Loading

Etiqueta: História

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

8 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Somos evoluídos em relação a quê?!…

No início da escrita deste texto comecei por escolher para título a frase: “A História diz-nos que Deus é perigoso”. Mudei-o depois… mas na verdade, entendido como poder, o conceito de Deus é tão perigoso quanto qualquer outro poder quando ele é imposto como paradigma da “Verdade Absoluta”, obrigando à sua submissão sem limites nem interrogações, como são exemplo não só os credos religiosos, mas também o Fascismo, o Nazismo e o Comunismo, ou qualquer ideologia de Direita-extremista ou Teocrática.

A confirmar a perigosidade do conceito de Deus, estão os extremistas islâmicos que, em nome de Deus, cometem os mais hediondos crimes, desrespeitam as mulheres e escravizam as crianças. No capítulo das crianças, e na Política, Putin faz o mesmo, escravizando a mente dos menores roubados às famílias ucranianas após a invasão da Ucrânia, submetendo as crianças raptadas a “lavagens cerebrais”; na China de Xi Jinping faz-se igual ao Povo Uigur – nas apelidadas «escolas de reeducação» – para que os “reeducados” pensem conforme o que o ditador quer que se pense, destruindo a identidade cultural do povo Uigur.

Por seu lado, o “poder dos deuses” sempre foi ditadura persecutória, explorado pelos líderes das comunidades que o usavam (e usam) para oprimir o Povo, conseguindo a sua subserviência ao poder temporal, amedrontado com o castigo divino. Os credos religiosos subjugam-nos desde a Antiguidade mais remota, passando pela Idade Média (quando a Igreja era a “dona” das governações e coroava reis a seu contento) até aos nossos dias e à nossa porta.

É neste sentido que deve ser entendida a frase: “A História diz-nos que Deus é perigoso”. Fora deste contexto de subjugação a um deus (ou a qualquer outro poder ditatorial), numa sociedade sadia dispensadora da droga do divino e liberta de ditaduras políticas opressoras que impõem o pensamento único, uma corrente de ar é bastante mais perigosa para um corpo desprotegido… e Deus vale zero (os ditadores valem menos que zero).

Embora hoje o poder da religião continue a ser praticado ao serviço dos vários interesses que comandam a sociedade em que nos inserimos, estamos numa posição diferente daquela em que viveram os povos de outros tempos sob a ditadura dos sacerdotes… mas não estamos melhores!… Hoje não são apenas as religiões que dirigem a vontade dos povos; os partidos políticos e os grupos económico-financeiros também fazem parte da lista dos exploradores da boa-fé das populações.

Somos comandados pelos poderes (a maioria das vezes constituídos pelas piores pessoas) que dominam a sociedade e nem nos damos conta de que são muitos. Na verdade, quando um anónimo cidadão temente a Deus ajoelha no templo em frente ao altar do santinho da sua devoção, ou ouve o guru da seita que lhe promete felicidade eterna, julga fazê-lo perante a divindade. Foi isso que lhe disseram em menino e é nisso que ele acredita. Mas na verdade ajoelha-se perante um Poder: o poder da Igreja e das modernas seitas que amarram as mentes crentes à ideia opressora de Deus usada pelos exploradores da fé.

A seguir vêm todos os outros poderes, e não é raro a própria entidade patronal (a quem o temente a Deus vende a força do seu trabalho) pertencer à casta dos que colhem da seara divina (é, até, muito frequente) porque a ideia de Deus traz acoplada a submissão à autoridade, seja ela divina ou humana. O patrão tem poder sobre os seus assalariados podendo negar-lhes o pão quando muito bem entender… e na verdade já o nega quando paga salários miseráveis aos seus assalariados e compra habitações de luxo, iates e automóveis topo de gama para si próprio, com o lucro que arrecada do trabalho miseravelmente pago.

As leis, nesta era da globalização, estão feitas à medida dos poderes da Banca e da Economia, numa Europa desenhada para a submissão do Trabalho ao Capital, e da Política à Economia e à Alta Finança, protegendo a exploração do trabalho com direitos reduzidos para alimento de um sistema económico-neocapitalista asselvajado tendo a extrema-direita à espreita para promover o retrocesso da nossa caminhada pelo respeito ao próximo e pela concórdia social (se o Comunismo era o sonho da “parte sadia” da sociedade nas décadas de 1950, 60 e 70, em contra-ponto ao Capitalismo… deixou de o ser desde que partidos comunistas apoiam ditadores como Putin, Maduro e Kim Jong-un).

Neste sistema social em que vivemos e que sempre nos oprime (embora se diga democrático), há uma verdade histórica a considerar: “o Povo é tanto mais explorado quanto mais religioso for”. E há mais esta: “a sociedade tem tanto mais ricos, quanto mais pobres e incultas forem as pessoas que a constituem”. E isto não é mais do que um gritante sinal de primitivismo!

Quando nos imaginamos uns seres inteligentes e evoluídos, devemos interrogar-nos: somos evoluídos, em relação a quê?…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

18 de Outubro, 2021 João Monteiro

Estarão todos doidos?!…

Texto da autoria de Onofre Varela

Ultimamente tornou-se moda contestar a História, pretendendo reescrevê-la de acordo com um certo pensamento divorciado dos factos que a fizeram. Nesse sentido há atitudes vândalas contra estátuas e monumentos, como fizeram à imagem do Padre António Vieira, em Lisboa, a quem acusam de ter pactuado com a escravatura e os maus tratos aos povos indígenas do Brasil; e ao Monumento aos Descobrimentos, em Belém… como se não fosse um facto histórico dali terem partido as caravelas dos nossos marinheiros quinhentistas, e como se tal facto não fizesse parte da História, nem representasse um modo de se ser e de se fazer, num determinado tempo e lugar, em determinadas circunstâncias ditadas pelo evoluir da sociedade e do próprio pensamento social e filosófico que faz cada tempo!

A História conta-nos os feitos dos nossos antepassados, quer nós gostemos, ou não, de algumas narrativas. A História não é um petisco que se come, ou não se come, de acordo com os nossos gostos gastronómicos: é o registo de factos que não podem ser mudados. O meu professor de História, na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, definia História como “uma sucessão de sucessos sucessivos que sucedem sucessivamente sem cessar”… e agora há uns patuscos que, ao estilo de Camões, gritam “cesse tudo o que a musa antiga canta…” por questões ideológicas actuais, alheias aos factos que fizeram a História. Em Julho último, por exemplo, indígenas do Canadá queimaram igrejas católicas, movidos pelo “desrespeito aos autóctones”, por parte de alguns padres em algum momento da História!

Ultimamente uma notícia divulgada pelo jornal espanhol El Mundo (edição de 10/9/2021) dá conta de, também no Canadá, uma instituição conservadora que agrupa 30 escolas francófonas de Ontário ter retirado das suas bibliotecas cerca de cinco mil livros que acabaram na reciclagem do papel, e outros em fogueiras “purificadoras” à boa maneira da Inquisição Católica! Algumas das obras “diabólicas” que mereceram tal fim, eram histórias de Banda Desenhada de Tintim e de Astérix!… E porquê?… Por, presumivelmente, a obra Tintim no Congo (de 1931) conter racismo. Igual acusação é dirigida ao Astérix (da excelente dupla de criadores Albert Uderzo [desenho] e René Goscinny [texto]) alegadamente por “falta de respeito pelas tribos índias do Canadá” (!?!)…

Os censores são umas bestas!… Não sabem destrinçar sátira e humor ficcional, de realidade histórica!… Também Pocahontas e Lucky Luke não escaparam à cerimónia de “purificação nas chamas”, e o conselho escolar declarou que, com tal acto “enterramos as cinzas do racismo, da discriminação e os estereótipos, com a esperança de as crianças crescerem num país inclusivo em que todos possam viver com prosperidade e segurança” (!?!).

Mas… o que é isto?!… Estará tudo doido?!… Se esses “puristas do pensamento” um dia acordarem com vontade de irem mais longe nessa purificação tomada como cruzada… vão ter de queimar a Bíblia!… É que os “textos sagrados” permitem que os pais vendam as suas filhas (Êxodo: 21; 7-8) “E se algum vender a sua filha […] não poderá vendê-la a um povo estranho”. E também permitem a escravatura (Levítico: 25; 44 – 46) “E quanto ao teu escravo ou à tua escrava que tiveres […] deles comprareis escravos e escravas […] também os comprareis dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós […] e possuí-los-eis por herança para os vossos filhos depois de vós”!… Exactamente como se o escravo fosse um objecto de ser usado de mão em mão, assim como uma jarra ou um penico!

Gostava de conhecer o comportamento social diário desses “puristas-queimadores-de-livros” alegadamente por “respeito aos autóctones”! Se calhar ainda ia concluir que alguns deles mereceriam ocupar o lugar dos livros nas suas tão queridas fogueiras!… Estará tudo doido, ou sou eu que estou a ver mal a coisa?!…

(O autor obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Opinião de Onofre Varela sobre a reescrita da história.
Imagem de Anuj Chawla por Pixabay
21 de Abril, 2021 João Monteiro

Lei da separação do Estado das Igrejas

Assinala-se hoje, dia 20 de Abril, os 110 anos em que foi aprovada, por decreto, a Lei da separação do Estado das Igrejas. Entre os seus princípios destacam-se: a liberdade de consciência; a religião católica deixar de ser a religião do Estado; ninguém poder ser perseguido por motivos de religião; a república não reconhecer, não sustentar, nem subsidiar culto algum; ou ainda a proibição de realização de reuniões políticas nos lugares habitualmente destinados ao culto de qualquer religião.

A lei original estava organizada em torno dos seguintes sete capítulos:

I – Da Liberdade de consciência e de culto;
II – Das corporações e entidades encarregadas do culto;
III – Da fiscalização do culto público;
IV – Da propriedade e encargos dos edifícios;
V – Do destino dos edifícios e bens;
VI – Das pensões aos ministros da religião católicos;
VII – Disposições gerais e transitórias

E a mesma lei pode ser consultada aqui, no site da Associação República e Laicidade.

Apesar destas conquistas sociais, elas não permaneceram no tempo, tendo sido alvo de sucessivas reformas. Como sabemos, a história é feita de avanços e recuos. Hoje, a Igreja Católica tem privilégios (originados pela Concordata e outra legislação); o Estado paga a capelães dos hospitais, das forças armadas e das prisões; e as escolas públicas e universidades promovem comunhões pascais e cerimónias (como temos denunciado). Há pois muito por reivindicar, como temos vindo a fazer junto das entidades competentes, e como continuaremos a fazer.

Afonso Costa assina a Lei da separação do Estado das Igrejas.
Foto do Arquivo Municipal de Lisboa.
28 de Fevereiro, 2021 Paulo Ramos

Historicidade de Jesus vs Pilatos

A expressão “foi crucificado sob Pôncio Pilatos” foi incluída no Credo católico no ano 381 EC. A História regista o momento em que a Igreja introduz no Credo a historicidade de Jesus da Nazaré! Ou seja, crer que Jesus é uma personagem histórica tal como Pôncio Pilatos passou a fazer parte do dogma por decreto de uma autoridade! Isto leva a suspeitar que antes deste momento haveria, dentro do cristianismo, quem não cresse que Jesus fosse uma personagem histórica e que, de alguma forma, a autoridade da Igreja achou por bem combater no concílio de Constantinopla.

Este dogma não tinha sido incluído no Credo de Niceia de 325 EC.
Quem escreveu torto por linhas direitas? – Século IV – Concílio de Niceia em 325 EC

Enquanto Jesus tem como fonte primária o Evangelho de Marcos, um texto marcadamente alegórico, Pilatos tem uma história atestada por Filo de Alexandria e Flávio Josefo em textos cujo o objetivo é descrever acontecimentos históricos.
Quem escreveu torto por linhas direitas? – Século I – Pilatos

Fresco da Capela Sistina, século XVI. Fonte: wikipedia
17 de Abril, 2012 João Vasco Gama

Desconversão – em português

aqui partilhei uma excelente série de vídeos sobre uma experiência de desconversão. Pela forma séria, sofisticada e apelativa como está construída e pela clareza e pertinência dos argumentos apresentados, sugeri vivamente o seu visionamento completo.

Recentemente descobri que essa série foi legendada em português. Agradecendo a quem fez a tradução, aproveito para divulgar a série de novo neste espaço.

Aqui está um dos melhores vídeos da série, o momento da desconversão, desta feita legendado em português:

PS- Não esquecer de activar as legendas, para quem não tem essa opção por omissão.

30 de Outubro, 2011 João Vasco Gama

O escândalo dos bebés roubados

Este vídeo descreve e analisa factos perturbadores ocorridos durante o regime de Francisco Franco. Entre 30 mil e 300 mil bebés foram roubados aos pais e vendidos com a colaboração da Igreja Católica. Sugiro o visionamento completo:

8 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – V

Nos textos anteriores referi cinco condições que um conjunto de relatos deveria respeitar para justificar a confiança de um historiador nos eventos relatados:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

No segundo texto mostrei que a maioria dos académicos acredita que não são verificadas as duas primeiras condições, no terceiro mostrei o mesmo em relação às duas condições seguintes, e no quarto texto mostrei o mesmo em relação à quinta condição.

Existe, no entanto, uma outra condição que justifica não apenas uma falta de confiança no relato, mas uma confiança activa na sua falsidade – a contradição com outros factos históricos estabelecidos.

Claro que, se um conjunto de fontes que, por respeitar todas as cinco condições mencionadas, mereça a nossa confiança relatar algo contrário a factos históricos estabelecidos, o historiador fica perante um problema. Terá de avaliar se as fontes usadas para estabelecer esse facto merecem mais ou menos confiança que as novas fontes analisadas, e essa avaliação pode ser difícil.

Mas se um conjunto de fontes que não mereça a nossa confiança (por várias razões diferentes) relatar algo contrário a factos históricos estabelecidos, o historiador terá de concluir, sem grandes hesitações, que o relato feito por estas fontes – por equívoco ou por outras razões – é falso. A fonte como um todo passa a merecer ainda menos confiança.

Isto ocorre com os evangelhos. Veja-se o caso do massacre dos inocentes referido em Mateus:

«Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias: “Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamentação; é Raquel que chora por seus filhos e recusa ser consolada, porque já não existem”.
»

É de notar que não existe qualquer referência histórica a um evento desta magnitude. Nenhum cronista, nenhum outro relator mencionou este alegado massacre de dimensões «bíblicas». Mas, mais que isto, este episódio coloca o nascimento durante o reinado de Herodes o grande, o qual terminou no ano de 4 a.C.

Veja-se agora esta passagem de Lucas relativa ao recenseamento de Quirino:

«E aconteceu naqueles dias que saiu um decreto da parte de César Augusto, para que todo o mundo se alistasse (Este primeiro alistamento foi feito sendo Quirino presidente da Síria). E todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade.
E subiu também José da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de David, chamada Belém (porque era da casa e família de David), a fim de alistar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.
»

Existem referências históricas ao recenseamento de Quirino. Mas ele terá ocorrido nos anos 6-7 d.C.
Ora ninguém pode ter nascido simultaneamente antes de 4 a.C., e em 6 ou 7 d.C.

E as contradições com os factos históricos estabelecidos não terminam por aqui. Os romanos não faziam receseamentos simultâneos em todo o Império, e certamente não exigiam que famílias inteiras retornassem às terras dos seus ancestrais.

Nos comentários aos textos anteriores, vários crentes alegaram que nada têm a obstar à falta de confiança que os evangelhos merecem do ponto de vista estritamente histórico. Que, ao invés de documentos históricos fiáveis que nos permitam elucidar com alguma confiança a respeito dos factos ocorridos, são descrições míticas, com um objectivo simbólico e teológico, e que é como tal que devem ser lidos e analisados.

No que diz respeito ao ponto de vista estritamente histórico, estamos certamente de acordo.

5 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – IV

No primeiro texto a este respeito concluí que, para que um conjunto de relatos mereça muita confiança em relação à descrição de um ou mais eventos, estes devem corresponder às seguintes condições:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

No segundo texto abordei a posição da generalidade dos académicos que estudam este assunto face ao cumprimento, ou não, das primeiras duas condições. Concluí afirmando que a maioria dos académicos acredita que os evangelhos não foram escritos por quem observou os eventos, e a quase totalidade acredita que os evangelhos a que temos acesso foram redigidos décadas depois dos eventos neles descritos.

O terceiro texto abordou a posição dos académicos face às duas condições seguintes. Concluí afirmando que a maioria dos académicos considera que os evangelhos não correspondem a fontes independentes entre si, e ninguém coloca em causa que a sua autoria seja parte interessada no relato que é feito.

Basta que uma condição entre várias não se cumpra para que a conjunção delas fique por cumprir. Ainda assim, pretendo analisar neste texto a quinta condição: a consistência dos vários evangelhos entre si.

Diz-se que quando testemunhas diferentes apresentam um relato alargado que não apresenta qualquer detalhe inconsistente, isso pode ser indício de que o relato não é verídico – tratar-se-á de uma narrativa previamente combinada entre todos aqueles que a relatam. Os mesmos eventos, experienciados por pessoas diferentes, tendem a ser relatados de forma diversa, e como cada relato sofre naturalmente algumas distorções (detalhes que foram mal vistos, mal recordados, ou mal comunicados), seria uma enorme coincidência que vários relatos não apresentassem nenhuma inconsistência de detalhe.

É importante, no entanto, notar que é precisamente porque desconfiamos da capacidade humana para relatar em eventos com precisão absoluta que esperamos encontrar alguma inconsistência nos detalhes. Assim, nestes detalhes inconsistentes ninguém poderá justificar elevada confiança.

No que diz respeito às questões importantes, no entanto, espera-se consistência entre os testemunhos. Se os testemunhos não são consistentes, eles não merecem confiança. Repito: se temos um conjunto de relatos de um determinado evento, e tais relatos apresentam várias inconsistências naquilo que não pode ser visto como um detalhe, então nenhum dos relatos merece confiança.

Qual é a situação dos evangelhos? As diferenças entre os quatro evangelhos, no que diz respeito a aferir os factos históricos ocorridos, são de detalhe, ou são significativas? Peço ao leitor que considere as questões que Bart Ehrman coloca a este respeito:

Em que dia morreu Jesus? Antes ou depois da ceia Pascal? E a que horas? Carregou sua cruz sozinho, ou recebeu a ajuda de Simão? Ambos os ladrões achincalharam Jesus, ou só um deles o fez, e o outro defendeu Jesus? A cortina no Templo rasgou-se antes ou depois de Jesus morrer?

Quem foi ao túmulo no terceiro dia? Foi Maria sozinha, ou foi Maria com outras mulheres? Se foi Maria com outras mulheres, quantas mulheres foram? Que mulheres foram? A pedra estava fora do sítio quando chegaram, ou não? O que viram no túmulo? Um homem? Dois homens? Ou um Anjo? O que é que lhes foi dito para dizer aos discípulos? Deveriam ficar em Jerusalém, ou ir à Galileia? As mulheres contaram o sucedido a alguém, ou não? Os discípulos mantiveram-se em Jerusalém? Ou partiram para a Galileia de imediato?

Todas estas respostas dependem do evangelho em questão. A todas elas são dadas respostas explícitas contraditórias em evangelhos diferentes.

E Bart Ehrman nem refere uma série de outras: Jesus foi trazido primeiro perante Caifás ou Anás? Esteve silencioso perante Pilatos ou não? O que dizia o sinal sobre a sua cabeça? Jesus bebeu na cruz? Quem enterrou Jesus? Quais as últimas palavras de Jesus? Madalena reconheceu Jesus quando o viu? E quando Jesus morreru, «Abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos»?

É possível encontrar mais de 400 inconsistências, grande parte delas relativas a questões que não poderão ser consideradas «detalhes», entre os diferentes evangelhos, ou um número superior se considerarmos ainda os Actos dos Apóstolos.

18 de Fevereiro, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – III

No primeiro texto a este respeito concluí que, para que um conjunto de relatos mereça muita confiança em relação à descrição de um ou mais eventos, estes devem corresponder às seguintes condições:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

No texto anterior abordei a posição da generalidade dos académicos que estudam este assunto face ao cumprimento, ou não, das primeiras duas condições. Concluí afirmando que a maioria dos académicos acredita que os evangelhos não foram escritos por quem observou os eventos, e a quase totalidade acredita que os evangelhos a que temos acesso foram redigidos décadas depois dos eventos neles descritos.

Basta que uma condição entre várias não se cumpra para que a conjunção delas fique por cumprir. Ainda assim, pretendo analisar neste texto se os evangelhos verificam as duas condições seguintes – serem da autoria de parte desinteressada, e serem de fontes independentes entre si.

Independência das Fontes

Tanto quanto se sabe, os evangelhos emergem da comunidade cristã, que, apesar da seperação geográfica e da informalidade da organização inicial, mantém um grau de união no que diz respeito aos ritos, às crenças, aos valores, que o concílio de Jerusalém procura consolidar. Esta origem, por si, é suficiente para rejeitar a independência destas fontes umas face às outras.

Acrescente-se que, no que diz respeito à origem dos evangelhos segundo S. Lucas e segundo S. Mateus, a maioria dos académicos subscreve a hipótese das duas fontes, segundo a qual os mesmos teriam sido baseados no evangelho segundo S. Marcos e num hipotético documento Q ao qual não temos acesso. Outros subscrevem a hipótese das quatro fontes, onde novamente os evangelho segundo S. Lucas e S. Mateus teriam sido baseados no evangelho segundo S. Marcos, no documento Q, e ainda em outros dois documentos aos quais não temos acesso. No que diz respeito ao evangelho segundo S. João, poucos disputam que o seu autor teve acesso aos restantes evangelhos.

É assim claro que os quatro evangelhos não constituem várias fontes independentes.

Autoria desinteressada

Creio que poucos disputarão o incumprimento desta condição. Ela acontece a dois níveis. Em primeiro lugar, mesmo que os evangelhistas tivessem procurado aferir e descrever os factos de forma independente e desinteressada, ser-nos-ia sempre impossível garantir que o tivessem conseguido. Aliás, são os crentes cristãos os primeiros a laudar a componente transformadora e radical da «Fé em Cristo», e o seu impacto emocional profundo.

Em segundo lugar, nem sequer era essa a intenção dos autores dos evangelhos. Estes foram escritos não com o propósito de efectuar uma descrição desinteressada dos factos ocorridos, mas sim de apelar à conversão dos povos à «Fé em Cristo». Nesse sentido, dada a autoria e o propósito, os evangelhos não se limitam a não cumprir esta condição – eles estão o mais longe possível do seu cumprimento.