Loading

Etiqueta: Cristianismo

29 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Mandar o Papa para o Céu

A publicação no X, acerca dos primeiros minutos da tertúlia, pode ser encontrada aqui.

Tempos houve em que mandar alguém para o inferno era mau. Agora, até mandar para o céu é insulto. Eu diria que é, porque a parte má está em morrer e não no que acontece depois, que é rigorosamente nada. E se isto não fosse claro e universal, não teria lido a notícia que li hoje no Observador – Programa Sacerdotal torna-se viral no YouTube depois de padres desejarem que Papa “possa ir para o céu o quanto antes”.

Não me chocou particularmente que estes padres desejassem a morte do Papa. Muitos não devem gostar dele, sejam católicos ou não. Se para um ateu a Igreja é uma coisa medievalista e retrógrada, para muitos dos seus membros, está a tornar-se um absurdo de modernidade. O contexto é simples: trata-se do episódio de dia 22 de fevereiro de uma terúlia sacerdotal – La Comunión en la mano: doctrina, mentira y desobediencia – La Sacristía de La Vendée: 22-02-2024 – que discute por sua vez um documentário (?) intitulado Comunhão na Mão, o Triunfo da Desobediência. O tema? Comungar na mão ou comungar na boca. Vamos pôr aqui um pin, que já cá voltamos.

Quando morre um Papa, o representante de deus na terra, outro é eleito, num conclave que reune o Colégio dos Cardeais no Vaticano. Não me vou alongar nos procedimentos através dos quais um Papa é eleito, porque já me bastou o tempo que dediquei aos vídeos acima, mas para quem realmente estiver interessado nos detalhes e rituais que compõem este momento da Sé Apostólica, pode ler mais aqui. Certo é que se entende, no mundo católico, que deus participa deste conclave inspirando o voto dos seus participantes. Assim, o cardeal eleito é escolhido por deus através do voto dos seus principais sacerdotes.

Seria de estranhar que sendo deus a escolher, ou a inspirar a escolha do seu representante na terra, do herdeiro do Apóstolo Pedro, a Igreja na sua representação humana, alguém então detestasse, odiasse, desejasse a morte deste ser tão santificado, especialmente no seio da própria organização sagrada que representa. Seria estranho se não soubéssemos que esta organização é inteiramente constituída por homens, sem intervenção divina, e que não representa na terra mais do que 2000 anos de patriarcado, crendice e atentados à inteligência humana. Vistas as coisas por esta perspetiva não me é assim tão estranho que sete padres católicos se juntem durante duas horas para cascar forte e feio no Papa que os rege.

É interessante que começam por rir de forma irónica quando um deles faz votos que o Papa vá depressa para o céu. Mas é mais interessante ainda que ir rapidamente para o céu seja negativo. Não é isso que se pretende? Quanto mais depressa se morre, mais depressa se acede à vida eterna de contemplação de deus. Aquele sorriso, no entanto, não engana. Ele que vá com os porcos, é o que leio ali. Que coisa tão… cristã de se dizer.

E tudo isto porque supostamente o Papa é muito progressista, é de esquerda. Sim, aparentemente o padre Charles Murr considera que se pode estar à esquerda, seja na política, seja na religião. E estes senhores, por essa ordem de ideias, estão mesmo à direita. Qualquer dia começam a celebrar a missa em latim, virados de costas para os crentes. Queixa-se de tudo, que há gente que não se confessa, mas vai comungar, que no funeral de uma pessoa trans, havia ateus e maçons e foram todos comungar. Isto é uma balbúrdia!

Então qual é a queixa central que lhes levou duas horas a discutir apesar de estarem todos à direita religiosa? Comungar com as mãos ou comungar com a boca, conforme aliás, é o tema do documentário supracitado. Esta vossa ateia muito riu com isto! Há fóruns onde fãs acérrimos de obras de ficção discutem teorias com este fervor, mas depois vão todos à livraria mais próxima comprar outros livros e tomar um café amigável. Isso eu entendo. Agora, se o crente leva a hóstia na mão ou se a toma na boca para mostrar reverência ao corpo de cristo, isso já me dá para a perplexidade.

Resumidamente, as pessoas começaram a pensar na porcalhice que é um padre enfiar os dedos nas bocas dos crentes todos. E passou a ser prática comum receber a hóstia na mão e levá-la à boca. Estes padres consideram que isso é desrespeitoso para com o corpo de cristo e acham que o Vaticano agora inventa liturgia. Caberia aqui dizer que tudo o resto que está para trás é igualmente inventado e que a hóstia é só um pedaço do alimento mais sem sabor que se conseguiu criar para o efeito. Foi como assistir a uma partida de Magic The Gathering, mas sem a emoção de saber quem vai ganhar. Só me ocorria que eram dezenas os participantes no chat do YouTube sem noção do quão ridícula é a questão.


Certo é que a piadola lhes correu mal e vieram depois desculpar-se num Tweet (Xweet?). Seriam mais corajosos se assumissem o que disseram. Alguém lhes explique que para alguém ir para o céu, tem que morrer antes. Basta ouvir o restante do conteúdo para entender que consideram que este pontificado é o pior de sempre, e que não gostam do chefe deles. Para um ateu, não seria problema. Faz-mequestionar se estes homens são mesmo crentes ou se são apenas adeptos dos jogos de poder, das fofoquices, do corta na casaca, enfim das cantigas de maldizer. Hei-de confessar-vos (mas não de joelhos), que gosto mais deles assim do que a pregar a palavrinha do senhor. Só não gosto é que ainda haja quem dê importância a isto e nos queira atirar para a Idade Média.

19 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

O Dom do Dom Aguiar, Que Afinal é Política

Não foi uma grande entrevista, mas foi uma entrevista grande. Digo isto porque me chateou quase do início ao fim, a Grande Entrevista (Temporada 17, Episódio 7, 14 de fevereiro de 24) com Américo Aguiar. Ponderei se devia fazer aqui um comentário ou não. Em boa verdade, que é isto se não o dia a dia de uma ateia? Desculpem-me os meus consócios que preferem uma postura mais neutra quanto à influência da Igreja Católica em Portugal e no mundo, mas eu calada fico com azia e diz que isto dá úlceras.

Vítor Gonçalves caracteriza-o como o “rosto da JMJ” e como tendo tido uma “ascensão fulgurante na Igreja portuguesa”. Tudo coisas que eu não escolheria para elogiar alguém, mas que não deixam de ser verdade. Depois refere que Américo Aguiar decidiu encontrar-se com os cabeças de lista de todos os partidos que concorrem no círculo eleitoral de Setúbal. Eh lá, foi aqui que comecei a pensar, “dá-lhe o Papa um dedinho, já o homem quer um braço e uma perna”. Mais me espanta que os ditos partidos lhe tenham feito a vontade, mas sabemos que a Igreja continua a movimentar esse tipo de influência.

A ideia que Américo Aguiar passa de que a Igreja não se pode afastar da política não é nova. Aliás, o seu maior problema é ser antiga. Desde que conseguiu deitar a mão, ou a cruz, a meia dúzia de pessoas influentes, que a Igreja se tem dedicado historicamente a influenciar a política das nações. No passado, fê-lo com tanto sucesso que um rei não era rei na Europa, sem beijar o anel ao Papa em Constantinopla. Mais recentemente, a Igreja Católica abraçou o Estado Novo em Portugal até se tornar evidente que estava do lado da História que teria de perder. No pós-25 de Abril, lá se agarrou ao poder que pôde manter, com a segunda Concordata (2004) que lhe garantiu muitos dos privilégios que Salazar lhe havia concedido em 1940. Antes fosse uma ideia nova. Mas a Igreja tem esta tendência de estender tentáculos para todo o lado.

Que conhecimentos tem o Cardeal de política para ser convidado a fazer este comentário na RTP? Ora, sabe que a raiz da palavra “política” vem do grego antigo, πολιτεία (politeía), que se refere à participação na vida coletiva de uma sociedade. A partir daí a coisa deixa de correr tão bem. Se calhar é porque já há muito que abandonou a política e já só lhe ficaram os chavões. Portanto, para Dom Aguiar, justifica-se que a Igreja meta o proverbial nariz na política porque tem de estar envolvida “naquilo que são as alegrias e as tristezas, os sorrisos e as lágrimas” do povo a que se dirige. E até é tão inclusivo que refere outras religiões, não que tenham muita importância no seu discurso. E até respeita muito os não-crentes. Só não o suficiente para não se meter onde não é chamado.

Ora, as decisões políticas referem-se (não só, mas também, e principalmente) à alocação de recursos. Vulgo, onde se gasta o dinheiro público obtido por meio de impostos. Portanto, o Cardeal quer ter uma palavra a dizer naquilo para o qual não contribui, dado que impostos não é coisa que lhe assiste. Pensando bem, é a postura tradicional da Igreja. Uma instituição de homens a quererem ter uma palavra a dizer sobre o que a mulher pode ou não fazer com o seu próprio corpo, uma instituição de supostos celibatários a querer ter uma palavra a dizer sobre o que constitui ou não uma forma de amor válido, uma forma válida de constituir família, até uma forma válida de morrer. Um conjunto de homens cujo objetivo é viver o menos possível a querer cortar as asas a quem só quer ser livre.

A influência que Américo Aguiar quer vai da freguesia ao mundo. Já não me devia chocar, mas a esta altura ainda vou nos dois primeiros minutos desta entrevista de quase uma hora, e já o coração me quer saltar da boca. Ah esperem! A igreja não se pode meter em questões partidárias. E qual é a diferença? – pergunta Vítor Gonçalves. E eu queria ter estado lá, para dizer “nenhuma!”. Falei para a TV, como os adeptos de futebol mais irascíveis. Mas o Cardeal não explica a diferença. Deixai-me dizer eu contudo, oh gentes da minha terra: o padre não precisa de dizer aos crentes em quem votar. Basta defender ativamente a mesma postura que o seu partido de eleição para que o crente entenda em quem deve votar. E essa manipulação sempre foi feita de uma maneira ou de outra. Não tivesse o Cardeal começado a sua enumeração de partidos candidatos ao círculo eleitoral de Setúbal com… a Aliança Democrática.

Valeu-me concordar com o Bispo de Setúbal numa coisa, não se justifica a abstenção. Já dizer que é pecado, foi um momento de humor que apreciaria, se quando se falasse em pecados se falasse sempre com esse tom jocoso. Mas o alívio é momentâneo. É que dizer que a Igreja deve meter-se na política é fácil, difícil é quando se lhes pede para identificar um partido que esteja a ir contra a ideologia da Igreja Católica. E parece que para Américo Aguiar, a pergunta é tão difícil que o discurso ora anda em círculos ora anda a fugir. Para o cidadão consciente, a pergunta não é assim tão complicada. Pensando uns segundos, conseguimos todos identificar os partidos que defendem o que a Igreja diz defender, e os que defendem o que a Igreja não admite defender.

Ei-de rir sempre de um bispo de critica quem vota num dado partido sem nunca ler a sua proposta. É o melhor tipo de humor, aquele que se faz sem querer. A Igreja é a instituição que mais aceita e promove que os seus crentes não leiam o programa. É para isso que o sacerdote serve, para dizer o que diz na Bíblia. Ora agora, ler aquilo tudo, e com páginas tão fininhas. Nem o padre na missa lê tudo, escolhe sempre a dedo o que convém mostrar, vai agora o crente ler o programa todo. Ainda mudava de ideias.

Não discordo, contudo, que os programas são para ler, os objetivos de um partido são para conhecer e a posição da Igreja ou bem que é clara ou bem que se deve calar. E de preferência deve calar. Num país laico, tem de calar. O Bispo de Setúbal lá foi forçado a criticar os partidos que são a favor do aborto ou da eutanásia. Que choque! No entanto, antes tinha falado da dignidade humana, pelo que fiquei sem saber o que quer, afinal, o sacerdote.

Ao menos posso encontrar outro ponto de concordância com o Cardeal, que é o de aceitar e receber bem os imigrantes que cá chegam, tal como gostaríamos que os nossos tivessem sido aceites lá fora. Concordo, sim. Também concordo que há ameaças à democracia em Portugal, na Europa e no Mundo. Só não concordo que fuja à questão da ascensão da extrema-direita em Portugal preferindo referir-se às políticas europeias e criticar Putin, Trump e a guerra na Ucrânia apenas para mais uma vez, evitar falar do elefante na sala. Só não evita sublinhar que tem amigos em todos os partidos. Acredito que tem.

Chega-se ao fim e Américo Aguiar fala como cidadão e não como sacerdote. Pouco fala sobre a Igreja naquilo que são as decisões políticas e sociais do país. Mas pega nisso como mote para defender que a Igreja se deve meter na política. Não deve não. O cidadão, independentemente de ser ou não crente seja no que for, deve votar. Não é preciso vir um Cardeal dizer isso, mas dá jeito.

Estava eu já a entrar numa certa simpatia pelo Cardeal e eis que surge o tema das JMJ. Afinal, esperem lá, já não quero beber um copo com o Dom Aguiar. Começa por agradecer a Portugal e aos Portugueses. É bom que agradeça, porque ao que tudo indica, a coisa não ficou nada barata e teve momentos verdadeiramente vergonhosos. Diz o Cardeal que as JMJ deram lucro. Ultrapassa os 20 milhões, diz orgulhosamente. Falou muito, mas não disse de onde tirou 20 milhões em lucros. A organização lucrou 20 milhões? Ah bom! Isso acredito. E quanto gastou o Estado para proporcionar as condições para que a organização das JMJ lucrasse 20 milhões?

Cito: “O senhor patriarca acha que a Fundação deve continuar, para concretizar agora a materialização do que se venha a fazer com o lucro”. Faz-me lembrar as frases que se dizem em reuniões com empresas de atividade corporativa que levam a cabo projetos empresariais. Ou seja, coiso. E daí não melhorou a sua competência em explicar exatamente para onde vão os 20 milhões que tantos mais milhões custaram aos bolsos dos contribuintes. A meu ver, as contas que antecedem esse lucro é que devem ser revistas. Ou seja, quanto pagou afinal o Estado, a fundo perdido, para que o evento se realizasse?

Outra questão que não vi abordada e que me parece uma falha indesculpável, é a questão dos outdoors que foram retirados da via pública, que chamavam a atenção para as mais de 4800 crianças cujo abuso no seio da Igreja Católica é conhecido. Aliás fica aqui, que é para o Dom Aguiar não se esquecer, já que fala da dignidade humana com tanto afinco:

Outdoor “+49800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal” censurado durante as JMJ.

Dos problemas sociais que aponta, abusos sexuais dentro da Igreja Católica não foi tema. Para mim, foi o único tema que valia a pena discutir na farsa das JMJ. Surpreendeu-me que o entrevistador tenha decidido tocar nesse tema. E que suavemente até tenha tentado que o Bispo se focasse na realidade ao invés do que ele deseja que a realidade fosse. Doeu-me ouvir que ele quisesse corrigir os números. Não foram 4800 casos, foram 500 e tal denúncias que permitiram essa extrapolação. E isso em 70 anos, nem foram 70 dias. Ah! Bom! Então muito melhor. Afinal nem é nada de assim tão grave.  E o Cardeal está muito contente porque a transparência e a tolerância zero começa a ser normal.

Sou só eu que acho que dizer isto é absurdo? Está contente? Eu não estou e duvido que alguma das vítimas esteja. Já os padres que foram denunciados e que continuaram com as suas vidinhas, devem partilhar dessa felicidade. Resta-me questionar onde está mesmo a tolerância zero, ou a transparência. E já agora, perguntar se numa instituição que insiste representar um deus omnisciente, omnipotente e bom, há espaço para que estas coisas sejam ditas sem uma gargalhada de desespero como som de fundo.

Por fim, aborda-se o tema do momento: abençoar os casais em situação irregular. Só a frase arrepia. Existem casais em situação irregular? E isso da bênção, é esmola? Casar não, mas olha, ide lá com a graça do senhor. Mas é piada? É a isto que se bate palmas? A meu ver não há que abençoar casais, nem há que os unir em sacramento. É uma não-questão para mim porque sou ateia. Mas permite-me ver a hipocrisia desta instituição.

Vem agora o Cardeal falar em opções. Abençoa as duas pessoas (homossexuais) e não as suas opções. Alguém de Setúbal que esclareça o Bispo da sua terra que ninguém escolhe ser quem é. Nasce-se heterossexual, como se nasce homossexual ou qualquer outra variação naquilo que sabemos ser um espectro. Portanto, dado que esta pessoa acredita que deus nos fez à sua imagem e dado que ser homossexual não é escolha, foi deus que criou a pessoa com aquela orientação sexual. Alto, que isso já é muito inclusivo para a Igreja. Todos, todos, todos, mas vontade não é à vontadinha. Este discurso cheira à velha máxima cristã “odeia o pecado não o pecador”. Bafiento.

Em momento algum o Bispo de Setúbal diz que se presta a abençoar a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Apenas a abençoá-las individualmente. No entanto, quer que todos se sintam acolhidos. Não são acolhidos porque a Igreja Católica é o que toda a organização religiosa é: opressiva, restritora das liberdades pessoais e com um complexo de superioridade moral que não aplica quando encontra atrocidades no seu seio.

A minha conclusão é simples. O mote desta entrevista era que a Igreja se deve meter na política. Afinal foi um político que se foi meter na Igreja. Em todas as instâncias em que o Cardeal fala, refere sempre a religião em último lugar. Por pouco que não se esquecia de agradecer a deus o “sucesso” das JMJ. O Cardeal é certamente um homem da religião, só não me parece muito religioso, e por esse motivo quem sabe se não nos sentaríamos à mesa, como ele diz, a beber um copo, amigos como d’antes.

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.

8 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

A visitação

A “Senhora da Visitação” é uma devoção criada pelos primeiros frades franciscanos que se inspiraram no Novo Testamento.”

Talvez para espanto da maioria dos meus leitores, digo-vos que sou um ateu que ouve missas. Nos funerais de familiares e amigos, assisto sempre à cerimónia religiosa e tenho toda a atenção no discurso do padre, o qual, demasiadas vezes, me leva a tomar notas para depois, já em casa, me inteirar da profundidade ou da superficialidade do discurso sacerdotal para, só então, poder comentá-lo, criticá-lo ou elogiá-lo.

Hoje (Domingo, dia 11 de Junho) ao acordar tive o gesto do costume: liguei o rádio. A Antena 1 transmitia a costumeira missa dominical a escassos dois minutos do seu final, pelo que não ouvi o discurso total que estava a ser transmitido. Porém deu para me aperceber de que se fazia referência à “Senhora da Visitação” numa alegoria (pelo que entendi) à esperada boa recepção aos jovens e menos jovens que peregrinarão a foz do rio Trancão no Encontro Mundial da Juventude que se avizinha. A ideia provocou-me um sorriso (o que é sempre bom experimentar ao acordar) e obrigou-me à investigação para me documentar.

A “Senhora da Visitação” é uma devoção criada pelos primeiros frades franciscanos que se inspiraram no Novo Testamento (Lucas: 1;39-56) onde se conta o anúncio do anjo Gabriel a Maria, informando-a de que estava grávida de Jesus. Mas o anjo não se ficou por aí: à boa maneira das vizinhas que não têm travão na língua, também lhe disse que a sua prima Isabel, já velha para engravidar, afinal também estava “de esperanças” havia já seis meses, por um milagre de Deus!… Esta gravidez resultaria no nascimento de João, que haveria de ser “o Baptista”, primo de Jesus em segundo grau e que o baptizaria nas águas do rio Jordão.

Perante este anúncio, Maria não se preocupou com mais nada, se não com a vontade de estar com a sua prima e comunicar-lhe que ela estava grávida. Por isso se apressou a visitá-la, antes mesmo de dizer a José, seu marido já velho e sem vigor sexual, que iria ser pai… o que é, no mínimo, estranho! Como se sabe José ficou registado na história religiosa cristã como pai adoptivo de Jesus Cristo, o qual passou a ter dois pais: o adoptivo (José) e o biológico (Deus)… mas aqui o termo “biológico” não é bem empregue por não se entender uma “gravidez divina” em termos de biologia!

Acontece que a sua prima Isabel vivia em Aim Karim, localidade dos arredores de Jerusalém, e Maria estava em Nazaré. A distância entre as duas localidades é aproximada à do Porto a Coimbra, então sem transportes públicos nem estradas bem pavimentadas… o que não impediu Maria de vencer a distância (em burro ou a pé) e abraçar a prima, valendo-lhe a categoria franciscana de “Senhora da Visitação”.

Não sei se também aproveitaram o encontro para coscuvilharem sobre as suas estranhas gravidezes sem terem experimentado o delicioso prazer sexual… disso não há registo… mas também não interessa para esta prosa.

Quando Maria disse à sua prima que ela (a prima) estava grávida de seis meses (como se ela não soubesse!) Lucas escreveu que “a criança estremeceu no seu seio e Isabel ficou cheia do Espírito Santo”… o que é um espanto!…

Retirado o folclore religioso desta “visitação”, podemos encontrar nesta estória neo-testamentária um exemplo para se fazer moralidade actual, e que pode ser este: uma visita pessoal, com um abraço, um sorriso e o calor do contacto, é bem mais importante do que um frio telefonema. Um telemóvel não substitui um encontro com olhos nos olhos e o aperto de um abraço.

Se esta é a lição a retirar desta parte do Evangelho, não duvido que é uma mensagem positiva que sublinha o valor da palavra “visitação”… mas já duvido do seu entendimento pela maioria dos religiosos que assistem a missas, que batem no peito e ingerem hóstias, fazendo-o por uma habituação cultural-religiosa sem qualquer conotação com a vida real e prática, num total “marimbanço” para os problemas dos outros!…

Mas isto digo eu, que sou um má língua… e só espero estar enganado, que a amizade franca e sadia predomine entre as comunidades religiosas em perfeita comunhão com os outros… incluindo na figura dos “outros”, os não religiosos do mesmo clube!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Dorothée QUENNESSON por Pixabay
2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.

14 de Julho, 2023 João Monteiro

AMOR DE DEUS ?!…

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Os furacões e as secas são cada vez mais frequentes e com resultados mais trágicos.
As últimas notícias dando conta de tais calamidades, remeteram-me a memória para o ano de 1998, quando a América Central foi palco de uma desgraça que mobilizou o mundo numa onda solidária perante a destruição que o furacão “Mitch” operou na Nicarágua provocando 20.000 mortos, 11.000 feridos e três milhões de desalojados.

A hipotética solidariedade de um sacerdote católico de nome Santiago Martin, manifestou-se num texto que publicou no semanário madrileno ABC.

Sob o título “Deus é amor”, escreveu: “Aqui, nestas três palavras, nesta breve frase, se encerra e condensa o essencial da nossa fé. Deus existe e é amor. Deus existe e quere-te, a ti, pequeno ser humano, vítima de tantas precariedades e de tanta dor. Deus não te abandona nunca, ainda que os teus mais próximos o façam. E a prova principal dessa felicidade e desse amor divino é a encarnação do filho de Deus, sua morte na cruz e a ressurreição gloriosa”.

Que dizer deste naco de prosa?
Este discurso, proferido por um louco na paisagem desoladora da Nicarágua após a passagem do furacão, não passaria disso mesmo: o discurso de um louco!… Onde estava Deus com o seu carregamento de amor e de bondade, no momento em que o furacão varreu a Nicarágua?

Aos crentes foi ensinado que Deus comanda as forças da Natureza (e também por cá, no Alentejo, um dia se fez uma procissão com padre e tudo, e se rezou, para que chovesse!), e a própria Igreja o reafirmou pela boca do arcebispo de Caracas, Ignacio Velasco, quando trágicas inundações enlutaram a Venezuela em Dezembro de 1999, causando 15.000 mortos.

O arcebispo afirmou que “a tragédia que assola e enluta a Venezuela e os seus habitantes, é devida à ira de Deus que quer castigar a soberba do presidente Chávez”. (El País, 20/12/1999).

Religião, loucura e ódio misturam-se nestes discursos que, ao que me parece, são habituais na América Latina, onde a esmagadora maioria do povo é fanaticamente religiosa e a Igreja Católica colhe grande número de crentes.

Quando a Igreja diz que Deus é amor, talvez conviesse especificar que raio de amor ela refere. Deus surge a distribuir o seu amor do mesmo modo como os bombeiros o fazem, sempre depois de ocorrida a desgraça? Deus é um enfermeiro que coloca pensos nos espíritos feridos? Convenhamos que é pouco para esse deus que as religiões pintam com cores tão psicadélicas e anestesiantes.

Deus dá-me amor e quere-me?!… Quere-me como? Quere-me bem, segundo o humano conceito do que é estar-se bem, fruindo de uma vida consideravelmente feliz… ou quere-me morto, segundo o conceito católico da “bem-aventurança-além-túmulo”?

Como é que se pode explicar às vítimas do furacão Mitch (e às de qualquer outro cataclismo, como os recentes entre nós) que tudo aquilo aconteceu por um acto de amor de Deus que tanto nos quer, e que naquele dia, ao que parece, acordou com vontade de ser um mãos-largas!…

As religiões são comandadas por loucos visionários?!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
OV

Imagem de 0fjd125gk87 por Pixabay
12 de Julho, 2023 João Monteiro

Na morte de Ratzinger

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Morreu Joseph Ratzinger (1927-2022), bispo alemão que desempenhou o papel de Papa Bento XVI (B16) no elenco do Teatro Vaticano. No momento da sua morte tecem-se os elogios fúnebres habituais e usam-se abundantemente os adjectivos do costume enaltecendo as qualidades do defunto. Marcelo Rebelo de Sousa disse que B16 “foi filósofo, pensador e intelectual, e que procurava o diálogo entre a fé e a ciência”. Procurava?!… Se procurava, não encontrou!…

O livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, foi editado em 1851. Hoje a Teoria da Evolução continua a ser um engulho para muita gente de religião, desde a Igreja Católica até às Testemunhas de Jeová. Isso mesmo se pode ler no livro Criação e Evolução – uma jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Trata-se de uma obra com 190 páginas, editada em 2007 pela Universidade Católica. O livro resultou de um simpósio organizado por uma coisa que dá pelo nome “Círculo de Discípulos do Papa Bento XVI” e decorreu em Castel Gandolfo de 1 a 3 de Setembro de 2006.

Da leitura do livro “Criação e Evolução” concluí que a sapiência de B16 sai muito desfavorecida perante o saber de qualquer aluno do 5º ano de escolaridade, que sabe que o Homem teve de subir uma escada de progressos evolutivos desde que surgiu toscamente esboçado como Proconsul, até à forma de Homo, e depois sapiens, com especial destaque no período em que começou a ter consciência de si, enquanto Neandertalense

Curiosamente o sapientíssimo Ratzinger não sabia disso! Repare-se nesta sua falta de sapiência: no livro referido, ele quer encontrar uma “ética evolucionária” nos estudos de Darwin e diz que “o conceito se encontra inevitavelmente no modelo da selecção e, portanto, na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação bem sucedida, [o que] oferece muito pouco de consolador. Mesmo quando se quer embelezá-la de múltiplas maneiras, permanece afinal uma ética cruel. O esforço de destilar do irracional o racional, fracassa aqui com toda a evidência. Tudo isto tem pouca utilidade para conseguir a ética, que nos faz falta, de paz universal, da prática do amor ao próximo, e da necessária superação daquilo que é de cada um de nós […] a verdadeira razão é o amor, o amor é a verdadeira razão. Na sua unidade são o verdadeiro fundamento e a finalidade de todo o real”. 

Isto de misturar evolução natural com amor… não lembraria ao diabo!… Ratzinger quis passar a mensagem de que a selecção natural é algo de aniquilador e de racional! Algo que pertence, voluntária e conscientemente, à vontade dos homens e que se traduz numa “luta pela sobrevivência e na vitória sobre o mais fraco”, como se fosse uma guerra, como aquela que os Cristãos alimentaram contra os Sarracenos e Putin faz aos Ucranianos! Como se a selecção natural fosse um acto político pensado por uns homens contra outros homens! O que, evidentemente, não é verdadeiro. 

A selecção natural deu-se na espécie humana quando os Homo sapiens ocuparam o lugar dos Neandertais, e já tinha acontecido o mesmo quando estes sobreviveram aos Australopitecus. A ascensão do Homo sapiens sapiens fez-se por ser mais dotado para sobreviver no seu meio ambiente, porque detentor de meios racionais e inventivos, ferramentas que os seus ancestrais não possuíam na medida certa, e que surgiram naturalmente pelo sistema replicativo codificado no ADN, capaz de produzir mutações favoráveis às gerações futuras se fizerem uso delas. Isto é que é a selecção natural da espécie humana, e não constitui qualquer ética porque não tem nada a ver com a consciência e a vontade dos homens que, coitados, viveram tal selecção sem dela terem conhecimento. Nós hoje é que a conhecemos e estudamos… eles não a perceberam… e Ratzinger também não, o que é bem pior!… 

O amor ao próximo ou a falta de amor, o guerrear ou construir a paz, são peças de outras realidades alheias àquilo que se entendeu designar por selecção natural. Os actos políticos protagonizados pelos homens fazem as transformações sociais, mas nunca as selecções naturais como Ratzinger pretendeu afirmar. A ética não está presente numa manifestação natural. Não há ética no ribombar de um trovão nem na germinação de uma semente. Nem ética, nem amor. A ética é um objecto estético filosófico, e o amor é um sentimento. Ambos só podem ser produzidos e percebidos por cérebros inteligentes… e o senhor Ratzinger, possuindo um intelecto de gabarito (como dizem), devia saber disto… e parece que não sabia! No mesmo livro, o seu admirador cardeal Christoph Schönborn, que prefaciou a obra, atingiu um patamar optimizado quando desabafou: “Se a afirmação de que o mundo vem de um plano, de uma meta posta pelo Criador, se revelasse como cientificamente insustentável, então a fé num Deus criador e na sua providência seria também irracional […] seria uma fé que se edifica sobre um fundamento absurdo, não seria fé alguma, mas uma ilusão… ”. Exactamente, senhor cardeal!… Bravo!… (Aplausos). Só tenho um reparo a fazer a este desabafo cardinalício: o sentido religioso e o conceito de Deus, não pertencem ao irracional, porque o irracional nada entende e nada cria. O sentido da religiosidade e o próprio conceito de Deus, são produtos do raciocínio. Só pela inteligência e capacidade de raciocinar, de sentir e de se emocionar, é que foi possível ao Homem ser filósofo, artista, cientista, criador de deuses e ser religioso ou ateu. E o senhor Joseph Ratzinger pode ter sido muito boa pessoa (o que duvido porque perseguiu e destruiu a Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e outros, quando estava à frente do gabinete vaticano Congregação para a Doutrina da Fé) mas só foi religioso… e fundamentalista… porque não leu os livros que o podiam transformar no intectual de gabarito que dizem que foi!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Francesco Nigro por Pixabay
4 de Novembro, 2022 João Monteiro

Pedidos de perdão

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na Gazeta

Neste tempo de guerra na Europa, em que um candidato a imperador fora do tempo dos impérios, invade e destrói um país vizinho, matando cidadãos inocentes na ânsia de tomar territórios para ampliar o seu “império”, dei comigo a pensar que se a Humanidade não estiver totalmente louca, o agressor terá de se sentar no banco dos réus de um tribunal competente para julgamento dos seus actos, tal como aconteceu em Nuremberga, em Novembro de 1945, a 24 proeminentes membros da liderança política da Alemanha Nazi. 

Por analogia lembrei-me da viagem que Barak Obama, enquanto presidente dos Estados Unidos da América (EUA) fez a Hiroshima em Maio de 2016. Foi a primeira visita de um presidente norte-americano ao Japão desde o fim da Segunda Grande Guerra. 

Em 6 de Agosto de 1945, já com a Guerra terminada pela capitulação dos Nazis, os japoneses continuavam o conflito, o que levou os EUA a lançarem uma bomba atómica sobre Hiroshima, provocando a destruição da cidade e a morte instantânea de mais de 70.000 pessoas, repetindo a destruição dias depois em Nagasaki, causando mais de 60.000 mortos. 

Foi notícia por demais divulgada, o facto de Obama não ter pedido desculpas por esse facto que enlutou o Japão há mais de sete décadas e que pôs fim àquela guerra. O seu objectivo foi “honrar todos os que morreram na Segunda Grande Guerra Mundial”, insistiu Barak Obama perante a pergunta se pedia perdão ao Japão pelo deflagrar das bombas atómicas. 

E era aqui que eu queria chegar para dizer que o pedido de perdão por actos cometidos no percurso que faz a História do Homem, não tendo sido apresentado pelos próprios intervenientes imediatamente a seguir aos acontecimentos, deixa de ter cabimento fazê-lo sete décadas depois… altura em que já nada significam para além da hipocrisia que representam, já que actos bélicos continuam a ser praticados com resultados idênticos, provocando sofrimento. 

Também a Igreja Católica (IC), no seu Jubileu do ano 2000, pela voz do Papa João Paulo II, dirigiu dezenas de pedidos de perdão, dos quais destacarei uns poucos: pelos males provocados pela IC aos Judeus por parte do Papa Pio XII; pelo anti-semitismo no tempo de Mussolini; por todos os crimes cometidos pela Inquisição; por todas as vítimas abandonadas pela Igreja; pelos actos praticados pelo Vaticano contra os cientistas; por queimar vivo Giordano Bruno e João Hus; pelas divisões no seio das várias sensibilidades cristãs; pelas repressões aos Protestantes e Ortodoxos; pelos pecados cometidos contra o amor, a paz e os direitos dos povos, e pelos pecados cometidos com as mulheres, os pobres e os marginalizados; e também pela inoperância da IC perante o Ateísmo (!); a Igreja Espanhola pediu perdão pela atitude nada evangélica demonstrada perante os elementos da ETA, e a Igreja da Argentina pediu perdão pelos pecados por ela cometidos durante a ditadura do general Videla. (Curiosamente a IC Portuguesa não pediu perdão algum, nem, sequer, pelo mal que fez ao poeta Bocage!). 

Até Junho de 2001 contabilizei 94 pedidos de perdão, e numa cerimónia litúrgica celebrada no Vaticano, o Papa pediu perdão pela soma de todos os pecados cometidos no passado remoto e recente. 

Pedidos de perdão patéticos, porque a Igreja que se considera modelo moral, não os deveria ter cometido. Mas cometeu-os!… É facto histórico que o perdão não elimina. 

Importante não é o perdão panfletário, mas sim a consciência que se tem do mal feito e proceder de modo a que jamais haja lugar a pedidos de perdão, não praticando injustiças. 

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay