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Etiqueta: humanismo

30 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Humilde Hipocrisia das Ovelhas de Deus

Criado com o DALL-E

Religião e humildade são duas palavras que só coexistem em relativa harmonia na mente dos mais ingénuos, dito da forma mais suave possível. Na realidade, tratam-se de forças antagónicas, conceitos incompatíveis e irreconciliáveis, ideias opostas numa batalha fútil e violenta por um meio-termo metafísico que nunca poderá realmente existir.

E isso não pode, nem vai acontecer, porque, quando confrontados com a espantosa imensidão do universo — com cerca de 14 mil milhões de anos, repleto de biliões de galáxias que reduzem a humanidade e o nosso solitário planeta a meros grãos de poeira insignificantes — os crentes insistem que tudo isto foi concebido com eles, e apenas eles, em mente. Uma proposição bastante peculiar, atrevo-me a acrescentar.

Para aqueles que não ousam questionar, que não conseguem perceber a ácida ironia desta embaraçosa contradição, ouvir uma pessoa religiosa afirmar-se como o ser mais humilde do universo pode parecer razoável, até lógico. Afinal, não é isso que sempre lhes foi dito e levado a acreditar?

As pessoas religiosas são vistas como devotas e puras, austeras tanto por fora como por dentro e, claro, intrinsecamente boas. Sim, boas por defeito, o que é um conceito bastante curioso, perpetuado ao longo de milénios por velhos castos e cínicos. No entanto, basta um pouco de reflexão para perceber que os crentes, muitas vezes, consideram-se tão humildes que acabam por não ser humildes de todo.

Pergunto-te agora, a ti, ao leitor — crente ou não —, se alguma vez alguém te disse sentir repulsa pela religião organizada precisamente por esta razão: pela evidente falta de humildade nos textos fundadores de todas as grandes religiões da actualidade e pela arrogância descarada de tantos dos seus seguidores — sejam eles famosos ou não — que não fazem qualquer esforço para parecer minimamente humildes. Certamente consegues lembrar-te de uma situação assim, em algum momento da tua vida.

Talvez tu sejas um deles, um daqueles religiosos que abomina a religião organizada, mas sente-se preso, ancorado à pegajosa ideia de que é necessário algo sobrenaturalmente maior do que nós para se ter sequer uma razão para querer existir, quanto mais gostar de viver. A vida humana é demasiado frágil, e não é fácil, eu sei — todos sabemos, de uma maneira ou de outra. Posso garantir, ainda assim, com alguma certeza estatística, que não estás sozinho neste dilema cósmico.

Considera agora, a título de grandes exemplos de auto-abnegação em nome do divino, os nacionalistas cristãos americanos: a sua humildade, como seria de esperar, não existe, é nula, e mesmo assim afirmam, em voz alta e ameaçadora, ser o epítome dela. Quantos milhões de americanos partilham desta ideologia? E quantos outros cristãos, espalhados pelo mundo, partilham desta magnífica concepção de humildade?

Acredito que a minha alma encontra prazer na ideia de uma ironia cósmica. Deleita-se especialmente com as manobras metafóricas circenses executadas pelas milhares, senão milhões, de religiões inventadas pela humanidade ao longo dos séculos — e que continuam a surgir diariamente — para justificar a sua ligeira insanidade.

Quando eu era criança, rodeado por tantas ideias aterradoras e absurdas, vendidas como verdades absolutas, a hipocrisia evidente de todos aqueles adultos incomodava-me profundamente. Desde o padre, de aspecto cadavérico, que afirmava ter uma linha directa com Deus e que, supostamente, falava com Ele em público em nosso nome, até às pessoas que se reuniam para o ouvir, sem achar nada de estranho na audácia de tal afirmação.

E depois havia os acólitos, os oradores e os leitores, cuidadosamente escolhidos ou que se ofereciam para ler nas missas, quase sempre os mesmos, que repetiam as escrituras diretamente do púlpito e, como os outros, transpiravam humildade em abundância.

É importante salientar também o papel que o cinema — e outras formas de arte e entretenimento, incluindo a literatura — têm desempenhado na promoção da ideia aparentemente atraente de que temer a Deus torna alguém automaticamente humilde. Nos filmes, por exemplo, a personagem religiosa é sempre o herói, o perseguido, o verdadeiro crente, o mártir. E, claro, todos parecem saber que submeter-se intelectual, mental e, atrevo-me a dizer, espiritualmente a um ditador celestial resulta, naturalmente, em pessoas genuinamente boas.

Pessoas dignas, virtuosas e, claro, supremamente e quase inevitavelmente humildes.

Contempla agora o cristão, que se vê, de maneira relativamente suspeita, como uma ovelha ansiosa por ser guiada por um pastor. Com uma mão, ergue orgulhosamente a bandeira branca da modéstia e declara a sua profunda insignificância perante os ilimitados e mágicos poderes do seu criador. No entanto, com a outra mão, a transpirar de antecipação, gesticula vigorosamente e afirma, com inabalável convicção e em tons ameaçadores, que faz parte do seleto grupo capaz de interpretar os planos de um ser que, por definição, deveria estar além de qualquer entendimento humano.

Não será a humildade religiosa o exemplo perfeito de como palavras e ideias erradas podem distorcer completamente o verdadeiro significado de um termo? Quanta vaidade deve ser disfarçada — muitas vezes de forma pouco convincente, como qualquer observador atento notaria — para alguém afirmar ser o escolhido de um plano divino? E quanta dignidade pessoal precisa de ser sacrificada para se viver num estado perpétuo de auto-recriminação, constantemente obcecado pelos próprios pecados?

A contradição torna-se ainda mais flagrante e amarga quando consideramos a encantadora doutrina do Inferno — introduzida pelo manso e incrivelmente humilde Jesus do Novo Testamento.

Como pode alguém reconciliar a ideia de um deus de amor infinito que, subtilmente, também cria um lugar de tormento eterno e concede apenas a uns poucos eleitos o poder de decidir quem merece ir lá passar o resto da eternidade? É difícil imaginar a arrogância necessária para acreditar num conceito tão nefasto como este. Espero, com algum otimismo, não ser o único a pensar que dizer a uma criança — ou a qualquer outra pessoa, na verdade — que está destinada ao Inferno não é apenas uma violenta afronta à ética mais elementar, mas também uma contradição flagrante da humildade que tanto afirmam possuir.

Satisfeitos com a fragilidade da sua quebradiça virtude, os fiéis insistem em aborrecer-nos a todos e dispensam salvação com entusiasmo. Contudo, e sem surpresas, escorregam na imunda poça de narcisismo que deixam pelo caminho, completamente alheios às evidentes contradições naquilo que pregam. Esta mentalidade está tão impregnada de auto-importância que faz o antropocentrismo tradicional parecer humilde, em comparação.

Insisto que a modéstia religiosa não passa de uma pantomima de integridade, uma expressão de superioridade disfarçada, incapaz de olhar para o seu reflexo sem se deslumbrar com a sua própria imagem moral distorcida.

A mentalidade religiosa regozija-se no brilho vacilante da sua própria virtude em decadência, e a luta constante no interior do crente, entre a auto-glorificação e a auto-negação, revela uma das mais perturbadoras contradições da condição humana. Não se deixem enganar, nem os deixem escapar impunes.

15 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Premissa Filosófica de um Mundo sem Deuses

A Religião Envenena a Ética e a Moralidade

Criado no DALL-E

Sinto sempre um moderado incómodo quando alguém, um crente, um temente a Deus, me pergunta como é possível eu ter algum conceito de moralidade e ética sendo ateu. Pior ainda, insultam-me quando ficam incrédulos por eu não me levantar todos os dias com a magnífica ideia de deambular pelas ruas de Lisboa, a pisar grávidas, a matar idosos e a violar tudo o que me aparece pela frente.

Sem grande surpresa, parecem ficar mais tranquilos quando lhes digo que não, que não ando pelas ruas, seminu e a conduzir um jipe com cabeças humanas como bandeiras, a matar pessoas aleatoriamente numa busca eterna por mais gasolina. No fim, e se fizerem um esforço real para me conhecer, são sempre confrontados com a crua ironia das perguntas que me fizeram. E, provavelmente, perguntar-se-ão de onde veio essa ideia.

Esta genial proposição é uma falácia antiga que persiste. Um mito disseminado por mentes incautas ao longo dos milénios. Uma história que insiste em afirmar que o ser humano só não faz exatamente o que lhe apetece, quando lhe apetece — como torturar, matar, mentir, cobiçar, invejar ou semear o caos — porque um ou mais criadores, ou criadoras, decidiram dotar os seus brinquedos de carne preferidos com certos mecanismos de moralidade espiritual.

Agora, tu, se achas que a moralidade não pode existir sem fé num ou mais deuses, não estás apenas profundamente enganado; estás também a aproximar-te, e sorrateiramente, da ignorância.

Os crentes argumentam fervorosamente que, sem Deus, esse suposto modelo de bondade, justiça eterna e compaixão, não pode haver moralidade. Contudo, ignoram uma verdade simples e, arrisco a dizer, inegável: os seres humanos possuem um sentido inato de empatia e de humanidade partilhada. Imagino-o como uma bússola interna que nos guia, sem necessidade de divindades rancorosas a interferir de maneira suspeita nas nossas consciências.

Olhemos para os infiéis, os agnósticos, os ateus. Eles não precisam de mandamentos divinos gravados em pedra na Idade do Bronze para agir com bondade; fazem-no por genuíno altruísmo, não achas? Mesmo quando há uma agenda mais egoísta por detrás de um acto de compaixão, isso apenas reforça a ideia de que este é um mecanismo que evoluiu com a nossa espécie. Há vantagens em ser bom.

As boas acções não necessitam de recompensas divinas nem de promessas de uma vida após a morte repleta de prazeres celestiais; são valiosas por si mesmas. A moralidade e a ética não são reflexos das doutrinas religiosas, como alguns crentes podem tentar fazer-te acreditar. Estão profundamente enraizadas no nosso ADN, produtos de instintos sociais e intelectuais que evoluíram ao longo do tempo.

Assim como as árvores antigas têm raízes profundas, o Homo sapiens prosperou através da cooperação e do altruísmo — virtudes que existiam muito antes de a religião organizada surgir. Atribuir, portanto, a moralidade humana a uma fonte divina é, claramente, uma ideia não só perigosa, mas também incrivelmente estúpida.

Consideremos o conceito de Inferno, introduzido apenas no mais afável Novo Testamento. Este é um exemplo evidente de como a religião pode distorcer a moralidade de formas cada vez mais bizarras. A ideia de uma condenação eterna no pior lugar do cosmos por se desviar de uma crença, ainda que irrelevante para o mundo secular, não é apenas moralmente contraditória; é uma flagrante violação da razão e da justiça.

A ética humanista considera este conceito não só ridiculamente ultrapassado, mas também completamente absurdo. Indigno de ser levado a sério. Porém, os crentes continuam a agarrar-se a esta macabra fantasia medieval, ainda hoje defendida acerrimamente por grande parte do clero. 

Até alguns descrentes aceitam esta genial ideia, e acreditam que os seus filhos precisam de temer um demónio com cascos, chifres e um tridente para se comportarem adequadamente. A estes digo: pensem melhor.

Pondo de lado as verdadeiras teocracias que ainda existem no mundo, a maioria das religiões de hoje apresenta-se de forma mansa, amável e alegre, oferecendo, com floreados metafóricos, consolo e elevação espiritual. Mas não devemos esquecer o comportamento bárbaro que exibiram quando detinham verdadeiro poder, impondo as suas vis crenças das quais ninguém podia escapar — ainda há poucas décadas atrás, aliás.

A Bíblia, por exemplo — e apenas para evitar referir todos os manuais oficiais das diversas religiões que têm assolado a humanidade desde sempre, e continuam a fazê-lo — reflete práticas sociais e morais de tempos antigos, quando se sabia muito pouco sobre o mundo, quanto mais sobre o cosmos. Justificava acções como a escravatura e a limpeza étnica, que hoje são naturalmente consideradas profundamente imorais e criminosas.

À medida que o nosso entendimento do cosmos e de nós próprios evolui, também evolui o nosso sentido de moralidade e ética. Nunca foi tão claro que os ensinamentos religiosos procuram impedir este progresso, impondo dogmas rígidos, arcaicos e trancados pela inefável e austera palavra de Deus.

A fé, como nos ensina a história da humanidade, conduz à mesquinhez, ao egoísmo e à ignorância, promovendo a obediência cega em vez de uma verdadeira responsabilidade moral e intelectual.

A verdadeira moralidade não se encontra em textos sagrados, mas na nossa capacidade inata de empatizar com o nosso semelhante. Consiste, fundamentalmente, em respeitar e dignificar todos os seres vivos, guiados pelo nosso Daemon interno, como diria Sócrates

Esta é a ética de um mundo sem deuses, que abraça o humanismo secular e que se dedica ao máximo bem-estar de todos os seres vivos, através da ciência, da razão e da nossa própria humanidade.

12 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Religião e do Sequestro da Alma Humana

Gosto de pensar que fui aluno de Carl Sagan, embora isso seja algo que muitos outros como eu poderão também facilmente afirmar. Cresci a ler os seus livros, a ver os seus documentários — Cosmos, por exemplo —, e apaixonei-me, tal como tantos outros, pela beleza da ciência por causa dele.

Arrisco a dizer que Carl Sagan foi quem me mostrou pela primeira vez o que era o numinoso, o que significa, o que representa e quão importante é. Senti-o pela primeira vez com ele.

No seu livro Pale Blue Dot, o Carl Sagan oferece ao mundo uma reflexão profunda, inspirada por uma fotografia que ele mesmo propôs que fosse tirada pela sonda Voyager 1, em 1990.

À medida que a sonda se distanciava para além das gélidas fronteiras do nosso sistema solar, a câmara foi então ajustada para capturar uma imagem da Terra. O resultado foi uma fotografia que nos revelou não mais do que um minúsculo ponto azul claro na escuridão cósmica. Acredito que este gesto aparentemente simples tornou-se uma sinopse visivelmente crua da nossa fragilidade, e da nossa poética insignificância no panorama universal.

Olha novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos aqueles que amas, todos os que conheces, todos aqueles de quem já ouviste falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram, viveram as suas vidas. O agregado do nosso júbilo e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as “superestrelas”, todos os “líderes supremos”, todos os santos e pecadores na história da nossa espécie viveram ali — num grão de pó suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensa nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os senhores momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensa nas crueldades sem fim cometidas pelos habitantes de um canto deste píxel sobre os habitantes de algum outro canto, quão frequentes são os seus mal-entendidos, quão ávidos estão em matar-se uns aos outros, quão fervorosos são os seus ódios.

— Carl Sagan, Pale Blue Dot

Quando fui confrontado com esta incongruência entre o nosso solipsismo inato, e a ínfima impressão que deixamos no cosmos pela primeira vez, cresci.

Lembro-me do momento preciso, pois senti que esta discordância era um alerta valioso sobre a futilidade dos nossos conflitos terrenos, sobretudo quando ponderados à luz da escala incomensurável do universo. A revelação foi um momento de exaltação intelectual, um Eureka pessoal que potenciou e inspirou positivamente uma já irreversível e eterna viagem por mais conhecimento. 

Acredito não ser o único primata a ter sentido o mistério do transcendental, a ter experimentado algo maior que eu, mais importante e fantástico. Tenho a certeza disto.

Há mesmo momentos especiais nas nossas vidas em que o cosmos parece alinhar-se de forma quase mágica, e muitas vezes a nosso favor. Um breve instante em que a realidade deixa de ser o que parece e revela algo que ultrapassa o mundano e o habitual. Faz-nos sentir grandiosos, especiais, únicos, poderosos, extasiados, ansiosos, como tendo sido o melhor dia da nossa vida. O melhor evento, o quadro mais trágico, a canção mais lírica, o poema mais emocional, o livro mais bem escrito, etc.

Muitos, ao longo de milénios, têm interpretado estes vislumbres do transcendental como carícias divinas. Empurrões espirituais que levam muitos a percorrer caminhos ditos sagrados — seja pelo sacerdócio, pela conversão ao Islão, ao Hinduísmo, ao Judaísmo, ou por qualquer outra senda delineada pelo desonesto carimbo da religião.

E é precisamente aqui que a religião comete talvez a sua maior afronta: a audaciosa presunção de que apenas através dela, com os seus rituais, dogmas e insanidade em geral, é possível ao ser-humano experimentar o numinoso e sentir-se parte de algo maior e mais magnífico.

O transcendental, o numinoso, é aquela sensação que nos liga ao sublime, um grito trovadoresco que nos expõe a algo incrivelmente profundo. Desafia por vezes a lógica e leva-nos a confrontar uma realidade vasta em nuances e, por vezes, indescritível. E, ao contrário do que as religiões têm pregado há milénios, não são necessários mediadores, sacerdotes ou símbolos e rituais religiosos para o experienciar.

Este radar que temos para o detetar e sentir é intrínseco, uma parte essencial de todos nós, independentemente da fé — ou da ausência dela. Ao longo do tempo, a religião apoderou-se desta experiência profundamente humana da pior maneira possível. Ao sequestrar a nossa sensação de esplendor, a religião não só a conspurca continuamente e desde sempre, como também nos faz crer, de forma insidiosa, que apenas através das suas más ideias e práticas arcaicas poderíamos ter acesso a esta dimensão essencial da nossa existência.

Mas será que Michelangelo, o famoso pintor, ao criar as suas obras-primas sob a tutela financeira do Vaticano, estava realmente a expressar inspiração oriunda de fé fervorosa? Ou terá sido simplesmente a sua genialidade, a sua ligação natural ao numinoso, que brilhou apesar das imposições religiosas? Sabemos sequer se este artista era realmente devoto? Ou estaria ele apenas a tentar ganhar a vida?

A mente religiosa afirma ser impossível criar arte majestosa, música inspiradora ou escrever algo verdadeiramente belo e puro sem uma ligação íntima, e de forma altamente suspeita, com um ou mais deuses. Discordo.

Reivindicar algo tão humano como seu é nada menos que uma mentira, uma narrativa construída por homens prepotentes, cínicos, virgens e moralistas, para manter o seu domínio sobre as nossas vidas — aqui, no mundo real e mortal, onde conseguem verdadeiramente exercer o seu poder sobre as mentes mais incautas e controlá-las. Talvez seja esta a razão pela qual está tão profundamente enraizada na nossa psique colectiva, e tão difícil de erradicar ou domesticar.

Um ateu, um agnóstico, qualquer descrente, qualquer pessoa com cérebro e neurónios relativamente activos, tem tanta capacidade de sentir a beleza numinosa como qualquer devoto. A verdade é que esta manifesta-se de inúmeras formas que nada têm a ver com a institucionalização do sagrado.

Está presente na ciência que revela os mistérios do universo, na arte que expressa a profundidade e dificuldade da experiência humana, e nos actos de coragem e altruísmo que nos mostram o melhor da essência do ser humano.

A arte, a ciência, a exploração do desconhecido — todas estas são formas legítimas e poderosas de experienciar o numinoso, muitas vezes de forma mais pura e direta do que qualquer conjunto de regras ou dogma religioso permitiria. E, por conseguinte, com maior e melhor utilidade a curto e longo prazo.

Quando a religião — qualquer uma delas — afirma possuir o monopólio do transcendente, está apenas a tentar, de uma maneira extremamente venenosa, controlar a nossa relação com o mistério e a beleza do universo.

Acredito que chegou a hora de a resgatarmos, assim como a poesia da existência, das garras da religião, e de a reclamarmos como nossa, como parte da nossa herança humana universal.

O numinoso é livre.

29 de Abril, 2021 João Monteiro

Mulher Mártir

Texto de Onofre Varela.

Nawal el-Saadawi (1931-2021) acabou de nos deixar. Era egípcia, médica e escritora. Escreveu dezenas de livros abordando temas tabu, como sexualidade e prostituição, e era líder da luta pelos direitos da mulher no mundo árabe. 

Foi perseguida e detida várias vezes por pensar de modo diverso do estabelecido numa sociedade machista, e divulgar o seu pensamento. Teve os seus livros confiscados e proibidos, tal como em tempo de ditadura Salazarista por cá se fazia. Na sua biografia tem um discurso semelhante ao da escritora espanhola Cristina Fallarás, aqui divulgado no último artigo. Nawall cresceu numa cultura patriarcal onde as raparigas são sujeitas a vários abusos desrespeitadores da mulher, como são o casamento infantil e a mutilação genital. Sofreu tal mutilação por imposição familiar e tornou-se activista contra tão aberrante procedimento praticado em nome de uma tradição cultural criminosa. Na verdade a mutilação genital é uma condenação ao sofrimento da mulher por toda a vida, impedindo-a do prazer sexual, o qual é substituído por dores sempre que tem relações. 

Escreveu dezenas de livros abordando temas tabu, como sexualidade e prostituição. Observando o mundo pleno de sociedades patriarcais e homófobas, teve uma frase semelhante à de Cristina Fallarás: “Depois de viajar por todo o mundo, descobri que as raparigas são educadas de uma maneira muito parecida – estamos todas no mesmo barco. O sistema patriarcal, capitalista e religioso é universal”. 

Desta universalidade nasce o desrespeito pela mulher. Na nossa sociedade (no Portugal de 2021) ainda se discute o óbvio: se a mulher que executa o mesmo trabalho de um homem, deve receber um ordenado do mesmo valor! As tabelas salariais são sempre mais baixas para a mulher!… Esta discriminação não significa nada mais que não seja atribuir o estatuto de menor importância à mulher, e tem origem em milenares conceitos religiosos. Se no mundo ocidental (onde tanto se fala no sentido do humanismo cristão) esta verdade existe, em países muçulmanos o drama é substancialmente ampliado.

Lembro um caso acontecido na Turquia, onde os chamados “crimes de honra” ainda são entendidos como o eram na medievalidade. No ano 2000 os jornais deram conta do caso de uma rapariga turca, de 14 anos, ter cometido a imprudência de ir ao cinema com umas amigas sem a prévia autorização da família… o que era uma vergonha!… Em reunião caseira de machos foi sentenciada a pena capital para a “portadora da vergonha familiar”, e um sobrinho da jovem, também menor, foi encarregado de executar a “justiça”. Sem pestanejar nem se interrogar por que haveria de fazê-lo, o moço aceitou naturalmente a incumbência como um ritual a ser cumprido sem questionamento. Provavelmente até se sentiu honrado por ter sido escolhido para aquela tarefa que lhe daria mais valia curricular de macho. Saiu da sala, passou pela cozinha onde pegou numa faca, foi-se à tia… e degolou-a!… E a Justiça turca nada pôde fazer… por aceitar a figura do “lavar da honra com sangue”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

19 de Janeiro, 2011 Eduardo Patriota

Prefeito evangélico no RJ acusado de impedir auxílio a vítimas católicas

As religiões continuam dando claras evidências de que vieram aqui para unir a humanidade, já que somos todos “filhos do criador”.

No Sudão, a população da capital Juba votou com 97,5% a favor da separação do Sul do Sudão. As autoridades de 10 estados do Sul do Sudão apuram os resultados dos diferentes condados locais para este referendo que levará à divisão do Sudão, o maior país da África, dividido entre o Norte, muçulmano e em grande parte árabe, e o Sul, afro-cristão.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro em meio às tragédias, uma denúncia grave. Eu sei, é denúncia. Mas em se tratando de querela entre religiosos eu não ouso duvidar da veracidade. A prefeitura de Teresópolis está sendo acusada de impedir a distribuição de donativos por parte da Igreja Católica. Segundo o padre Paulo Botas, integrantes da comunidade católica que foram até o estádio Pedrão ouviram de funcionários municipais que “nenhuma igreja católica de Teresópolis iria receber doações”.

Falaram isso sem o menor constrangimento. O prefeito (Jorge Mário Sedlacek) é evangélico e não quer que a ajuda vá para os católicos. As pessoas se cadastraram, mas foram discriminadas. Nessa situação tão grave, não tem confissão religiosa, não pode ter essa competição ideológica. Isso é um pecado mortal, ainda mais vindo de pessoas cristãs“, disse o padre, da igreja do Sagrado Coração de Jesus de Barra do Imbuí, área bastante afetada pelas chuvas.

Sem querer entrar em detalhes sobre a religião do prefeito, o padre Mario José Coutinho, decano da Diocese de Petrópolis, disse que a situação é de boicote à Igreja Católica. “É surreal, uma ofensa, uma vergonha, uma agressão à humanidade. Transformaram uma questão humanitária em religiosa“, criticou.

Vale lembrar que a comunidade evangélica está usando a tragédia para fazer propaganda de seu esforço na ajuda às vítimas. Realmente, estão fazendo um trabalho louvável. Mas isso não justifica impedir os outros de também ajudar. Isso aqui não é uma competição, é um desastre humanitário.

22 de Junho, 2009 Miguel Duarte

Associação Humanista em Preparação

homem-humanismo1

“O Humanismo é uma postura de vida democrática e ética, que afirma que os seres humanos têm o direito e a responsabilidade de dar sentido e forma às suas próprias vidas. Defende a construção de uma sociedade mais humana, através de uma ética baseada em valores humanos e outros valores naturais, dentro do espírito da razão e do livre-pensamento, com base nas capacidades humanas. O Humanismo não é teísta e não aceita visões sobrenaturais da realidade.”

IHEU – Minimum Statement on Humanism

Após a manifestação de interesse ao longo dos últimos meses de um grande número de pessoas, foi aberta uma fase de pré-registo de associados para a recolha de manifestações de interesse na futura associação Humanista. Após ser atingido um número mínimo de interessados, irá ser marcada uma assembleia geral fundadora.

A associação terá como principais objectivos:

  • Defender a liberdade à não religião e promover os valores humanistas nas mais variadas áreas (ex: ética, direitos humanos, igualdade entre os sexos, laicidade, casamento, liberdade de expressão, educação);
  • Acabar com quaisquer formas de discriminação que tenham como base a religião, particularmente aquelas que afectem as organizações não religiosas ou os indivíduos sem religião;
  • Acabar com quaisquer privilégios concedidos às organizações religiosas e exigir a igualdade de tratamento para as organizações não religiosas sempre que faça sentido (ex: televisão, representação em órgãos consultivos públicos);
  • Educação imparcial no que toca às questões religiosas, que se foque nos valores humanos ou a oferta de ensino com base nos valores Humanistas em alternativa ao ensino religioso;
  • Oferecer alternativas cerimoniais humanistas às religiosas (ex: funeral, atribuição de nome a uma criança, casamento / união afectiva);
  • Criar eventos educativos para adultos e crianças na área do Humanismo;
  • Promover o debate de ideias e a criação de redes entre a população não religiosa em Portugal;
  • Promover a filantropia a organizações não religiosas em detrimento das que promovem uma fé específica;
  • Provar junto da sociedade civil que a postura não religiosa é uma postura de vida tão ou mais merecedora de respeito que a postura religiosa;
  • Ser a voz de todos aqueles que não sendo religiosos consideram mesmo assim ter uma ética a defender, particularmente num país em que a religião continua a ter inúmeros privilégios e uma força superior à sua representatividade.

Caso esteja interessado em fazer parte do projecto, pode consultar o actual site “Humanismo Secular Portugal” e fazer o seu pré-registo (sem compromissos) em http://www.humanismosecular.org/inscricao.

21 de Junho, 2009 Miguel Duarte

Encontro Ateísta e Humanista de Junho

Algumas fotos do Encontro Ateísta e Humanista, uma sessão de observação astronómica, de ontem à noite.

No âmbito das comemorações do Ano Internacional da Astronomia 2009 foi organizada uma sessão de observação nocturna onde se discutiu, de um ponto de vista científico, a origem do universo e dos astros, além de tendo sido realizadas observações usando um telescópio colocado no local (Praça do Império, em frente ao Planetário Calouste Gulbenkian).

Fomos guiados na discussão por Mário Ramos, astrónomo do Núcleo Interactivo de Astronomia.