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Etiqueta: Ciência

9 de Novembro, 2022 João Monteiro

Nós e os nossos enigmas

Texto de Onofre Varela, previamente publicado no jornal Alto Minho

Como surgiu o tempo? O que havia antes dele? 

Como surgiu a vida? O que define e molda as tão diversas formas de vida? Somos o resultado de acasos químicos e físicos em processos encadeados, ou fomos criados intencionalmente por um deus? 

O que é um acaso? O que é um deus? 

Se fomos criados por um deus “à sua imagem e semelhança” (como afirmam os religiosos bíblicos), então Deus é um ser humano?! 

Se há um deus criador, de onde, e como, surgiu ele? Criou-se a si próprio ou também foi criado? Se foi criado… quem e como o criou? Havia outro deus antes de Deus para o poder criar?!… E se Deus é incriado (como também afirmam os mesmos religiosos), como se explica a sua existência? Deus existe real e materialmente, ou é apenas uma ideia abstracta? Se é um ser real com características de criador e interventor, que processos usou para criar tudo a partir do nada? Sendo Deus “a causa primeira”, que matéria prima foi usada no seu surgimento quando ainda não havia matéria prima? 

Há vida depois da morte? Se sim… então a morte não existe?!… E se a morte não existe, por que morremos? 

Estamos sós no Universo? Há mais mundos habitados? Alguma vez fomos visitados por seres extraterrestres? Se sim, de onde vêm? Influenciaram a nossa evolução? Serão os responsáveis pelo fenómeno luminoso de Fátima em 1917 e pela visão, também luminosa, de Paulo de Tarso na estrada de Damasco há 2020 anos? Os extraterrestres são gente pacífica, ou guerreira? Serão gente?…

Estas são algumas das perguntas que nos afligem (a quem aflige… não a todos, mas apenas a quem se propõe pensar nelas). Para todas temos respostas, sendo umas concretas e definidas, e outras apenas esboçadas. Respostas que primeiramente nos foram fornecidas pela Religião, depois pela Filosofia e muito mais tarde pela Ciência. 

O nosso sentimento religioso foi o responsável pelas primeiras tentativas de resposta aos enigmas que nos inundaram o raciocínio logo que o Ser Humano teve consciência de si. As nossas mentes inquietas não conseguiam descodificar os fenómenos naturais que observávamos, pois o nosso cérebro era um banco de dados ainda sem dados em número e qualidade suficientes para que nos permitisse um uso frutuoso… mas já era aquela máquina maravilhosa de produzir ideias abstractas… e por aí chegamos aos deuses… e à Arte! 

Para que os enigmas sejam compreendidos e desvendados, é preciso que exista intelecto e ferramentas suficientes para isso. Um enigma só deixa de sê-lo depois de questionado. É esta a primeira atitude para se conseguir a sua compreensão e consequente anulação. Os cientistas não são mais do que isso: questionadores.

Eu só posso ler uma partitura se souber música. Se eu desconhecer o que é uma pauta e não for capaz de identificar uma semínima, uma breve e uma colcheia, nem um compasso ou uma pausa… se eu não tiver aprendido solfejo… uma partitura é mistério indecifrável. 

Perante qualquer enigma que se nos apresente, devemos ter sempre em conta esta verdade fatal: os enigmas são como os truques dos ilusionistas; só serão enigmas enquanto não forem desvendados. Depois de explicado o truque, o enigma esfuma-se. 

A mente humana está cheia de truques (de conceitos) que usamos para nossa conveniência e consolo. 

Assim é o conceito de Deus.

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de WikiImages por Pixabay
19 de Março, 2021 João Monteiro

Vacinação contra a COVID-19

Enquanto comunicador de ciência, defendo que o conhecimento científico deve ser promovido do modo mais abrangente possível e junto das mais diversas comunidades, pois o conhecimento não deve ser reservado apenas a alguns membros da sociedade.

Por vezes isto significa tentar uma aproximação com grupos que possam ter uma mundividência diferente da científica, como os meios religiosos. Defendo que esta abordagem, se fosse realizada mais frequentemente, talvez contribuísse para o aumento da literacia científica, uma vez que é habitual nesses a procura de conselhos junto de uma autoridade (padre, pastor, imã, guru, etc.). É isso que tem sido feito nos EUA, em que cientistas e profissionais de saúde têm transmitido informação científica credível aos pastores, pedindo-lhes auxílio na promoção da vacinação contra a COVID-19, principalmente junto de populações negras (porque têm razões históricas para duvidar da medicina) ou desfavorecidas (por terem menos acesso a informação). Também rabis de comunidades Sefarditas e Ashkenazi têm incentivado a população vacinar-se.

Se esta comunicação entre ciência e religião não fosse feita, eventualmente verificar-se-ia uma diminuição na taxa de vacinação ou a partilha de desinformação. Na realidade, não é nada que já não tenha acontecido. Um líder religioso iraniano defendeu que a vacina da COVID-19 tornaria as pessoas em homossexuais e o mesmo defendeu um rabi famoso, tendo ainda acrescentado a isso outras teorias da conspiração relacionadas com a Maçonaria, Illuminati e Bill Gates (só ficou a faltar o 5G). Nem a Igreja Católica escapa: um cardeal espanhol, durante a cerimónia religiosa, alegou que a vacina da COVID-19 seria feita à base de células de fetos humanos abortados. Escusado será dizer que nada disto é verdade, mas pode lançar a dúvida junto das pessoas com menos acesso a informação credível. É por situações destas, mesmo que aparentemente sejam casos isolados, que defendo que a aproximação entre ciência e religião deveria ser tentada com mais frequência.

Para terminar, e atendendo que ainda estamos a viver em contexto de pandemia, exorto os nossos leitores a ouvirem a comunidade científica e médica, a tomarem os melhores cuidados tendo em vista a saúde pública e a vacinarem-se assim que for possível.

Votos de boa saúde para todos.

Imagem de Sammy-Williams por Pixabay
21 de Outubro, 2020 João Monteiro

1º Manifesto Mundial contra Pseudoterapias

Foi esta semana apresentado o resultado da recolha de assinaturas para o Manifesto contra as Pseudoterapias. Assinaram 2750 cientistas e profissionais de saúde de 44 países, numa iniciativa que começou com um cunho europeu, mas que rapidamente ganhou um cariz mundial, como noticia o jornal Público.

A iniciativa partiu da APETP – Asociación para Proteger al Enfermo de Terapias Pseudocientíficas, que juntou outras instituições espanholas a portuguesas, francesas, inglesas, dinamarquesas e suecas para promoverem o manifesto e a recolha de assinaturas. Em Portugal, a organização ficou a cargo da COMCEPT – Comunidade Céptica Portuguesa.

A mensagem principal do Manifesto é que as pseudoterapias são perigosas, seja porque fazem diretamente mal à saúde (interação com medicamentos, interação planta-medicamento, intoxicações, ou dano direto em órgãos) ou indiretamente (ao atrasarem o contacto com profissionais de saúde). As pseudoterapias não são medicina.

Se as pseudoterapias já eram uma fonte de preocupação pelos motivos apresentados e pelo crescente movimento antivacinação, nos tempos que correm estão ainda mais presentes, sendo os seus promotores igualmente disseminadores de desinformação relacionada com a saúde e com teorias da conspiração em tempos de pandemia. A preocupação global é de tal ordem que se instituiu o dia 20 de Outubro (assinalado ontem) como o Dia Mundial dos Cuidados de Saúde Baseados na Evidência, porque os doentes têm o direito de saber que os tratamentos a que recorrem são eficazes. Resta-nos a nós, cidadãos, fazer pressão política para alterar a regulamentação deste tipo de práticas.

20 de Agosto, 2011 João Vasco Gama

O secularismo torna as pessoas mais éticas?

«Os não crentes são frequentemente mais educados, mais tolerantes, e sabem mais a respeito de Deus que os crentes. Novas pesquisas têm tentado perceber o que se passa na mente do sempre-crescente grupo de pessoas conhecido como os “nadas”.»

Estas palavras não são minhas, são a minha tradução da introdução de um artigo da Spiegel, denominado «O secularismo torna as pessoas mais éticas?», que recomendo vivamente a quem se interessa por estes temas.

15 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Milagres – II

No texto anterior referi que existe quem acredite em milagres que não violam as leis naturais. Aleguei que se trata de uma crença absurda, e explicarei porquê neste texto.

Imaginemos um universo com determinado conjunto de leis naturais. Nesse universo existirão fenómenos mais prováveis, e outros menos prováveis. Numeremos os fenómenos ordenando-os por ordem descrescente de probabilidade de ocorrência. Designemos como «raríssimos» os fenómenos mais raros.

Perante a ocorrência de um fenómeno «raríssimo» isolado, justificar-se-ia acreditar na ocorrência de um milagre? À partida parece que não, pois, por definição, será de esperar um determinado número de fenómenos raríssimos, de acordo com as leis naturais em causa.

E se ocorressem fenómenos «raríssimos» com muito mais frequência do que aquela que se esperaria? Por definição, isso implicaria que as expectativas estavam erradas. Que o conhecimento das leis naturais que presidiu às espectativas não era adequado, e que isso explica que no mundo natural o fenómeno seja mais comum do que na nossa imagem do mundo natural. O corolário disto é que caso o nosso conhecimento das leis naturais espelhasse o funcionamento das mesmas, esta situação seria impossível. Nesta situação o alegado «milagre», porque natural, pode ser estudado como toda a natureza é estudada – através dos métodos empíricos das ciências naturais. A ocorrência do «milagre» acima do esperado apenas significa que o nosso conhecimento das leis naturais era desadequado.

Novamente, passo a expor exemplos. A Amélia encontrou no aeroporto a sua amiga Rita. Este fenómeno não teria nada de extraordinário, não fosse dar-se o caso de já não falar, pensar nem ver Rita há duas dezenas de anos, e ter pensado nela precisamente dez minutos antes de ver. Amélia vê nesta situação a prova de que «não existem coincidências». Nesta situação existem duas possibilidades.

Uma é que o nosso conhecimento das leis naturais nos permita estabelecer uma estimativa do número de vezes em que esta situação ocorre (alguém pensar num amigo em que já não pensa ou vê há mais de dez anos, e encontra-la nos trinta minutos seguintes), e essa estimativa ser adequada, sendo Amélia (entre outros) a feliz contemplada – a alguém tinha de calhar a lotaria, e existem coincidências.
A outra é que o nosso conhecimento das leis naturais seja desadequado. Este tipo de situações é muito mais comum do que aquilo que as nossas estimativas permitiriam prever, o que evidencia mecanismos que desconhecemos. Sendo mecanismos naturais, estão acessíveis ao estudo empírico, e uma vez estudados e conhecidos seria possível estabelecer uma nova estimativa, desta feita adequada.

O Jeremias sofre de um cancro, e os médicos consideram que a probabilidade de cura é praticamente nula. Jeremias reza a Nuno Álvares Pereira, pedindo que este interceda por Deus para ser curado. Os médicos não consideram que a oração altere a probabilidade de cura, e desta forma não alteram a sua estimativa de probabilidade. O cancro de Jeremias acaba por regredir e desaparecer. Podemos considerar três possibilidades.

Uma é que o conhecimento das leis naturais seja adequado: a reza não altere a probabilidade de cura, e a estimativa do número de pessoas curadas na situação do Jeremias corresponda ao número (reduzido) daquelas que de facto são curadas.
A segunda é que o conhecimento das leis naturais seja desadequado, independentemente do efeito da oração. Rezem ou não, pessoas como o Jeremias a serem curadas são muito mais comuns do que os médicos imaginariam, o que significa que os mecanismos de funcionamento desse cancro deveriam ser melhor compreendidos.
A terceira é que os médicos estejam equivocados quando pensam que a oração de Jeremias não alterou a sua probabilidade de cura. De acordo com as leis naturais «verdadeiras», uma pessoa na situação do Jeremias que reze convictamente tem uma probabilidade de cura superior às estimativas dos médicos. Como todo este mecanismo é natural e observável empiricamente (até porque verifica-se estatisticamente), a ciência acabará por refazer as suas estimativas de cura, consoante o paciente reze de forma sincera ou não.

Claro que em quaquer destes casos a palavra «milagre» parece desadequada para descrever o fenómeno raríssimo em jogo. Se a ocorrência do fenómeno se deve a uma mera coincidência sem significado, expectável precisamente na frequência com que ocorre, ele não merce tal designação. Mas, por outro lado, se o espanto pela ocorrência do fenómeno se deve apenas a uma espectativa errada em relação à frequência da sua ocorrência, devida a um conhecimento deficiente e incompleto das leis naturais, o fenómeno não é hoje mais milagroso do que era o trovão ou as cheias do Nilo para os antigos. Um dia será estudado e compreendido.

O absurdo está em querer que o fenómeno seja ao mesmo tempo extraordinariamente raro, e ao mesmo tempo suficientemente comum para que a sua ocorrência repetida seja ainda mais extraordinária. O problema é que se é «suficientemente comum» para isso aconteça, então não é tão «extraordinariamente raro».
Este paradoxo só poderia ser resolvido se o fenómeno, por hipótese, levasse à conclusão de que quaisquer leis naturais que a ciência pudesse encontrar seriam sempre insuficientes para explicar a realidade – nunca se conseguiria, por melhor que se conhecesse a natureza, fazer corresponder as expectativas da realidade (esquema 2) à ocorrência de eventos na realidade (esquema 3) – mas isso implica, por definição, que o «milagre» em causa seria sobrenatural.

Por fim, deve dizer-se que grande parte do espanto com ocorrências percepcionadas por alguém como raras, mas que na verdade mais comuns do que aquilo muitos esperariam, deve-se não ao desconhecimento actual a respeito das leis naturais (que existirá), mas sim aos enormes erros de estimativa desse alguém. Na verdade, por várias razões que a selecção natural explica, mas também devido a alguma ignorância sobre estatística, este tipo de erros nas estimativas são relativamente comuns. O próximo vídeo, que aconselho vivamente, desenvolve esta questão:

14 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Religião e obediência

Este artigo é sobre as qualidades que os pais mais valorizam nas crianças, se a obediência ou a autonomia. O autor relacionou as respostas a esta pergunta com uma série de variáveis sócio-culturais, tais como sexo, rendimento, religião, idade.

Considerei particularmente curiosas as conclusões relativas à religião: «Formulei a hipótese de que pessoas que eram fundamentalistas religiosas teriam maior propensão para valorizar a obediência e menor propensão para valorizar a autonomia e que pessoas com maior probabilidade de frequentar a igreja teriam as mesmas propensões. Os dados sugerem que isto é verdade.»

10 de Julho, 2011 João Vasco Gama

Milagres – I

Há dois tipos de crenças em relação aos milagres. Existe quem acredita que podem envolver uma violação das leis naturais, e existe quem não acredita em tal coisa.

Quando se justifica acreditar na ocorrência de um determinado milagre? David Hume dá uma excelente resposta a essa questão:

«Nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que o testemunho seja de tal tipo que sua falsidade seria mais miraculosa que o fato que ele tenta estabelecer»

Por outras palavras, devemos sempre acreditar na hipótese mais plausível. Podemos olhar para esta máxima do ponto de vista do conhecimento que temos hoje sobre probabilidades. Sejam A e B dois acontecimentos, a probabilidade de A dado B é dada por:


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Assim, se A for o milagre, e B for a existência do conjunto de evidências que temos para esse milagre (testemunhos, etc.) podemos encarar B como a união do conjunto dos diferentes acontecimentos possíveis que poderiam dar origem a essas evidências – a autenticidade do milagre (A), a falsidade dos testemunhos, equívoco, ou outras, a que chamaremos C. Tendo em conta que são conjuntos disjuntos, e que a intersecção de dois conjuntos não pode ser superior a qualquer deles, a expressão anterior implica:


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Aqui temos: se a falsidade das evidências for mais miraculosa que o milagre que se pretende estabelecer (P(C) < P(A)), é razoável acreditar que o milagre ocorreu (P(A|B) > 0.5). Mas se acontece o contrário, não faz sentido acreditar que o milagre tenha ocorrido (P(~A|B)>0.5).

Um exemplo ilustrativo: o Gustavo, grande amigo meu, diz que morreu e passados dois dias ressuscitou, e descreve a experiência em grande detalhe, com enorme seriedade. O acontecimento A é a ressurreição do Gustavo, o acontecimento B é o seu testemunho. Para simplificar, vamos supor neste caso que não existe nenhuma outra explicação para o seu testemunho além da autenticidade do milagre e da mentira deliberada (não é possível que seja um equívoco, etc..). Como o Gustavo é extremamente honesto, eu diria que a probabilidade dele mentir é uma num milhão (P(C)=0.000001). Ninguém discordará que a probabilidade de alguém ressuscitar passados dois dias é muito inferior a um em mil milhões (P(A)<0.000000001). Assim, qual é a probabilidade de que o milagre descrito pelo Gustavo seja autêntico? É inferior a um em 1000 - aquilo que é muito mais plausível é que Gustavo, apesar da sua honestidade, esteja a mentir deliberadamente (P(C|B)>0.999).

E se considerarmos que é possível que Gustavo esteja equivocado? Como a sua descrição parece detalhada, e a sua convicção inabalável, parece difícil imaginar que tal equívoco seja possível, mas isso é ignorância sobre a natureza humana, equívocos deste tipo acontecem a pessoas saudáveis com mais frequência do que imaginaríamos. Suponhamos que a probabilidade de equívoco a priori é de um em dez mil (P(D)=0.0001). Neste caso, temos que a probabilidade de que Gustavo esteja equivocado (P(D|B)) é cerca de 99%. Neste caso a probabilidade de mentira deliberada (P(C|B)) passa a ser próxima de 1%. Por fim, considerando a possibilidade de equívoco nestes moldes, a probabilidade do milagre ser autêntico (P(A|B)) passa a ser ainda menor (inferior a um em cem mil).

Como é natural, no que diz respeito a milagres que implicam violação das leis naturais, a sua probabilidade a priori é extremamente reduzida, pois de outra forma tais leis não teriam sido estabelecidas. Assim, para que fosse razoável acreditar neles face às evidências disponíveis seria necessário que a autenticidade destas merecesse mais crédito que as próprias leis naturais que teriam sido violadas – o que é manifestamente difícil…

Já no que diz respeito a milagres que não implicam violação das leis naturais, creio que o próprio conceito é absurdo. No próximo texto sobre este assunto procurarei explicar porquê.

13 de Janeiro, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – II

No texto anterior a conclusão foi que para que um conjunto de relatos mereça muita confiança em relação à descrição de um ou mais eventos, os relatos devem corresponder às seguintes condições:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

Quem discorda desta conclusão deve discuti-la no texto anterior. Eu vou discutir se os Evangelhos correspondem a estas características, em particular se os evangelhos foram escritos por quem observou o evento, e se são recentes face aos eventos descritos.

Note-se que, caso fosse possível concluir que os evangelhos tinham sido escritos pelas testemunhas oculares dos eventos relatados pouco depois dos mesmos terem ocorrido, isso não implicaria que os mesmos fossem fidedignos. Faltaria ainda verificar que verificariam as restantes condições enumeradas.

É preciso dizer que aferir, ou saber se é impossível fazê-lo, os autores dos diferentes evangelhos, e a data de escrita dos mesmos não é um assunto trivial. É necessário um grande estudo, dedicação e bases para conhecer os factos que permitem tirar as melhores conclusões a esse respeito, e ser capaz de os interpretar de forma cientificamente adequada. Como não sou um historiador nem escrevo para um público de historiadores, opto por expor as conclusões que a generalidade dos especialistas no assunto tiraram a partir dos dados a que têm acesso.

Evangelho segundo Marcos
O evangelho em si é anónimo (o autor não revelou a sua identidade), mas a tradição cristã inicial atribuiu este evangelho a S. Marcos, que se teria baseado no testemunho de S. Pedro. A opinião da maioria dos académicos é que a tradição está errada, e a autoria deste evangelho é desconhecida. Esta opinião é baseada na linguagem em que o texto foi escrito (grego, num estilo muito erudito; ao invés do aramaico comum que seria de esperar) e na heterogeneidade das fontes que usou. Ainda assim, há vários académicos que consideram a tradição cristã inicial credível.
Já no que diz respeito à data do evangelho, existe consenso entre os especialistas: terá sido escrito perto do ano 70 d.C., na Síria. A maioria dos académicos acredita que este foi o primeiro dos evangelhos conhecidos. Ele terá sido escrito várias décadas depois dos eventos que relata.

Evangelho segundo Mateus
O evangelho em si é anónimo (o autor não revelou a sua identidade), mas a tradição cristã inicial atribuiu este evangelho a S. Mateus, o cobrador de impostos que se teria tornado discípulo de Jesus. A opinião da maioria dos académicos é que a tradição está errada, e a autoria deste evangelho terá pertencido a um judeu-cristão que o teria escrito no início do século primeiro, originalmente em grego (e não uma tradução do aramaico ou hebraico). Outros académicos acreditam que a tradição não está errada, e que, tendo sido S. Mateus um cobrador de impostos, faria pouco sentido atribuir-lhe erroneamente a autoria de um evangelho.
Embora exista discordância quanto a qual dos dois evangelhos, Marcos ou Mateus, terá sido escrito primeiro, sendo a opinião maioritária a de que Marcos precede Mateus, a data da escrita deste evangelho é colocada entre 70 d.C. e 110 d.C. Uma minoria de académicos acredita que o evangelho pode ter sido escrito a partir de 63 d.C., novamente várias décadas depois dos eventos que relata.

Evangelho segundo Lucas
O evangelho em si é anónimo (o autor não revelou a sua identidade), mas a tradição cristã inicial atribuiu este evangelho a S. Lucas, um companheiro de S. Paulo. Este autor terá sido, na opinião generalizada, o autor dos «Actos dos Apóstolos».
O autor, quem quer que fosse, tinha uma educação muito superior à da generalidade da população, era muito viajado e muito bem relacionado, a forma como escrevia (grego) revelava uma erudição elevadíssima. Os académicos dividem-se entre os que acreditam que a tradição não está errada, e os que acreditam que o autor deste evangelho teria sido um cristão gentio anónimo. Entre os que acreditam nesta última possibilidade existe quem acredite que o autor teria tido acesso a testemunhas oculares dos eventos descritos, e os que acreditam que tal não terá sido o caso. Aquilo que é comum a estas três possibilidades é que o autor não terá sido, ele próprio, testemunha dos eventos que descreve.
A generalidade dos académicos acredita que este evangelho terá sido escrito entre 80 d.C. e 90. d.C., mas alguns acreditam que pode ter sido escrito entre 60 d.C. e 65. d.C., em qualquer dos casos décadas depois dos eventos descritos no evangelho.

Evangelho segundo João
O evangelho em si é anónimo (o autor não revelou a sua identidade), mas a tradição cristã inicial atribuiu este evangelho a S. João, alegadamente o “discípulo amado” de Jesus. A opinião da maioria dos académicos é que a tradição está errada, e a autoria deste evangelho é desconhecida. Esta opinião é baseada no facto de S. João ter sido, tanto quanto se sabe, analfabeto, ao invés de fluente em filosofia helenística como a escrita deste evangelho – novamente escrito em grego com um estilo revelando erudição – exigiria. Uma minoria de académicos disputa esta alegação fazendo notar que a tradição não surgiu subitamente, mas ao invés existiria uma continuidade tal que poderia indiciar que, se S. João não tivesse escrito o evangelho, te-lo-ia influenciado de forma decisiva.
A generalidade dos académicos acredita que o evangelho terá sido escrito entre 90 d.C e 100 d.C. Uma minoria de académicos acredita que a ausência de referências à destruição do templo de Jerusalém será indício de que a data da escrita do evangelho possa ser pouco anterior a 70 d.C. Em qualquer dos casos décadas depois dos eventos descritos no evangelho.

Evangelhos não-canónicos
O consenso generalizado é de que não foram escritos por testemunhas directas dos eventos descritos, e décadas depois dos mesmos terem ocorrido.

Conclusões:
A opinião maioritária entre os académicos é a de que os diferentes evangelhos não foram escritos por quem observou directamente os eventos descritos. Alguns académicos sérios podem contestar esta afirmação no que diz respeito a alguns dos evangelhos, mas a generalidade dos especialistas considera que as evidências são suficientes para afirmar que a hipótese mais provável é que os evangelhos tenham sido escritos por anónimos que terão relatado aquilo que lhes contaram.
Aquilo que imediatamente descarta os evangelhos como fontes de confiança em relação aos eventos neles descritos, é o facto de, de acordo com todos os académicos sérios, nenhum deles ter sido escrito e compilado menos de dez anos depois dos eventos descritos; pelo contrário, todos os evangelhos terão sido escritos várias décadas depois dos eventos que relatam.

E se porventura os evangelhos tivessem sido escritos por testemunhas directas dos eventos ocorridos, pouco depois dos mesmos terem lugar? Será que os poderíamos considerar fontes fidedignas? Para isso teremos de aferir se cumprem as restantes condições, que é o que farei no próximo texto sobre este assunto.

11 de Janeiro, 2011 João Vasco Gama

Fontes fidedignas, e Evangelhos – I

Um historiador geralmente não tem acesso directo aos factos históricos. Ele tenta, a partir dos diferentes indícios, estabelecer as hipóteses mais prováveis que com eles são compatíveis. Consoante a abundância e fiabilidade dos diferentes indícios, o historiador pode ter mais ou menos confiança numa determinada hipótese.

Por exemplo, podemos ter muita confiança que António Oliveira Salazar nasceu muito perto de Santa Comba Dão. Podemos ter muita confiança que Napoleão Bonaparte mandou invadir Portugal. Podemos ter muita confiança que Júlio César foi assassinado no Senado.

O que nos faz ter muita confiança num determinado facto histórico, seja ele qual for?

Uma condição necessária é a existência de muitos relatos consistentes contemporâneos com o evento. Esta condição é necessária, mas insuficiente para atribuir à ocorrência do evento uma confiança muito elevada.

Um relato, por si, pode consistir numa descrição adequada daquilo que se passou, mas pode também consistir numa descrição distorcida ou falsa, seja a distorção ou falsidade devida a equívoco, mentira deliberada, ou algo de ambos.

O que é que pode condicionar a confiança que se deve depositar num relato?
Em primeiro lugar, saber se o autor teve acesso directo ao que relata, ou se relata algo que outros lhe contaram.
Em segundo lugar, saber se o autor relata o evento pouco depois de ter acontecido, ou muito depois.
Em terceiro lugar, aferir se o autor é parte desinteressada, a nível material ou emocional, nos eventos que descreve.

O que é que pode condicionar a confiança que se deve depositar num conjunto de relatos que descrevem um mesmo evento?
Em primeiro lugar se cada um dos relatos é independente dos outros.
Em segundo lugar se são consistentes entre si.

É verdade que uma consistência excessiva entre dois relatos pode também ser um indício da fabricação dos mesmos. Se duas testemunhas em tribunal relatam um acidente com exactamente as mesmas palavras, será razoável suspeitar de concertação entre ambas. É natural que ambas expliquem o que viveram em termos diferentes, ou mesmo que ocorra um equívoco de pormenor aqui e ali e que portanto os relatos honestos de ambas as testemunhas tenham inconsistências ligeiras.
Mas se quatro ou cinco testemunhas relatam o evento com inconsistências muito significativas entre as versões, é natural que se tenha pouca confiança no testemunho de cada uma delas, pelas contradições que tem com os restantes. Neste sentido, inconsistências relevantes entre as fontes é algo que deve diminuir a nossa confiança nestas.

Resumindo, para que um conjunto de relatos mereça muita confiança em relação à descrição de um ou mais eventos, os relatos devem corresponder às seguintes condições:

-serem feitos por quem observou o(s) evento(s)
-serem recentes face ao(s) evento(s) descrito(s)
-serem feitos por parte desinteressada
-serem de fontes independentes entre si
-serem consistentes

Em que ponto estamos no que diz respeito aos evangelhos?
Vou explorar este assunto no meu próximo texto.