Loading

Etiqueta: História

8 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – V

Nos textos anteriores referi cinco condições que um conjunto de relatos deveria respeitar para justificar a confiança de um historiador nos eventos relatados:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

No segundo texto mostrei que a maioria dos académicos acredita que não são verificadas as duas primeiras condições, no terceiro mostrei o mesmo em relação às duas condições seguintes, e no quarto texto mostrei o mesmo em relação à quinta condição.

Existe, no entanto, uma outra condição que justifica não apenas uma falta de confiança no relato, mas uma confiança activa na sua falsidade – a contradição com outros factos históricos estabelecidos.

Claro que, se um conjunto de fontes que, por respeitar todas as cinco condições mencionadas, mereça a nossa confiança relatar algo contrário a factos históricos estabelecidos, o historiador fica perante um problema. Terá de avaliar se as fontes usadas para estabelecer esse facto merecem mais ou menos confiança que as novas fontes analisadas, e essa avaliação pode ser difícil.

Mas se um conjunto de fontes que não mereça a nossa confiança (por várias razões diferentes) relatar algo contrário a factos históricos estabelecidos, o historiador terá de concluir, sem grandes hesitações, que o relato feito por estas fontes – por equívoco ou por outras razões – é falso. A fonte como um todo passa a merecer ainda menos confiança.

Isto ocorre com os evangelhos. Veja-se o caso do massacre dos inocentes referido em Mateus:

«Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias: “Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem”.
»

É de notar que não existe qualquer referência histórica a um evento desta magnitude. Nenhum cronista, nenhum outro relator mencionou este alegado massacre de dimensões «bíblicas». Mas, mais que isto, este episódio coloca o nascimento durante o reinado de Herodes o grande, o qual terminou no ano de 4 a.C.

Veja-se agora esta passagem de Lucas relativa ao recenseamento de Quirino:

«E aconteceu naqueles dias que saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo se alistasse (Este primeiro alistamento foi feito sendo Quirino presidente da Síria). E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade.
E subiu também José da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de David, chamada Belém (porque era da casa e família de David), a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.
»

Existem referências históricas ao recenseamento de Quirino. Mas ele terá ocorrido nos anos 6-7 d.C.
Ora ninguém pode ter nascido simultaneamente antes de 4 a.C., e em 6 ou 7 d.C.

E as contradições com os factos históricos estabelecidos não terminam por aqui. Os romanos não faziam receseamentos simultâneos em todo o Império, e certamente não exigiam que famílias inteiras retornassem às terras dos seus ancestrais.

Nos comentários aos textos anteriores, vários crentes alegaram que nada têm a obstar à falta de confiança que os evangelhos merecem do ponto de vista estritamente histórico. Que, ao invés de documentos históricos fiáveis que nos permitam elucidar com alguma confiança a respeito dos factos ocorridos, são descrições míticas, com um objectivo simbólico e teológico, e que é como tal que devem ser lidos e analisados.

No que diz respeito ao ponto de vista estritamente histórico, estamos certamente de acordo.

5 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – IV

No primeiro texto a este respeito concluí que, para que um conjunto de relatos mereça muita confiança em relação à descrição de um ou mais eventos, estes devem corresponder às seguintes condições:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

No segundo texto abordei a posição da generalidade dos académicos que estudam este assunto face ao cumprimento, ou não, das primeiras duas condições. Concluí afirmando que a maioria dos académicos acredita que os evangelhos não foram escritos por quem observou os eventos, e a quase totalidade acredita que os evangelhos a que temos acesso foram redigidos décadas depois dos eventos neles descritos.

O terceiro texto abordou a posição dos académicos face às duas condições seguintes. Concluí afirmando que a maioria dos académicos considera que os evangelhos não correspondem a fontes independentes entre si, e ninguém coloca em causa que a sua autoria seja parte interessada no relato que é feito.

Basta que uma condição entre várias não se cumpra para que a conjunção delas fique por cumprir. Ainda assim, pretendo analisar neste texto a quinta condição: a consistência dos vários evangelhos entre si.

Diz-se que quando testemunhas diferentes apresentam um relato alargado que não apresenta qualquer detalhe inconsistente, isso pode ser indício de que o relato não é verídico – tratar-se-á de uma narrativa previamente combinada entre todos aqueles que a relatam. Os mesmos eventos, experienciados por pessoas diferentes, tendem a ser relatados de forma diversa, e como cada relato sofre naturalmente algumas distorções (detalhes que foram mal vistos, mal recordados, ou mal comunicados), seria uma enorme coincidência que vários relatos não apresentassem nenhuma inconsistência de detalhe.

É importante, no entanto, notar que é precisamente porque desconfiamos da capacidade humana para relatar em eventos com precisão absoluta que esperamos encontrar alguma inconsistência nos detalhes. Assim, nestes detalhes inconsistentes ninguém poderá justificar elevada confiança.

No que diz respeito às questões importantes, no entanto, espera-se consistência entre os testemunhos. Se os testemunhos não são consistentes, eles não merecem confiança. Repito: se temos um conjunto de relatos de um determinado evento, e tais relatos apresentam várias inconsistências naquilo que não pode ser visto como um detalhe, então nenhum dos relatos merece confiança.

Qual é a situação dos evangelhos? As diferenças entre os quatro evangelhos, no que diz respeito a aferir os factos históricos ocorridos, são de detalhe, ou são significativas? Peço ao leitor que considere as questões que Bart Ehrman coloca a este respeito:

Em que dia morreu Jesus? Antes ou depois da ceia Pascal? E a que horas? Carregou sua cruz sozinho, ou recebeu a ajuda de Simão? Ambos os ladrões achincalharam Jesus, ou só um deles o fez, e o outro defendeu Jesus? A cortina no Templo rasgou-se antes ou depois de Jesus morrer?

Quem foi ao túmulo no terceiro dia? Foi Maria sozinha, ou foi Maria com outras mulheres? Se foi Maria com outras mulheres, quantas mulheres foram? Que mulheres foram? A pedra estava fora do sítio quando chegaram, ou não? O que viram no túmulo? Um homem? Dois homens? Ou um Anjo? O que é que lhes foi dito para dizer aos discípulos? Deveriam ficar em Jerusalém, ou ir à Galileia? As mulheres contaram o sucedido a alguém, ou não? Os discípulos mantiveram-se em Jerusalém? Ou partiram para a Galileia de imediato?

Todas estas respostas dependem do evangelho em questão. A todas elas são dadas respostas explícitas contraditórias em evangelhos diferentes.

E Bart Ehrman nem refere uma série de outras: Jesus foi trazido primeiro perante Caifás ou Anás? Esteve silencioso perante Pilatos ou não? O que dizia o sinal sobre a sua cabeça? Jesus bebeu na cruz? Quem enterrou Jesus? Quais as últimas palavras de Jesus? Madalena reconheceu Jesus quando o viu? E quando Jesus morreru, «Abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos»?

É possível encontrar mais de 400 inconsistências, grande parte delas relativas a questões que não poderão ser consideradas «detalhes», entre os diferentes evangelhos, ou um número superior se considerarmos ainda os Actos dos Apóstolos.

18 de Fevereiro, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – III

No primeiro texto a este respeito concluí que, para que um conjunto de relatos mereça muita confiança em relação à descrição de um ou mais eventos, estes devem corresponder às seguintes condições:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

No texto anterior abordei a posição da generalidade dos académicos que estudam este assunto face ao cumprimento, ou não, das primeiras duas condições. Concluí afirmando que a maioria dos académicos acredita que os evangelhos não foram escritos por quem observou os eventos, e a quase totalidade acredita que os evangelhos a que temos acesso foram redigidos décadas depois dos eventos neles descritos.

Basta que uma condição entre várias não se cumpra para que a conjunção delas fique por cumprir. Ainda assim, pretendo analisar neste texto se os evangelhos verificam as duas condições seguintes – serem da autoria de parte desinteressada, e serem de fontes independentes entre si.

Independência das Fontes

Tanto quanto se sabe, os evangelhos emergem da comunidade cristã, que, apesar da seperação geográfica e da informalidade da organização inicial, mantém um grau de união no que diz respeito aos ritos, às crenças, aos valores, que o concílio de Jerusalém procura consolidar. Esta origem, por si, é suficiente para rejeitar a independência destas fontes umas face às outras.

Acrescente-se que, no que diz respeito à origem dos evangelhos segundo S. Lucas e segundo S. Mateus, a maioria dos académicos subscreve a hipótese das duas fontes, segundo a qual os mesmos teriam sido baseados no evangelho segundo S. Marcos e num hipotético documento Q ao qual não temos acesso. Outros subscrevem a hipótese das quatro fontes, onde novamente os evangelho segundo S. Lucas e S. Mateus teriam sido baseados no evangelho segundo S. Marcos, no documento Q, e ainda em outros dois documentos aos quais não temos acesso. No que diz respeito ao evangelho segundo S. João, poucos disputam que o seu autor teve acesso aos restantes evangelhos.

É assim claro que os quatro evangelhos não constituem várias fontes independentes.

Autoria desinteressada

Creio que poucos disputarão o incumprimento desta condição. Ela acontece a dois níveis. Em primeiro lugar, mesmo que os evangelhistas tivessem procurado aferir e descrever os factos de forma independente e desinteressada, ser-nos-ia sempre impossível garantir que o tivessem conseguido. Aliás, são os crentes cristãos os primeiros a laudar a componente transformadora e radical da «Fé em Cristo», e o seu impacto emocional profundo.

Em segundo lugar, nem sequer era essa a intenção dos autores dos evangelhos. Estes foram escritos não com o propósito de efectuar uma descrição desinteressada dos factos ocorridos, mas sim de apelar à conversão dos povos à «Fé em Cristo». Nesse sentido, dada a autoria e o propósito, os evangelhos não se limitam a não cumprir esta condição – eles estão o mais longe possível do seu cumprimento.