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Etiqueta: Filosofia

8 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

Crer é um acto intelectual

Muito provavelmente a ideia de Deus (dos deuses) entrou em processo de depuração logo após a termos criado, por sentirmos que o caminho dos deuses, afinal, era uma vereda muito mais estreita do que a estrada que ambicionávamos pisar. Razões diversas estarão na base da motivação que nos levou à criação das divindades – que imaginávamos ter-nos oferecido o mundo, a vida e a felicidade eterna – e à eleição de um deus particular para cada momento dos dias que os deuses nos ofereceram para os cultuarmos. Começamos por criar um panteão onde colocamos os deuses da nossa invenção e, com o evoluir do pensamento,

destruímos o panteão e elegemos um único deus (um deus-single) para nos servir a todo o tempo e em cada situação de vida.

A ideia do divino é comum a todas as sociedades porque o Ser Humano é único e universal. Somos o mesmo ser em todas as latitudes e em todos os tempos, e as motivações que nos levam à adoração do que quer que seja, são universais; apenas modificadas por questões culturais de cada povo e em cada época.

Em todas as sociedades há um fundo comum embelezado com as crenças, às quais não é estranha a humana necessidade da introspecção, a inquietude do acaso, a fuga à solidão e às agruras da Natureza, e o sentimento da insegurança, acrescentando o medo da morte como “medo máximo” que eternamente nos consome.

O vencer do caminho que nos conduziu ao abandono de um panteão, pretensamente (mas também enganadoramente) protector de todos os males, e ao apuro de um único deus, acabará por dispensar, também, o deusJeová (Alá) – criado pelos Hebreus, reciclado por Jesus Cristo e adoptado (e adaptado) por Maomé – que sobrou da purga que o passar do tempo e o evoluir do pensamento promoveu no panteão que gregos e romanos herdaram da civilização mesopotâmica.

Na verdade antropológica, “deus habita em nós”. Isto é: existe no nosso pensamento… mas não passa de uma ideia, não se encontrando em mais lado algum fora da cabeça de quem crê. A crença num deus (ou em deuses e santos) é uma característica da nossa espécie de “Sapiens”, a qual nos diferencia de todos os outros animais nossos companheiros da vida na Terra.

Imagem gerada por IA

Porém devemos ter a consciência de que a crença é um acto intelectual. Aqueles ateus “em princípio de carreira” que vociferam contra tudo quanto “cheira a incenso”, se não tiverem essa consciência também não têm discurso que mereça ser ouvido. Se cremos, é porque sentimos que precisamos de crer; se criamos deus à nossa imagem e semelhança, foi porque sentimos necessidade de o fazer, já que o Homem só cria aquilo de que necessita. (A exploração social e económica que dessa ideia se faz, por uma elite exploradora de tal sentimento… é que já é outra conversa!…)

O sentimento da religiosidade é comum a todos os humanos independentemente das geografias em que se encontrem, e só está vedado aos restantes animais por não terem intelecto. Foi a nossa capacidade de raciocínio, a inteligência, a sensibilidade e o sentido estético, que nos levou à criação da Arte, ao entendimento do belo e à criação de deuses (que depois transformamos no Deus único).

Esta faceta criativa que nos caracteriza, faz de nós uns seres especiais. No entanto, quando em discordância com os nossos semelhantes, somos capazes de adoptar comportamentos iguais aos de um qualquer animal predador porque a nossa origem natural, enquanto animais, é a mesma!… 

Embora raciocinemos, deixamos, imensas vezes, a nossa sensibilidade tormentosa comandar-nos tomando conta da razão… e, por esse caminho, se bem virmos, até ficamos em patamares inferiores relativamente aos irracionais nossos companheiros de reino, porque enquanto que eles só guerreiam por alimento, por fêmea e pelo domínio do grupo, nós fazêmo-lo pelas mesmas três razões dos irracionais que consideramos inferiores… e ainda acrescentamos a lista, deixando-nos tomar por uma irracionalidade e uma cupidez que demonstram o pior da nossa condição animal, incluindo na lista das malfeitorias a crença em Deus quando a usamos como arma discriminatória e até mortífera (embora, ao mesmo tempo, o louvemos e lhe cantemos loas… o que sublinha a nossa imponente estupidez).

Isto parece-me incongruente com a capacidade que temos de raciocinar… mas a verdade é que nós somos assim… somos um produto natural ainda muito mal acabado!… (Espero que a evolução natural “lime as arestas” e nos melhore… mas isto, se calhar, também já é crença!).

Nós só erramos porque somos imensamente ignorantes… alguém disse que  “o erro é uma ignorância que se ignora”. A ignorância também é uma das nossas características. Todos nós somos ignorantes, até mesmo os sábios… que só o são no seu tempo e no seu ramo… e, mesmo assim, com limites.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

29 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Levanta-te e pensa

«Pensar é o trabalho mais difícil que existe, o que é provavelmente a razão porque tão poucos se envolvem nele»

(Henry Ford. 1863-1947)

A minha crónica de hoje é a transcrição do texto de abertura da 2ª Edição do meu livro “O Homem Criou Deus”.

O seu título é uma adaptação do que se lê no Novo Testamento, na cura do paralítico de Cafarnaum: “Levanta-te e anda” (Mateus: 5; 6), cujo figurino é usado em comédia no programa televisivo “Levanta-te e ri”.

Tal como o exemplo desta frase que foi adaptada repetidamente e usada em diferentes situações, também a vida de cada um é uma repetição da vida de todos nós, com mais ou menos nuances que emprestam outro colorido à nossa vida, tal como as diferentes fórmulas que glosam a frase bíblica que conduziu ao título desta prosa.

Ninguém inventa a sua vida… todos a temos oferecida pelo nascimento que não pedimos (o filósofo Agostinho da Silva dizia que “nasce a gente de graça, para depois ter de ganhar a vida!)… depois, todos nós a podemos melhorar ou piorar de acordo com as acções usadas no preencher dos dias, ornamentando-a com as melhores cores que conseguimos engendrar, ou pintando-a a preto e branco… embelezando-a ou borrando-a.

A escolha é nossa… mas também pode ser condicionada pela sociedade.

Por muito má que consideremos ser a nossa vida, há sempre um momento para nos determos numa reflexão suficientemente profunda e encontrarmos algum modo de corrigirmos o rumo que, por qualquer razão, intuímos não nos conduzir para o melhor dos destinos que para nós sonhamos.

Esta reflexão filosófica é uma função positiva da Religião… talvez a principal… não será a única porque é acompanhada pelo processo do luto que menoriza o sofrimento.

Porém (há sempre um “porém” que pode fazer a diferença das nossas escolhas) devemos estar atentos à corrente do “rio religioso” que decidimos navegar!… Ela nem sempre nos dirige para a melhor foz, nem nos conduz pelo melhor leito!

A corrente pode transportar-nos para águas mansas e calmas, permitindo-nos a contemplação das margens que as guiam, ou, pelo contrário, podem desaguar em desfiladeiros tormentosos com correntes imparáveis de efeitos desconhecidos quando as margens, ao invés de guiarem a corrente da água… a comprimem e convulsam!

A escolha da rota é sempre do discernimento de quem navega o rio da Religião…

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico.

Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

OV

28 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Sobre a Sabedoria

Fonte: Pixabay

No centro de todas as coisas está uma grande verdade que teimamos em não ver. Ela diz que todos nós somos ignorantes, por muito sabichões que nos sintamos! A presunção e a vaidade de nos imaginarmos certos, são características do Ser Humano… e a condição humana tem os seus custos.

Não se é humano impunemente, a consciência paga-se, e as consciências “religiosa e pátria” são duas das pesadas facturas que andamos a tentar liquidar desde que inventamos deuses e fronteiras… e vamos continuar a pagá-las por muitas e incontáveis gerações, enquanto consumidores de mitos adorados e afirmados como “realidades indesmentíveis”.

Julgámo-nos civilizados por vestirmos de acordo com a última moda de Londres, Roma ou Paris e usarmos o último modelo de telemóvel. Afirmámo-nos sábios só porque sabemos dizer “Ácido Desoxirribonucleico”… mas na verdade a nossa ignorância e cupidez não têm limites.

Todos nós somos ignorantes. Os próprios cientistas só estudam e investigam porque não sabem!… Se soubessem não precisavam de se dar a esse trabalho, porque já sabiam!

Os cientistas são os técnicos superiores da classe profissional cuja missão é a procura de explicações, tal como um detective investiga e procura a verdade de um crime. Lá porque tais trabalhadores se encontram afogados na preocupação de investigar, experimentar e comparar, não se pense que estão sempre a tropeçar em conclusões indesmentíveis, óptimas e certeiras. Não!… Bem pelo contrário; o erro é, talvez, a palavra mais mencionada nas investigações científicas.

O cientista esbarra mais vezes no erro, do que encontra certezas. Reconhecer o erro e seguir outro rumo, é meio caminho andado para o encontro da verdade que se procura. Sem a capacidade de se reconhecer e aceitar os erros cometidos (descartando tais hipóteses) não há avanço científico.

Ao contrário dos cientistas que procuram navegar o mar do conhecimento, no lago das águas inquinadas da Política e da Religião, o seguidismo de credos bolorentos e extremistas, mais a ignorância e a insensibilidade, têm sido as ferramentas com que se formam governos e destroem sociedades.

Uma sociedade verdadeiramente construída por gente civilizada e sábia, não tem lugar para deuses, nem para corruptos e ditadores, nem o Povo passa mal, nem o poder económico está nas mãos de meia dúzia de famílias… nem, sequer, é poder… o que quer dizer que não há sociedades com tal inteligência e sensibilidade, pois em nenhuma assenta este retrato!…

O Ser Humano é a última etapa evolutiva da vida na Terra… e ainda está verde. Somos a derradeira experiência da Natureza e toda a História da Humanidade se inscreve na ponta final desse espaço ínfimo de tempo que o Holoceno representa no bilhete de identidade do planeta, e mais precisamente no Antropoceno, o período mais moderno, em que temos provocado mudanças ambientais e trágicas.

Sendo um tempo demasiadamente curto para um apuro natural da espécie recém-nascida, já é demasiadamente longo nas inúmeras acções desestabilizadoras que promovemos no meio que nos criou.

Consciente ou inconscientemente somos agressores constantes da Mãe Natureza que nos permite viver. Destruímos demasiados espaços verdes, poluímos rios, mares e a atmosfera. Promovemos a extinção de espécies animais ao matá-los para comer e por desporto, e ao destruir-lhes o “habitat”.

Somos suficientemente ignorantes para não darmos conta de que, com todas essas acções, cavamos a nossa própria sepultura num suicídio colectivo e lento… mas, infelizmente, eficaz.

E quem alerta os poderes para esse trágico fim à vista, não é convenientemente ouvido, porque a destruição enriquece os destruidores que os poderes políticos e económicos protegem… o que é exemplo de primitivismo puro!…

Este primitivismo em que nos movimentamos, na convicção de sermos expoente máximo da evolução e de termos as melhores ideias da vizinhança, é o retrato de todos nós embora não o queiramos assumir, nem ver.

Assumir as nossas fraquezas e os nossos erros é um sinal de inteligência… mas a maioria esmagadora de nós (enquanto povo governado) e, provavelmente, a totalidade dos mandantes (que nos governam) está amputada dessa sensibilidade.

Em tal contexto, o mundo é, cada vez mais, um sítio perigoso para se viver… mormente quando assistimos à tomada do poder por imperadores fora do tempo dos impérios, que derramam sangue e destroem, na ânsia de exercerem um poder pacóvio, estúpido e criminoso.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

OV

27 de Novembro, 2024 João Monteiro

Poesia de António Gedeão – Filosofia

Talvez entre os poemas mais conhecidos de António Gedeão se encontre a “Pedra Filosofal”, publicado no livro “Movimento Perpétuo”, em 1956. O poema viria a ser musicado anos mais tarde por Manuel Freire e, posteriormente, cantado por grandes nomes da música portuguesa e também pelas tunas académicas. Por ter sido inicialmente cantado na televisão, fez com que se tornasse ainda mais conhecido do grande público e de várias gerações. Hoje é quase um lugar-comum dizer que o “sonho comanda a vida”, aludindo à última estrofe do poema.

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara graga, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão (1956)

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

14 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Sobre a Espiritualidade

Quando se fala em Espiritualidade é comum ouvirmos referi-la sob o ponto de vista religioso, aliando-a a uma fé, de acordo com a definição de dicionário que aponta, como sinónimo, a palavra “misticismo” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª Edição, 1998). No mesmo dicionário, misticismo é “atitude caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação directa com o divino ou a divindade”.

Se seguirmos estas definições encontramo-nos no terreno da crença religiosa que é sementeira de ideias transcendentes relacionadas com as figuras deificas inexistentes no mundo físico que nos fez e acolhe, indo para lá de tudo quanto é natural, na procura de uma outra origem que transgride a Natureza, vogando no espaço imaginativo da crença.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 2003) navega nas mesmas águas definindo a espiritualidade como “característica ou qualidade do que tem ou revela intensa actividade religiosa ou mística”… quer dizer que seguindo por esta via, pretensamente explicativa, não aprendemos nada que seja real e concreto, e nos distancie do termo enquanto “filosofia de fé”.

Foto de Marc-Olivier Jodoin na Unsplash

O mesmo Houaiss, para a palavra “espírito” aponta, no mínimo, dezoito definições… até o bom vinho o possui! Também lá está a palavra “alma” como sinónimo de “espírito”… mas o termo “alma” tem a sorte de ser bafejado por quatro dezenas de definições, começando pelo “princípio da vida no homem ou nos animais”, passando por pensamento, afectividade, sensibilidade e “conjunto das actividades vitais”. Quer dizer: vida.

Alma é vida. É movimento. A “anima” que possui o significado de “fôlego vital”, respiração ou “sopro da vida”, de onde provém, etimologicamente, a palavra “animal” (ser que tem alma, animação) diferenciando-o dos vegetais, os quais, embora tenham vida, não se auto-locomovem (por não terem animação autónoma) como fazem os animais.

Agora podemos ir mais além nos conceitos que as palavras podem representar, e definirmos “espírito” como “modo de ser”. Há quem, pelas suas palavras, aspecto ou presença, transmita “paz de espírito”; e há quem possua um “espírito irrequieto ou belicoso”. Uma pessoa bondosa e pacífica é definida como sendo “uma paz de alma”.

A espiritualidade é, portanto, característica de seres animados e detentores de um cérebro capaz de um entendimento universalista de si, dos outros e do meio em que se movimentam, para se poderem manifestar sensitivamente: portanto, só o Ser Humano a possui.

Embora quase sempre ligada à esfera do “religioso deifico e transcendental”, a espiritualidade existe em todos nós, quer sejamos crentes, descrentes, assim-assim, nem por isso… ou ateus.

André Comte-Sponville, filósofo francês (1952) fala de “uma espiritualidade sem Deus”, no sentido de termos, todos nós, uma abertura (de espírito, de entendimento) para o ilimitado, no conhecimento de sermos seres relativos e abertos para o “absoluto”.

Nesse sentido, a espiritualidade do ateu caminha ao lado da espiritualidade do religioso, mas dispensando a figura do deus que alimenta a espiritualidade do companheiro da caminhada que ambos encetamos pela estrada da vida.

O alimento do ateu (para além do pantagruélico, que é sempre bem-vindo numa mesa rodeada de familiares e amigos) também passa pela sua espiritualidade, pelo seu lado sensível perante a beleza de uma pintura, de uma estátua, de uma paisagem, de um pôr do Sol, ou de um poema (assisti a um cântico gregoriano na catedral de Santiago de Compostela… e adorei! Nunca experimentei maior prazer auditivo).

A espiritualidade é estudada cientificamente pela “Neuroteologia” (também designada por “Bioteologia”), “Neurociência da Religião” e “Neurociência espiritual”, que investigam crenças, experiências e práticas religiosas ou espirituais. Há uma pesquisa na tentativa de se explicar a base neurológica de experiências religiosas, incluindo a dimensão da espiritualidade e as alterações dos estados de consciência.

O sentido religioso não passa de uma actividade do nosso cérebro. Qualquer ligação que queiramos fazer das coisas e de nós, a um deus, não passa de uma manifestação dos nossos sentimentos mais básicos que nos fazem crer num deus real (para além da guarida que os religiosos dão ao conceito dentro das suas cabeças)… mas que, naturalmente, não desagua em bom mar… até porque o leito onde deveria correr o rio da fé onde navegaria Deus… sempre esteve seco!…

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

30 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Humilde Hipocrisia das Ovelhas de Deus

Criado com o DALL-E

Religião e humildade são duas palavras que só coexistem em relativa harmonia na mente dos mais ingénuos, dito da forma mais suave possível. Na realidade, tratam-se de forças antagónicas, conceitos incompatíveis e irreconciliáveis, ideias opostas numa batalha fútil e violenta por um meio-termo metafísico que nunca poderá realmente existir.

E isso não pode, nem vai acontecer, porque, quando confrontados com a espantosa imensidão do universo — com cerca de 14 mil milhões de anos, repleto de biliões de galáxias que reduzem a humanidade e o nosso solitário planeta a meros grãos de poeira insignificantes — os crentes insistem que tudo isto foi concebido com eles, e apenas eles, em mente. Uma proposição bastante peculiar, atrevo-me a acrescentar.

Para aqueles que não ousam questionar, que não conseguem perceber a ácida ironia desta embaraçosa contradição, ouvir uma pessoa religiosa afirmar-se como o ser mais humilde do universo pode parecer razoável, até lógico. Afinal, não é isso que sempre lhes foi dito e levado a acreditar?

As pessoas religiosas são vistas como devotas e puras, austeras tanto por fora como por dentro e, claro, intrinsecamente boas. Sim, boas por defeito, o que é um conceito bastante curioso, perpetuado ao longo de milénios por velhos castos e cínicos. No entanto, basta um pouco de reflexão para perceber que os crentes, muitas vezes, consideram-se tão humildes que acabam por não ser humildes de todo.

Pergunto-te agora, a ti, ao leitor — crente ou não —, se alguma vez alguém te disse sentir repulsa pela religião organizada precisamente por esta razão: pela evidente falta de humildade nos textos fundadores de todas as grandes religiões da actualidade e pela arrogância descarada de tantos dos seus seguidores — sejam eles famosos ou não — que não fazem qualquer esforço para parecer minimamente humildes. Certamente consegues lembrar-te de uma situação assim, em algum momento da tua vida.

Talvez tu sejas um deles, um daqueles religiosos que abomina a religião organizada, mas sente-se preso, ancorado à pegajosa ideia de que é necessário algo sobrenaturalmente maior do que nós para se ter sequer uma razão para querer existir, quanto mais gostar de viver. A vida humana é demasiado frágil, e não é fácil, eu sei — todos sabemos, de uma maneira ou de outra. Posso garantir, ainda assim, com alguma certeza estatística, que não estás sozinho neste dilema cósmico.

Considera agora, a título de grandes exemplos de auto-abnegação em nome do divino, os nacionalistas cristãos americanos: a sua humildade, como seria de esperar, não existe, é nula, e mesmo assim afirmam, em voz alta e ameaçadora, ser o epítome dela. Quantos milhões de americanos partilham desta ideologia? E quantos outros cristãos, espalhados pelo mundo, partilham desta magnífica concepção de humildade?

Acredito que a minha alma encontra prazer na ideia de uma ironia cósmica. Deleita-se especialmente com as manobras metafóricas circenses executadas pelas milhares, senão milhões, de religiões inventadas pela humanidade ao longo dos séculos — e que continuam a surgir diariamente — para justificar a sua ligeira insanidade.

Quando eu era criança, rodeado por tantas ideias aterradoras e absurdas, vendidas como verdades absolutas, a hipocrisia evidente de todos aqueles adultos incomodava-me profundamente. Desde o padre, de aspecto cadavérico, que afirmava ter uma linha directa com Deus e que, supostamente, falava com Ele em público em nosso nome, até às pessoas que se reuniam para o ouvir, sem achar nada de estranho na audácia de tal afirmação.

E depois havia os acólitos, os oradores e os leitores, cuidadosamente escolhidos ou que se ofereciam para ler nas missas, quase sempre os mesmos, que repetiam as escrituras diretamente do púlpito e, como os outros, transpiravam humildade em abundância.

É importante salientar também o papel que o cinema — e outras formas de arte e entretenimento, incluindo a literatura — têm desempenhado na promoção da ideia aparentemente atraente de que temer a Deus torna alguém automaticamente humilde. Nos filmes, por exemplo, a personagem religiosa é sempre o herói, o perseguido, o verdadeiro crente, o mártir. E, claro, todos parecem saber que submeter-se intelectual, mental e, atrevo-me a dizer, espiritualmente a um ditador celestial resulta, naturalmente, em pessoas genuinamente boas.

Pessoas dignas, virtuosas e, claro, supremamente e quase inevitavelmente humildes.

Contempla agora o cristão, que se vê, de maneira relativamente suspeita, como uma ovelha ansiosa por ser guiada por um pastor. Com uma mão, ergue orgulhosamente a bandeira branca da modéstia e declara a sua profunda insignificância perante os ilimitados e mágicos poderes do seu criador. No entanto, com a outra mão, a transpirar de antecipação, gesticula vigorosamente e afirma, com inabalável convicção e em tons ameaçadores, que faz parte do seleto grupo capaz de interpretar os planos de um ser que, por definição, deveria estar além de qualquer entendimento humano.

Não será a humildade religiosa o exemplo perfeito de como palavras e ideias erradas podem distorcer completamente o verdadeiro significado de um termo? Quanta vaidade deve ser disfarçada — muitas vezes de forma pouco convincente, como qualquer observador atento notaria — para alguém afirmar ser o escolhido de um plano divino? E quanta dignidade pessoal precisa de ser sacrificada para se viver num estado perpétuo de auto-recriminação, constantemente obcecado pelos próprios pecados?

A contradição torna-se ainda mais flagrante e amarga quando consideramos a encantadora doutrina do Inferno — introduzida pelo manso e incrivelmente humilde Jesus do Novo Testamento.

Como pode alguém reconciliar a ideia de um deus de amor infinito que, subtilmente, também cria um lugar de tormento eterno e concede apenas a uns poucos eleitos o poder de decidir quem merece ir lá passar o resto da eternidade? É difícil imaginar a arrogância necessária para acreditar num conceito tão nefasto como este. Espero, com algum otimismo, não ser o único a pensar que dizer a uma criança — ou a qualquer outra pessoa, na verdade — que está destinada ao Inferno não é apenas uma violenta afronta à ética mais elementar, mas também uma contradição flagrante da humildade que tanto afirmam possuir.

Satisfeitos com a fragilidade da sua quebradiça virtude, os fiéis insistem em aborrecer-nos a todos e dispensam salvação com entusiasmo. Contudo, e sem surpresas, escorregam na imunda poça de narcisismo que deixam pelo caminho, completamente alheios às evidentes contradições naquilo que pregam. Esta mentalidade está tão impregnada de auto-importância que faz o antropocentrismo tradicional parecer humilde, em comparação.

Insisto que a modéstia religiosa não passa de uma pantomima de integridade, uma expressão de superioridade disfarçada, incapaz de olhar para o seu reflexo sem se deslumbrar com a sua própria imagem moral distorcida.

A mentalidade religiosa regozija-se no brilho vacilante da sua própria virtude em decadência, e a luta constante no interior do crente, entre a auto-glorificação e a auto-negação, revela uma das mais perturbadoras contradições da condição humana. Não se deixem enganar, nem os deixem escapar impunes.

15 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Premissa Filosófica de um Mundo sem Deuses

A Religião Envenena a Ética e a Moralidade

Criado no DALL-E

Sinto sempre um moderado incómodo quando alguém, um crente, um temente a Deus, me pergunta como é possível eu ter algum conceito de moralidade e ética sendo ateu. Pior ainda, insultam-me quando ficam incrédulos por eu não me levantar todos os dias com a magnífica ideia de deambular pelas ruas de Lisboa, a pisar grávidas, a matar idosos e a violar tudo o que me aparece pela frente.

Sem grande surpresa, parecem ficar mais tranquilos quando lhes digo que não, que não ando pelas ruas, seminu e a conduzir um jipe com cabeças humanas como bandeiras, a matar pessoas aleatoriamente numa busca eterna por mais gasolina. No fim, e se fizerem um esforço real para me conhecer, são sempre confrontados com a crua ironia das perguntas que me fizeram. E, provavelmente, perguntar-se-ão de onde veio essa ideia.

Esta genial proposição é uma falácia antiga que persiste. Um mito disseminado por mentes incautas ao longo dos milénios. Uma história que insiste em afirmar que o ser humano só não faz exatamente o que lhe apetece, quando lhe apetece — como torturar, matar, mentir, cobiçar, invejar ou semear o caos — porque um ou mais criadores, ou criadoras, decidiram dotar os seus brinquedos de carne preferidos com certos mecanismos de moralidade espiritual.

Agora, tu, se achas que a moralidade não pode existir sem fé num ou mais deuses, não estás apenas profundamente enganado; estás também a aproximar-te, e sorrateiramente, da ignorância.

Os crentes argumentam fervorosamente que, sem Deus, esse suposto modelo de bondade, justiça eterna e compaixão, não pode haver moralidade. Contudo, ignoram uma verdade simples e, arrisco a dizer, inegável: os seres humanos possuem um sentido inato de empatia e de humanidade partilhada. Imagino-o como uma bússola interna que nos guia, sem necessidade de divindades rancorosas a interferir de maneira suspeita nas nossas consciências.

Olhemos para os infiéis, os agnósticos, os ateus. Eles não precisam de mandamentos divinos gravados em pedra na Idade do Bronze para agir com bondade; fazem-no por genuíno altruísmo, não achas? Mesmo quando há uma agenda mais egoísta por detrás de um acto de compaixão, isso apenas reforça a ideia de que este é um mecanismo que evoluiu com a nossa espécie. Há vantagens em ser bom.

As boas acções não necessitam de recompensas divinas nem de promessas de uma vida após a morte repleta de prazeres celestiais; são valiosas por si mesmas. A moralidade e a ética não são reflexos das doutrinas religiosas, como alguns crentes podem tentar fazer-te acreditar. Estão profundamente enraizadas no nosso ADN, produtos de instintos sociais e intelectuais que evoluíram ao longo do tempo.

Assim como as árvores antigas têm raízes profundas, o Homo sapiens prosperou através da cooperação e do altruísmo — virtudes que existiam muito antes de a religião organizada surgir. Atribuir, portanto, a moralidade humana a uma fonte divina é, claramente, uma ideia não só perigosa, mas também incrivelmente estúpida.

Consideremos o conceito de Inferno, introduzido apenas no mais afável Novo Testamento. Este é um exemplo evidente de como a religião pode distorcer a moralidade de formas cada vez mais bizarras. A ideia de uma condenação eterna no pior lugar do cosmos por se desviar de uma crença, ainda que irrelevante para o mundo secular, não é apenas moralmente contraditória; é uma flagrante violação da razão e da justiça.

A ética humanista considera este conceito não só ridiculamente ultrapassado, mas também completamente absurdo. Indigno de ser levado a sério. Porém, os crentes continuam a agarrar-se a esta macabra fantasia medieval, ainda hoje defendida acerrimamente por grande parte do clero. 

Até alguns descrentes aceitam esta genial ideia, e acreditam que os seus filhos precisam de temer um demónio com cascos, chifres e um tridente para se comportarem adequadamente. A estes digo: pensem melhor.

Pondo de lado as verdadeiras teocracias que ainda existem no mundo, a maioria das religiões de hoje apresenta-se de forma mansa, amável e alegre, oferecendo, com floreados metafóricos, consolo e elevação espiritual. Mas não devemos esquecer o comportamento bárbaro que exibiram quando detinham verdadeiro poder, impondo as suas vis crenças das quais ninguém podia escapar — ainda há poucas décadas atrás, aliás.

A Bíblia, por exemplo — e apenas para evitar referir todos os manuais oficiais das diversas religiões que têm assolado a humanidade desde sempre, e continuam a fazê-lo — reflete práticas sociais e morais de tempos antigos, quando se sabia muito pouco sobre o mundo, quanto mais sobre o cosmos. Justificava acções como a escravatura e a limpeza étnica, que hoje são naturalmente consideradas profundamente imorais e criminosas.

À medida que o nosso entendimento do cosmos e de nós próprios evolui, também evolui o nosso sentido de moralidade e ética. Nunca foi tão claro que os ensinamentos religiosos procuram impedir este progresso, impondo dogmas rígidos, arcaicos e trancados pela inefável e austera palavra de Deus.

A fé, como nos ensina a história da humanidade, conduz à mesquinhez, ao egoísmo e à ignorância, promovendo a obediência cega em vez de uma verdadeira responsabilidade moral e intelectual.

A verdadeira moralidade não se encontra em textos sagrados, mas na nossa capacidade inata de empatizar com o nosso semelhante. Consiste, fundamentalmente, em respeitar e dignificar todos os seres vivos, guiados pelo nosso Daemon interno, como diria Sócrates

Esta é a ética de um mundo sem deuses, que abraça o humanismo secular e que se dedica ao máximo bem-estar de todos os seres vivos, através da ciência, da razão e da nossa própria humanidade.