a Igreja dê uma grande importância a Maria, porque a sua imagem (ao contrário da do filho) não está comprometida com a Esquerda! Maria não cria problemas ao nível da política; e Jesus, tendo em conta a sua conduta social, até pode ser sindicalista e comunista!…» (Página 376).

Os interessados no livro podem encontrá-lo no Porto, na UNICEPE. Praça de Carlos Alberto, 128 A. Telefone 22 205 66 60 (na esquina da Praça dos Leões). Quem está longe do Porto pode contactar o editor: www.gugol-livreiros.pt

13 de Março, 2024 Onofre Varela

Graças a Deus

As frases “Graças a Deus” e “se Deus quiser” são usadas no sentido de agradecimento e no desejo de que tudo corra bem sob a benesse da divindade. São frases tão enraizadas nas mentes e tão corriqueiras que quem as profere fá-lo de um modo automático sem ter a noção do que está a dizer. 

Os extremistas islâmicos também as usam no sentido de que tudo lhes corra bem, incluindo a eliminação de vidas nos seus atentados criminosos!… Deus é pau para toda a obra… é como a nódoa… que no bom pano cai! 

Para os crentes, Deus representa tudo quanto de bom se possa imaginar, mais a fé e a esperança de que tudo corra conforme o desejo da divindade (imaginamos que o seu desejo coincide com o nosso!). O crente tem, perante a ideia de Deus (mesmo sem saber o que é nem como é Deus) uma atitude de “respeito”, temendo-o e adorando-o concomitantemente.

Quando fazemos boa viagem agradecemos a Deus por termos chegado bem… mas se tivermos um acidente, não dizemos “graças a Deus espatifamos o carro contra uma árvore, e o tio Zé morreu com o volante enfiado no peito”. O que não se percebe!… Porque se Deus é o responsável pelo bom desfecho, também devia ser responsabilizado quando a viagem correu mal, já que se retirou do seu posto de vigia quando fazia mais falta!… 

A palavra Deus acaba por ser um código para referir o objecto sagrado da nossa adoração. Se em vez da palavra “Deus”, adoptassemos qualquer outro termo… por exemplo, “Birobé”, em vez de darmos “graças a Deus”, dávamos “graças a Birobé”!… 

Foto de Olivia Snow na Unsplash

Birobé seria o autor de todas as coisas. Passava a ser o criador e o dono do nosso destino. Birobé seria a explicação para tudo quanto desconhecemos, e o guardião da fonte de todos os nossos desejos. 

Birobé é, a partir de agora, o dono da nossa alma. E só por vontade de Birobé acordamos todas as manhãs para enfrentarmos o dia que temos para viver; e vivêmo-lo graças a Birobé. Birobé é a explicação para tudo quanto desconhecemos e queremos ver explicado. Mesmo que aquilo que não conhecemos seja sobejamente conhecido por todos, menos por nós, é Birobé que preenche o enorme buraco do nosso desconhecimento. E continuando a desconhecermos a verdadeira essência da coisa, cremos conhecê-la porque “sabemos” que a coisa… é Birobé! 

Quando procuramos uma explicação, não consultamos uma enciclopédia; recorremos a Birobé porque ele tudo sabe, é Grande e o seu Poder é indesmentível. Com Birobé, tudo; sem Birobé, nada. Birobé é aquele que designamos com letra maiúscula, que cremos ser Omnipotente, Omnisciente e Omnipresente, que tudo vê, sabe e domina. Birobé é O princípio, O meio e O fim. É Ele que nos ilumina o caminho e a Ele devemos incondicional adoração.

Acha ridículo dar graças a Birobé?…

Tem toda a razão. É tão ridículo como dar graças a Deus!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

12 de Março, 2024 Onofre Varela

Quando formos grandes…

Quando se ouve uma voz que contraria a tradição e a ordem estabelecida, originam-se reacções que vão desde o escândalo dos resistentes a novas ideias, até ao fascínio dos que aderem ao que é novo. Em todos os tempos as vanguardas começaram por ser repudiadas, depois toleradas, acabando aceites. 

Lembremos Galileu Galilei e Giordano Bruno.

O julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana. Relevo em bronze de Ettore Ferrari, Campo de’ Fiori, Roma.

Galileu Galilei (1564-1642), astrónomo, construiu o primeiro telescópio e observou os astros. Concluiu que a Lua girava à volta da Terra, e esta rodava à volta do Sol. O conhecimento da sua época não era científico, mas religioso, e a Igreja garantia que o nosso planeta era o centro do mundo e que o Sol e a Lua rodavam à volta da Terra para nosso puro deleite, pois Deus assim quis e fez! Galileu foi condenado pela Santa Inquisição e fingiu retratar-se, evitando ser morto na fogueira diabólica onde a Igreja adorava queimar aqueles que não diziam amen consigo. No tribunal, terá dito: “eppur si muove” (no entanto ela [a Lua, a Terra] move-se).

Giordano Bruno (1548-1600) foi monge e estudioso do Universo. Concluiu poder ser falsa a ideia (defendida pela Igreja) de que só a Terra era habitada por vida inteligente, defendendo a hipótese da existência de muitos outros mundos habitados por gente como nós. Ao contrário de Galileu, não aceitou fazer uma retratação negando as suas ideias, e por isso foi condenado a morrer na fogueira. Os seus algozes foram mais longe. Depois de o amarrarem no poste e antes de lançarem fogo à lenha que o rodeava, com um alicate puxaram-lhe a língua e pregaram-lhe uma tábua para que o monge não blasfemásse!…

Charles Darwin teve o mesmo problema com a Igreja quando expôs a Teoria da Evolução, contrariando a Criação Divina. Hoje, passados 165 anos após a publicação do seu livro “Origem das Espécies” (1859), ainda há quem defenda o conceito religioso da Criação contra a evidência científica da Evolução!

Isto acontece assim porque o raciocínio de muita gente está amarrado a conceitos religiosos desde criança, impedindo, ou dificultando, o entendimento científico. Conclui-se que uma parte da sociedade é constituída por interesses supérfluos e serôdios, levando ao desinteresse pelas Ciências e pela História. Considerou-se ser mais importante jogar à bola, do que ler um livro; exercitar a musculatura do corpo em ginásios, do que treinar o músculo do cérebro em livrarias e bibliotecas. 

Ter músculos esculpindo o corpo é a primeira escolha porque se vê por fora e faz inveja aos nossos amigos que são tão estúpidos quanto nós. Vivemos a cultura do corpo esquecendo a cultura do espírito.

No campo destas considerações encontramos o Ateísmo que já faz um quarto da população mundial. Não é muito, mas está a crescer. Quando formos grandes… a maioria de nós dispensará a redutora ideia da fábula de Deus e dos santinhos e, provavelmente, também, a beleza exterior que nada vale se não for alicerçada na beleza interior. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

8 de Março, 2024 Onofre Varela

Humor e religião

NOTA EDITORIAL: Entramos em Agosto, o mês de férias por excelência. Recuperamos um conjunto de prosas de Onofre Varela, escrito em três partes, mas que reunimos aqui num texto único para uma leitura mais fluida.

É sabido que o riso é fundamental na manutenção da saúde. Quem dá umas valentes gargalhadas diariamente e, principalmente, se consegue rir de si próprio, raramente está doente. Para além deste valor profiláctico, o sentido de humor também é sinal de inteligência; quem o usa consegue melhor qualidade de vida para si próprio e, invariavelmente, partilha-o com amigos, familiares e conhecidos próximos.

Na nossa sociedade há imensa gente a tentar fazer-nos rir, começando pelos hilariantes políticos que temos e que dizem estar ali, onde estão, no Hemiciclo de S. Bento, no Governo ou nos Partidos, apenas para nos engrandecer, nos governarem bem (dizem eles) e fazerem-nos imensamente felizes… cago-me a rir com tais anedotas!…

Para lá destes tristes humoristas, há os outros, os autênticos, que nos encantam em palco, na rádio e na televisão. De entre estes produtores de riso não é raro (é, até, demasiadamente habitual) haver criadores que vivem bastante mal, mercê das acções dos outros humoristas das bancadas políticas.

No naipe dos autênticos e verdadeiros humoristas que nos fazem rir e pensar, destaca-se o actor multifacetado Herman José. Recordo que em 1994, Herman teve um programa no canal 1 da RTP, denominado “Herman Zap!”, de grande audiência e agrado nacional. Um dia, nas suas rábulas, criou uma Última Ceia de Jesus, humorística. Grande gaita… caiu o Carmo e a Trindade!…

A Igreja Católica não achou piada nenhuma àquele excelente trabalho de comédia, e protestou (aliás, caracteristicamente, os agentes religiosos têm um humor idêntico aos dos políticos que nos querem comer. E quando os religiosos censores do humor são fundamentalistas islâmicos, cobram o riso assassinando quem o produz).

O bispo Maurílio Gouveia, então responsável por um gabinete que julgo denominar-se “Episcopado para a Comunicação”, apressou-se a dizer que “O programa ridicularizou o que há de mais sagrado na fé dos cristãos: a eucaristia”.

A série de programas foi interrompida e realizaram-se mesas redondas debatendo a questão religiosa e a liberdade de expressão. Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PPD, declarou: “Vejo com preocupação que, sendo um canal de serviço público, nele se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como é a Igreja Católica”.

Herman José mostrou-se surpreendido pela reacção da Igreja, declarando: “Deus deve estar a rir-se às gargalhadas da mesquinhez de quem criticou o Herman Zap!”.

O escândalo armado pela Igreja Católica à volta do programa de humor e diversão “Herman Zap!”, em 1994, levou à realização de uma Mesa Redonda na RTP em horário nobre, tal era a importância da matéria em apreço.

Discutiu-se aquele programa transformado em tragédia nacional pela Igreja, com um painel diversificado, do qual fazia parte Frei Bento Domingues e um professor universitário católico. Este, manifestou-se totalmente contra o programa de humor em questão, considerando-o demoníaco ou próximo de tal apreciação.

Já Frei Bento Domingues (único interveniente que podia, licitamente, representar a Igreja por fazer parte dela) sublinhou estar ali particularmente, não representando mais nada nem ninguém, para além dele próprio. Pareceu-me ser o interveniente que teve a opinião mais lúcida. Declarou ter visto o programa e não ter encontrado nele nada que beliscasse a sua fé. Confessou que até lhe achou graça: “Aquilo tinha a ver com o meu riso, não com a minha fé”, disse.

É sempre bom sabermos que a Igreja não é só composta por fanáticos intolerantes, saídos de amarelecidas e mal cheirosas folhas de pergaminho arrancadas a um livro medieval. Felizmente (principalmente para ela própria, para o seu futuro e para a sua credibilidade) que também conta com membros dotados de “inteligência exterior à fé”, como é o caso de Frei Bento Domingues.

Mais recentemente, na madrugada do dia 24 de Dezembro de 2019 (era então Jair Bolsonaro dono do Brasil e dos brasileiros) houve um ataque com cocktails Molotov à sede da produtora de conteúdos televisivos Porta dos Fundos, como protesto pela transmissão televisiva de um sketch cómico com o título “A primeira tentação de Cristo”, na qual Jesus era representado como um jovem que teria uma experiência homossexual, e também se insinuava que o casal bíblico Maria e José viveu um “triângulo amoroso com Deus”.

Eu vi o programa e não lhe achei a graça que, provavelmente, os seus autores pretendiam. Teve dois ou três momentos de humor, e o restante, para o meu gosto e de acordo com o excelente trabalho que já vi do mesmo grupo, era francamente mau. Para mim tinha uma qualidade muito rasteira… mas, daí, até se lançarem bombas contra a empresa produtora do programa, vai uma distância abissal!…

Pode-se gostar, ou não gostar, de qualquer programa televisivo, como se gosta, ou não se gosta, de um livro, de uma música, de um filme ou de uma personalidade pública; e é lícito criticar aquilo (ou aquele e aquela) de que não gostamos. Numa sociedade livre e democrática (como deve ser o Brasil moderno) quem se considera ofendido na dignidade ou no mais profundo das suas convicções, apresenta o seu protesto às entidades competentes para julgar o caso. A Democracia e a Justiça farão o seu trabalho… mas um ataque à bomba é crime! 

Naquele momento a política brasileira contava com acções da Direita mais extremista que apoiava Bolsonaro. A liberdade de expressão e de criação artística estava comprometida e o próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, deputado por São Paulo, foi uma das figuras públicas a condenar o sketch. Os actores Gregório Duvivier e Fábio Porchat, responsáveis pela “Porta dos Fundos”, declararam: “Não nos vamos calar! Nunca!”. Eu apoiei-os, embora aquele trabalho não me agradasse, mas defendo a sagrada liberdade de expressão.

Um dia depois do atentado, um grupo ultra-nacionalista intitulado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integrista Brasileira, reivindicou a responsabilidade do atentado.

O espírito que sobressai do nome deste grupelho leva-me a entendê-lo como uma espécie de Ku-Klux-Klan e de agrupamento Nazi. Só grupos de tal índole atacam a liberdade de expressão, alegadamente em favor de um ultranacionalismo balofo, desusado, fundamentalista e criminoso.

E será que os criminosos bombistas, insatisfeitos com o trabalho humorístico da Porta dos Fundos, entenderam o sketch? Será que conhecem a passagem bíblica que lhe deu origem?

Os religiosos que se sentem ofendidos com uma comédia quando ela brinca com elementos da sua crença, devem protestar nos locais próprios que os regimes democráticos têm para esse fim. 

No caso do atentado brasileiro duvido do sentimento cristão do grupo de criminosos-nacionalistas, cuja reacção foi atacar à bomba!… Este acto poderá estar relacionado com o actual regime político que permite a violência e tem gente da IURD sentada no Parlamento, sendo que o próprio presidente é afecto a essa seita dita evangélica, e por muitos apontada como criminosa. 

Os extremistas muçulmanos também reagiram com metralhadoras contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015, matando 12 jornalistas-cartunistas, só porque não gostaram de uma crítica a Maomé! Os extremistas religiosos e patrióticos não pensam para além do tabu sacramental de Deus e da Pátria. Não têm sentido de humor, nem nenhum outro sentimento que não seja o da vingança violenta. A interpretação que fazem dos textos religiosos é programada pelos gurus das seitas e dos credos, e não pela sua capacidade de entendimento. 

No caso da comédia brasileira, aludindo uma hipotética homossexualidade de Jesus, ressaltam alguns condicionamentos mentais dos crentes que os levam à irritação, à fúria e ao crime. Desde logo, temos a própria homossexualidade que é condenada por si só e que os crentes rotulam de “pecado”. E depois… não lêem a Bíblia! Dizem ser o seu livro sagrado, mas não têm a mínima ideia do seu conteúdo! 

No Novo Testamento (João: 13; 21-30) é narrada uma cena incluída no capítulo onde se encontra a célebre frase de Jesus: “Na verdade vos digo que um de vós me há-de trair”. Perante esta denúncia, os seus discípulos olharam-se, perplexos com o que o Mestre lhes dizia. A parte curiosa desta narrativa está nesta frase: “um dos seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus”. Quer dizer que Jesus só amava um dos discípulos (ou amava-o mais, ou de modo diferente, do que a todos os outros?), que por acaso era aquele que se encontrava ao seu colo, na posição de reclinado… isto é, deitado… o que presumia alguma intimidade para além da amizade. 

Simão Pedro fez sinal a esse jovem a quem Jesus amava, para que perguntasse ao Mestre quem era aquele que o haveria de trair. O jovem aproximou a sua boca do rosto de Jesus e perguntou: “Senhor, quem é?”. Segundo esta narrativa, aquele a quem Jesus amava e que se reclinava sobre o seu seio, era seu confidente e porta-voz. Através dele os outros discípulos dirigiam-lhe as questões e ouviam a resposta (pelo menos naqueles versículos). 

A interpretação desta passagem bíblica pode ser variada… e uma das variações, tão válida como qualquer outra, pode ser entendida como havendo uma relação íntima entre aqueles dois homens. Não é à toa que os autores teatrais tratam os assuntos históricos ou míticos. Eles lêem, estudam e investigam, para poderem fundamentar as suas estórias que passam em palco, na televisão ou no cinema. Ao contrário, os fundamentalistas bíblicos só têm uma interpretação – a radical – e baseados nela arrogam-se o direito de lançar bombas contra aqueles que, dando cumprimento ao seu trabalho de criar rábulas teatrais (ou cartunes), atingem um nível de raciocínio que está vedado aos agressores. Por isso se radicalizam… e o governo brasileiro de Jaír Bolsonaro alimenta essa radicalização e parece apoiar os seus actos!… E se estes terroristas não forem apanhados e julgados… não parece que os apoia… apoia-os mesmo! 

Termino transcrevendo uma frase do meu camarada cartunista Zé Oliveira: “Produzir humor é um acto de inteligência. Produzir terror é um acto de estupidez bárbara”. (Fim)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

29 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Mandar o Papa para o Céu

A publicação no X, acerca dos primeiros minutos da tertúlia, pode ser encontrada aqui.

Tempos houve em que mandar alguém para o inferno era mau. Agora, até mandar para o céu é insulto. Eu diria que é, porque a parte má está em morrer e não no que acontece depois, que é rigorosamente nada. E se isto não fosse claro e universal, não teria lido a notícia que li hoje no Observador – Programa Sacerdotal torna-se viral no YouTube depois de padres desejarem que Papa “possa ir para o céu o quanto antes”.

Não me chocou particularmente que estes padres desejassem a morte do Papa. Muitos não devem gostar dele, sejam católicos ou não. Se para um ateu a Igreja é uma coisa medievalista e retrógrada, para muitos dos seus membros, está a tornar-se um absurdo de modernidade. O contexto é simples: trata-se do episódio de dia 22 de fevereiro de uma terúlia sacerdotal – La Comunión en la mano: doctrina, mentira y desobediencia – La Sacristía de La Vendée: 22-02-2024 – que discute por sua vez um documentário (?) intitulado Comunhão na Mão, o Triunfo da Desobediência. O tema? Comungar na mão ou comungar na boca. Vamos pôr aqui um pin, que já cá voltamos.

Quando morre um Papa, o representante de deus na terra, outro é eleito, num conclave que reune o Colégio dos Cardeais no Vaticano. Não me vou alongar nos procedimentos através dos quais um Papa é eleito, porque já me bastou o tempo que dediquei aos vídeos acima, mas para quem realmente estiver interessado nos detalhes e rituais que compõem este momento da Sé Apostólica, pode ler mais aqui. Certo é que se entende, no mundo católico, que deus participa deste conclave inspirando o voto dos seus participantes. Assim, o cardeal eleito é escolhido por deus através do voto dos seus principais sacerdotes.

Seria de estranhar que sendo deus a escolher, ou a inspirar a escolha do seu representante na terra, do herdeiro do Apóstolo Pedro, a Igreja na sua representação humana, alguém então detestasse, odiasse, desejasse a morte deste ser tão santificado, especialmente no seio da própria organização sagrada que representa. Seria estranho se não soubéssemos que esta organização é inteiramente constituída por homens, sem intervenção divina, e que não representa na terra mais do que 2000 anos de patriarcado, crendice e atentados à inteligência humana. Vistas as coisas por esta perspetiva não me é assim tão estranho que sete padres católicos se juntem durante duas horas para cascar forte e feio no Papa que os rege.

É interessante que começam por rir de forma irónica quando um deles faz votos que o Papa vá depressa para o céu. Mas é mais interessante ainda que ir rapidamente para o céu seja negativo. Não é isso que se pretende? Quanto mais depressa se morre, mais depressa se acede à vida eterna de contemplação de deus. Aquele sorriso, no entanto, não engana. Ele que vá com os porcos, é o que leio ali. Que coisa tão… cristã de se dizer.

E tudo isto porque supostamente o Papa é muito progressista, é de esquerda. Sim, aparentemente o padre Charles Murr considera que se pode estar à esquerda, seja na política, seja na religião. E estes senhores, por essa ordem de ideias, estão mesmo à direita. Qualquer dia começam a celebrar a missa em latim, virados de costas para os crentes. Queixa-se de tudo, que há gente que não se confessa, mas vai comungar, que no funeral de uma pessoa trans, havia ateus e maçons e foram todos comungar. Isto é uma balbúrdia!

Então qual é a queixa central que lhes levou duas horas a discutir apesar de estarem todos à direita religiosa? Comungar com as mãos ou comungar com a boca, conforme aliás, é o tema do documentário supracitado. Esta vossa ateia muito riu com isto! Há fóruns onde fãs acérrimos de obras de ficção discutem teorias com este fervor, mas depois vão todos à livraria mais próxima comprar outros livros e tomar um café amigável. Isso eu entendo. Agora, se o crente leva a hóstia na mão ou se a toma na boca para mostrar reverência ao corpo de cristo, isso já me dá para a perplexidade.

Resumidamente, as pessoas começaram a pensar na porcalhice que é um padre enfiar os dedos nas bocas dos crentes todos. E passou a ser prática comum receber a hóstia na mão e levá-la à boca. Estes padres consideram que isso é desrespeitoso para com o corpo de cristo e acham que o Vaticano agora inventa liturgia. Caberia aqui dizer que tudo o resto que está para trás é igualmente inventado e que a hóstia é só um pedaço do alimento mais sem sabor que se conseguiu criar para o efeito. Foi como assistir a uma partida de Magic The Gathering, mas sem a emoção de saber quem vai ganhar. Só me ocorria que eram dezenas os participantes no chat do YouTube sem noção do quão ridícula é a questão.


Certo é que a piadola lhes correu mal e vieram depois desculpar-se num Tweet (Xweet?). Seriam mais corajosos se assumissem o que disseram. Alguém lhes explique que para alguém ir para o céu, tem que morrer antes. Basta ouvir o restante do conteúdo para entender que consideram que este pontificado é o pior de sempre, e que não gostam do chefe deles. Para um ateu, não seria problema. Faz-mequestionar se estes homens são mesmo crentes ou se são apenas adeptos dos jogos de poder, das fofoquices, do corta na casaca, enfim das cantigas de maldizer. Hei-de confessar-vos (mas não de joelhos), que gosto mais deles assim do que a pregar a palavrinha do senhor. Só não gosto é que ainda haja quem dê importância a isto e nos queira atirar para a Idade Média.

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

2 de Novembro, 2022 João Monteiro

“Vaca é a tua mãe!…”

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na Gazeta

A reacção violenta do actor Will Smith à piada do comediante Chris Rock, o apresentador do espectáculo da entrega dos Óscares em Hollywood, que a televisão mostrou em directo para todo o mundo interessado nas novidades da Sétima Arte, fez vir à tona da minha memória uma experiência que vivi uma vez, há muito tempo. 

Encontrava-me em casa de um amigo que recebeu a visita de um outro seu amigo, um jovem Franciscano. O seu aspecto agradou-me esteticamente, pelo hábito castanho e a sua barba ruiva longa até ao peito, cuja imagem me pareceu arrancada de um retábulo do pintor gótico Fra Angélico. Igualmente como os retábulos, o semblante daquele frade era inexpressivo. Nada de sorriso nem olhar brilhante. Embora de olhos intensamente azuis acinzentados, o seu olhar era baço e a boca não passava de um corte horizontal fazendo fronteira entre o bigode e a barba. 

Quando tenho a oportunidade de me encontrar com um religioso não perco esse momento mágico que me pode permitir aprender algo sobre religião “partidária”, já que, como ateu, não sinto a fé do mesmo modo como a sente um religioso, nem o meu espírito se deleita durante a celebração de uma missa… e enquanto leitor de religião, o que encontro nos livros que escolho é História… a qual não explica o sentimento religioso que, para mim, resulta enigmático! Na presença de um agente religioso, parto do princípio de que aquela pessoa é versada em religião e em todos os elementos que lhe são pertença e dão forma, tornando-o uma enciclopédia viva. 

Abordei o tema do sagrado, o que é matéria da minha admiração mas também do meu desconhecimento. Para início de conversa (a qual esperava frutífera) comecei por dizer que a “coisa sacra” de um, pode não ser (e habitualmente não é) o sagrado de outro que, embora sendo também religioso, “milite” noutra modalidade de fé. Exemplifiquei com o tótem (um tronco de madeira esculpida e pintada) que tem, para o índio norte-americano, o mesmíssimo valor sagrado que uma imagem de Fátima (um tronco de madeira esculpida e pintada) tem para um católico… e nenhum deles dá qualquer importância ao objecto sagrado do outro!… No entanto, enquanto peças de adoração, uma não é menos sagrada do que a outra, e para um antropólogo têm o mesmíssimo valor. Até as capelas quando deixam de ser locais de culto e são reconvertidas para qualquer outra actividade, são “dessacralizadas”… o que quer dizer que o sagrado pode deixar de o ser… ao contrário da Arte que nunca deixa de ser uma obra artística independentemente do lugar onde se encontre, quer esteja exposta ou arrecadada. 

Também as mulheres religiosas do Sri Lanka (Ceilão) adoram as vacas consideradas sagradas. Vi num documentário televisivo um grupo delas rodeando uma vaca que pastava, e quando a rês levantou a cauda (sinal de que ia urinar), elas apressaram-se a recolher a urina num copo que transportavam para o efeito… e beberam-na!… Tal acto é igualmente sagrado para aquelas mulheres… é como tomar a hóstia!… E concluí (talvez erradamente, mas com a intenção de fazer humor, como foi a anedota do apresentador da entrega dos Óscares) que se a imagem de Fátima urinasse, também haveria quem lhe bebesse a urina.

Resposta imediata do jovem Franciscano: “Vaca é a tua mãe”!

Respondi-lhe com uma sonora gargalhada, porque não há nada melhor do que o riso para responder a uma reacção (e provocação) destas. E naquele caso não aprendi nada!… Mas sublinhei o que já sabia: o fanatismo elimina o raciocínio… o que é lixado!… 

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Jose Antonio Alba por Pixabay