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Etiqueta: Ciência

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento

10 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 2/3

Na primeira parte deste artigo argumentei contra o facto de o Cristianismo poder servir de base para um sistema ético universal. Referi também que, além de não apresentar soluções adequadas, a religião cristã é, muitas vezes, ela própria geradora de problemas graves. Nesta segunda parte examino três desses problemas: a moral sexual repressiva, a doutrinação infantil e a negação da ciência.


Moral sexual repressiva
O sexo foi sempre motivo de obsessão no Cristianismo e os ditames morais que emanam da Igreja Católica sobre esta matéria nunca encontraram eco no melhor conhecimento das ciências humanas sobre o assunto
O Catecismo da Igreja Católica [1], autoridade absoluta em assuntos doutrinais, estabelece no seu artigo 2351 que “o prazer sexual é moralmente desordenado quando procurado por si mesmo, isolado das finalidades da procriação e da união”, algo que deveria ser ponderado seriamente pelas mulheres crentes que decidem não ter filhos. No artigo 2370 lemos que “qualquer acção que (…) se proponha tornar impossível a procriação” é intrinsecamente má. Ou seja, contraceptivos não naturais são inaceitáveis. E enquanto a ciência do sexo informa que a masturbação é uma actividade natural no reino animal, o artigo 2352 do mesmo Catecismo assegura-nos que “a masturbação é um acto intrínseca e gravemente desordenado”. Para que serve afinal a ciência?
Um dos aspectos mais negativos do Cristianismo, profundamente contrário a uma ética humanista de respeito pelas opções pessoais dos seres humanos, é a condenação da homossexualidade. Segundo o artigo 2357, “os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados… e não podem, em caso algum, ser aprovados”. Contrariamente ao que a ciência nos diz sobre esta orientação sexual em particular, para a Igreja os homossexuais são aberrações da natureza. Além de traduzir uma atitude hostil para com um grupo social, inaceitável numa sociedade inclusiva, esta é mais uma instância do lamentável choque frontal entre fé e ciência.
Ironicamente a atitude repressiva da Igreja Católica, no que toca a assuntos como a homossexualidade e os contraceptivos, tem resultado em verdadeiros tiros certeiros nos pés dada a consequente alienação de muitos fiéis. De facto, numa sondagem da Pew Research realizada em vários países da Europa em 2018, 58% das pessoas sem religião (os chamados nones, que aqui se identificam maioritariamente como indivíduos baptizados e criados como cristãos) dizem ter-se afastado da religião por discordar com as posições oficiais da Igreja em questões como a homossexualidade e o aborto [2].
O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um facto social cuja aceitação depende muito da religiosidade dos sujeitos. Segundo a mesma sondagem da Pew Research, em todos os países estudados os cristãos que frequentam a igreja são consideravelmente mais conservadores do que os cristãos não praticantes e os nones em questões como o casamento gay e o aborto [3]. Em Portugal 82% dos nones são a favor do casamento gay contra apenas 43% dos cristãos que frequentam a igreja, que também são a favor. Dados como estes parecem tornar incontornável a conclusão de que a religião favorece efectivamente a repressão.

Doutrinação infantil
Um dos principais factores que perpetuam as religiões ao longo dos tempos é a doutrinação das crianças. E o problema é que se transmite a mensagem religiosa como se esta fosse imprescindível para o desenvolvimento moral dos jovens. Ao mesmo tempo, as narrativas são transmitidas como se de verdades factuais se tratassem: as histórias em torno da vida de Jesus, por exemplo, incluindo os episódios sobrenaturais, são apresentadas como se fossem tão bem atestadas historicamente como os factos em torno da Revolução Francesa (pelo menos, nenhuma ressalva em contrário é feita). Também nunca se refere que só algumas pessoas no mundo (os cristãos, em particular) acreditam efectivamente nessas narrativas e que para muitos milhões (e.g. os muçulmanos) alguns desses relatos são apenas fantasiosos. Finalmente não se fala às crianças de outras tradições alternativas, religiosas e não religiosas, tão ou mais relevantes e com histórias igualmente inspiradoras e de conteúdo moral tão significativo como as do Cristianismo. Em resumo, a visão afunilada e redutora que se transmite é evidentemente tendenciosa e formatadora.
O crescimento substancial do número de nones nas últimas décadas tem levado a estudos sobre os efeitos da educação de crianças em lares não religiosos. No melhor dos casos os estudos sugerem que não há diferenças perceptíveis entre crianças criadas em lares religiosos e em lares seculares [4]. Mas também já se detectaram efeitos nocivos nas crianças sujeitas a uma educação religiosa, nomeadamente na dificuldade que estas evidenciam na distinção entre realidade e ficção [5].

Negação da ciência
Muitas doutrinas cristãs, particularmente as evangélicas, são negacionistas da ciência. O Criacionismo nega os factos da Teoria da Evolução por Selecção Natural. Ao afirmarem a verdade literal da Bíblia promovem também a factualidade do dilúvio universal, ideia cuja credibilidade científica há muito caiu em desgraça [6].
A primeira versão do Criacionismo advogava a criação do universo em seis dias, de acordo com a interpretação literal do Génesis. Uma versão mais sofisticada, o Criacionismo Científico, tentou mostrar que o registo fóssil é compatível com um primeiro acto de criação divina seguido de um dilúvio universal. Uma apresentação ainda mais sofisticada surgiu depois na forma do Projecto Inteligente, que tenta argumentar, usando termos putativamente científicos, que existem na natureza instâncias de “complexidade irredutível” que só poderiam ter surgido por via de um acto de criação divina.
Algumas versões do cristianismo são menos radicais do que as variedades evangélicas, colocando a mão de deus por detrás dos processos evolutivos. No entanto nem estas versões fazem sentido se considerarmos o conceito tradicional de deus como entidade omnipotente, omnisciente e sumamente benevolente: se os organismos foram propositadamente criados por condução do processo evolutivo, então deus só pode ser um criador incompetente, esbanjador e cruel se atendermos ao que se observa no reino biológico com os seus múltiplos sinais de imperfeições (e.g. má localização do nervo óptico, que se traduz num ponto cego no campo de visão; complicações causadas na próstata pelo trato urinário), orgãos redundantes e problemas causados por adaptações evolutivas (diafragma entre a cavidade toráxica e o abdómen; canal pélvico apertado nas mulheres, etc.) bem como doenças várias. Enfim, tudo contingências de um processo evolutivo não guiado. Mas mesmo aceitando a evolução Darwiniana do ser humano, o Cristianismo tem ainda o problema de decidir em que momento da evolução é que a linhagem homo passou a ser agraciada com aquilo a que chamam de alma imortal. Não há como conciliar fé e ciência.
— EVM

Notas:
[1] https://www.vatican.va/archive/cathechism_po
[2] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[3] ibid.
[4] “Does religion make people moral?” Ara Norenzayan, Department of Psychology, University of British Columbia, 5 December 2013, Behaviour, 151 (2014) 365–384.
[5] “Judgments About Fact and Fiction by Children From Religious and Nonreligious Backgrounds”, Kathleen H. Corriveaua, Eva E. Chenb, Paul L. Harris; Cognitive Science Journal, 151 (2014) 365–384.
[6] 65% dos americanos os adultos dizem que “os humanos e outros seres vivos evoluíram ao longo do tempo”, enquanto 31% dizem que os humanos e outros seres vivos “têm o aspecto actual desde o início dos tempos”. Destes, 43% dos protestantes e 27% dos católicos acreditam que os seres humanos têm o aspecto actual desde o início dos tempos (não evoluíram). Dados de 2015.
Ver: https://www.pewresearch.org/science/2015/10/22/strong-role-of-religion-in-views-about-evolution-and-perceptions-of-scientific-consensus/

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

12 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Religião e do Sequestro da Alma Humana

Gosto de pensar que fui aluno de Carl Sagan, embora isso seja algo que muitos outros como eu poderão também facilmente afirmar. Cresci a ler os seus livros, a ver os seus documentários — Cosmos, por exemplo —, e apaixonei-me, tal como tantos outros, pela beleza da ciência por causa dele.

Arrisco a dizer que Carl Sagan foi quem me mostrou pela primeira vez o que era o numinoso, o que significa, o que representa e quão importante é. Senti-o pela primeira vez com ele.

No seu livro Pale Blue Dot, o Carl Sagan oferece ao mundo uma reflexão profunda, inspirada por uma fotografia que ele mesmo propôs que fosse tirada pela sonda Voyager 1, em 1990.

À medida que a sonda se distanciava para além das gélidas fronteiras do nosso sistema solar, a câmara foi então ajustada para capturar uma imagem da Terra. O resultado foi uma fotografia que nos revelou não mais do que um minúsculo ponto azul claro na escuridão cósmica. Acredito que este gesto aparentemente simples tornou-se uma sinopse visivelmente crua da nossa fragilidade, e da nossa poética insignificância no panorama universal.

Olha novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos aqueles que amas, todos os que conheces, todos aqueles de quem já ouviste falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram, viveram as suas vidas. O agregado do nosso júbilo e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as “superestrelas”, todos os “líderes supremos”, todos os santos e pecadores na história da nossa espécie viveram ali — num grão de pó suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensa nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os senhores momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensa nas crueldades sem fim cometidas pelos habitantes de um canto deste píxel sobre os habitantes de algum outro canto, quão frequentes são os seus mal-entendidos, quão ávidos estão em matar-se uns aos outros, quão fervorosos são os seus ódios.

— Carl Sagan, Pale Blue Dot

Quando fui confrontado com esta incongruência entre o nosso solipsismo inato, e a ínfima impressão que deixamos no cosmos pela primeira vez, cresci.

Lembro-me do momento preciso, pois senti que esta discordância era um alerta valioso sobre a futilidade dos nossos conflitos terrenos, sobretudo quando ponderados à luz da escala incomensurável do universo. A revelação foi um momento de exaltação intelectual, um Eureka pessoal que potenciou e inspirou positivamente uma já irreversível e eterna viagem por mais conhecimento. 

Acredito não ser o único primata a ter sentido o mistério do transcendental, a ter experimentado algo maior que eu, mais importante e fantástico. Tenho a certeza disto.

Há mesmo momentos especiais nas nossas vidas em que o cosmos parece alinhar-se de forma quase mágica, e muitas vezes a nosso favor. Um breve instante em que a realidade deixa de ser o que parece e revela algo que ultrapassa o mundano e o habitual. Faz-nos sentir grandiosos, especiais, únicos, poderosos, extasiados, ansiosos, como tendo sido o melhor dia da nossa vida. O melhor evento, o quadro mais trágico, a canção mais lírica, o poema mais emocional, o livro mais bem escrito, etc.

Muitos, ao longo de milénios, têm interpretado estes vislumbres do transcendental como carícias divinas. Empurrões espirituais que levam muitos a percorrer caminhos ditos sagrados — seja pelo sacerdócio, pela conversão ao Islão, ao Hinduísmo, ao Judaísmo, ou por qualquer outra senda delineada pelo desonesto carimbo da religião.

E é precisamente aqui que a religião comete talvez a sua maior afronta: a audaciosa presunção de que apenas através dela, com os seus rituais, dogmas e insanidade em geral, é possível ao ser-humano experimentar o numinoso e sentir-se parte de algo maior e mais magnífico.

O transcendental, o numinoso, é aquela sensação que nos liga ao sublime, um grito trovadoresco que nos expõe a algo incrivelmente profundo. Desafia por vezes a lógica e leva-nos a confrontar uma realidade vasta em nuances e, por vezes, indescritível. E, ao contrário do que as religiões têm pregado há milénios, não são necessários mediadores, sacerdotes ou símbolos e rituais religiosos para o experienciar.

Este radar que temos para o detetar e sentir é intrínseco, uma parte essencial de todos nós, independentemente da fé — ou da ausência dela. Ao longo do tempo, a religião apoderou-se desta experiência profundamente humana da pior maneira possível. Ao sequestrar a nossa sensação de esplendor, a religião não só a conspurca continuamente e desde sempre, como também nos faz crer, de forma insidiosa, que apenas através das suas más ideias e práticas arcaicas poderíamos ter acesso a esta dimensão essencial da nossa existência.

Mas será que Michelangelo, o famoso pintor, ao criar as suas obras-primas sob a tutela financeira do Vaticano, estava realmente a expressar inspiração oriunda de fé fervorosa? Ou terá sido simplesmente a sua genialidade, a sua ligação natural ao numinoso, que brilhou apesar das imposições religiosas? Sabemos sequer se este artista era realmente devoto? Ou estaria ele apenas a tentar ganhar a vida?

A mente religiosa afirma ser impossível criar arte majestosa, música inspiradora ou escrever algo verdadeiramente belo e puro sem uma ligação íntima, e de forma altamente suspeita, com um ou mais deuses. Discordo.

Reivindicar algo tão humano como seu é nada menos que uma mentira, uma narrativa construída por homens prepotentes, cínicos, virgens e moralistas, para manter o seu domínio sobre as nossas vidas — aqui, no mundo real e mortal, onde conseguem verdadeiramente exercer o seu poder sobre as mentes mais incautas e controlá-las. Talvez seja esta a razão pela qual está tão profundamente enraizada na nossa psique colectiva, e tão difícil de erradicar ou domesticar.

Um ateu, um agnóstico, qualquer descrente, qualquer pessoa com cérebro e neurónios relativamente activos, tem tanta capacidade de sentir a beleza numinosa como qualquer devoto. A verdade é que esta manifesta-se de inúmeras formas que nada têm a ver com a institucionalização do sagrado.

Está presente na ciência que revela os mistérios do universo, na arte que expressa a profundidade e dificuldade da experiência humana, e nos actos de coragem e altruísmo que nos mostram o melhor da essência do ser humano.

A arte, a ciência, a exploração do desconhecido — todas estas são formas legítimas e poderosas de experienciar o numinoso, muitas vezes de forma mais pura e direta do que qualquer conjunto de regras ou dogma religioso permitiria. E, por conseguinte, com maior e melhor utilidade a curto e longo prazo.

Quando a religião — qualquer uma delas — afirma possuir o monopólio do transcendente, está apenas a tentar, de uma maneira extremamente venenosa, controlar a nossa relação com o mistério e a beleza do universo.

Acredito que chegou a hora de a resgatarmos, assim como a poesia da existência, das garras da religião, e de a reclamarmos como nossa, como parte da nossa herança humana universal.

O numinoso é livre.

24 de Junho, 2024 Onofre Varela

O HOMEM CRIOU DEUS

O Homem Criou Deus, de Onofre Varela. Apresentado no ATENEU COMERCIAL DO PORTO por Renato Soeiro. Este sábado, 29 de Junho, às 16h00.

Obviamente o Homem já existia quando lhe ocorreu a ideia de criar um deus que o criasse. Sem Homem não haveria Deus.

Onofre Varela – O Homem Criou Deus
24 de Junho, 2024 Onofre Varela

A ovelha Dolly e o mito da Eva

No dia 1 Abril de 1997 publiquei no Jornal de Notícias (JN) um texto interrogativo e bem humorado sobre a clonagem da Ovelha Dolly. (Não era uma “mentira de Abril”… a data da publicação foi um acaso!).

Recordando: a ovelha Dolly ficou mundialmente conhecida em Fevereiro de 1997 quando se divulgou a sua existência conseguida por experiência científica bem sucedida, de clonar o primeiro mamífero a partir de células da glândula mamária de uma ovelha adulta. Os seus autores foram os biólogos Keith Campbell e Ian Wilmut, do Instituto Roslin, na Escócia.

Aproveitando o facto científico que demonstrava a possibilidade de se conceber um mamífero dispensando o espermatozóide do pai (os homens que se cuidem… as mulheres não precisam de nós para coisa nenhuma… nem para conceber filhos!), escrevi no JN uma crónica onde dizia que, muito provavelmente, o primeiro clonador teria sido Deus ao fazer Eva a partir de uma costela de Adão. Entendi que a palavra “costela” podia ser um modo de dizer “célula”.

Ticiano: Adão e Eva no Jardim do Éden
Adão e Eva no Jardim do Éden, pintura a óleo de Ticiano, c. 1550; no Prado, Madrid.

O meu entendimento era lícito naquela linha de a Bíblia ser um poço a transbordar de possíveis entendimentos. Na Bíblia há textos cujas interpretações servem para alimentar todos os gostos e paladares que enformam as variadíssimas religiões e seitas bíblicas… mas também servem os seus críticos que a lêem divorciados de qualquer formato de fé deifica.

Quando o texto foi publicado… lá tornou a cair o Carmo e a Trindade!…

Naquela altura discutia-se na Assembleia da República a Lei da Liberdade Religiosa e o JN dedicava uma página diária ao assunto, entrevistando personalidades ligadas aos vários cultos da panóplia das igrejas estabelecidas em Portugal. O meu texto saiu ao lado do depoimento de um bispo da “Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica”; logo, todos os interessados em religião o leram.

O director do JN recebeu recados mal dispostos por permitir “a publicação de tamanha enormidade”! (Para melhor informação digo que o texto não lhe passou pelas mãos antes de ser publicado. Entreguei-o ao sub-director, que o aceitou e enviou directamente para a secretaria da Redacção… a partir daí estava implícita a autorização de o publicar).

Aquele lacaio da seita vaticana Opus Dei, que visitava directores de jornais a horas tardias, estava atento e não desarmava… tinha de estuporar o juízo ao director por deixar passar textos que a Igreja não aprova. A mentira bíblica (ou poema) da criação era intocável e não podia ser aflorada fora do entendimento religioso. A Igreja permite-se imaginar ser dona dos textos arqueológicos que fazem a Bíblia, não aceitando – condenando, até – interpretações diversas das suas.

Para além da possível clonagem de que teria resultado a Eva, permiti-me comentar alguns versículos bíblicos, de entre os quais refiro estes: “Quem violar uma virgem obriga-se a desposá-la”, “Os estrangeiros, as viúvas e os órfãos devem ser respeitados” (Êxodo: 22, 16-20). Isto são conselhos de um deus, ou de um sociólogo?;

“Todos os que toquem as roupas daqueles que têm ferimentos que libertem fluxos, devem lavar-se”. “Homem e mulher, depois de copular, devem lavar-se. Lavar-se-á também a roupa suja com sémen”, “A mulher menstruada guardará sete dias sem relações sexuais” (Levítico: 15, 2-19). Isto são conselhos de um deus ou de um técnico de saúde?;

“Não oprimirás o teu próximo nem o roubarás. Do mesmo modo não reterás o pagamento devido ao teu empregado” (Levítico: 19-13). Isto é conselho de um deus ou de um legislador? Quantos empregadores nós conhecemos que papam missas e não pagam devidamente, nem no dia certo, aos seus empregados?!

Neste caso de “censura à posteriori”, a minha opinião foi publicada e lida, permitindo a cada leitor fazer a sua própria interpretação do meu texto… e os desmiolados censores que apenas provam a nulidade das suas existências, não puderam retirar as prosas do jornal, onde permanecerão para a posteridade no arquivo das bibliotecas.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

12 de Março, 2024 Onofre Varela

Quando formos grandes…

Quando se ouve uma voz que contraria a tradição e a ordem estabelecida, originam-se reacções que vão desde o escândalo dos resistentes a novas ideias, até ao fascínio dos que aderem ao que é novo. Em todos os tempos as vanguardas começaram por ser repudiadas, depois toleradas, acabando aceites. 

Lembremos Galileu Galilei e Giordano Bruno.

O julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana. Relevo em bronze de Ettore Ferrari, Campo de’ Fiori, Roma.

Galileu Galilei (1564-1642), astrónomo, construiu o primeiro telescópio e observou os astros. Concluiu que a Lua girava à volta da Terra, e esta rodava à volta do Sol. O conhecimento da sua época não era científico, mas religioso, e a Igreja garantia que o nosso planeta era o centro do mundo e que o Sol e a Lua rodavam à volta da Terra para nosso puro deleite, pois Deus assim quis e fez! Galileu foi condenado pela Santa Inquisição e fingiu retratar-se, evitando ser morto na fogueira diabólica onde a Igreja adorava queimar aqueles que não diziam amen consigo. No tribunal, terá dito: “eppur si muove” (no entanto ela [a Lua, a Terra] move-se).

Giordano Bruno (1548-1600) foi monge e estudioso do Universo. Concluiu poder ser falsa a ideia (defendida pela Igreja) de que só a Terra era habitada por vida inteligente, defendendo a hipótese da existência de muitos outros mundos habitados por gente como nós. Ao contrário de Galileu, não aceitou fazer uma retratação negando as suas ideias, e por isso foi condenado a morrer na fogueira. Os seus algozes foram mais longe. Depois de o amarrarem no poste e antes de lançarem fogo à lenha que o rodeava, com um alicate puxaram-lhe a língua e pregaram-lhe uma tábua para que o monge não blasfemásse!…

Charles Darwin teve o mesmo problema com a Igreja quando expôs a Teoria da Evolução, contrariando a Criação Divina. Hoje, passados 165 anos após a publicação do seu livro “Origem das Espécies” (1859), ainda há quem defenda o conceito religioso da Criação contra a evidência científica da Evolução!

Isto acontece assim porque o raciocínio de muita gente está amarrado a conceitos religiosos desde criança, impedindo, ou dificultando, o entendimento científico. Conclui-se que uma parte da sociedade é constituída por interesses supérfluos e serôdios, levando ao desinteresse pelas Ciências e pela História. Considerou-se ser mais importante jogar à bola, do que ler um livro; exercitar a musculatura do corpo em ginásios, do que treinar o músculo do cérebro em livrarias e bibliotecas. 

Ter músculos esculpindo o corpo é a primeira escolha porque se vê por fora e faz inveja aos nossos amigos que são tão estúpidos quanto nós. Vivemos a cultura do corpo esquecendo a cultura do espírito.

No campo destas considerações encontramos o Ateísmo que já faz um quarto da população mundial. Não é muito, mas está a crescer. Quando formos grandes… a maioria de nós dispensará a redutora ideia da fábula de Deus e dos santinhos e, provavelmente, também, a beleza exterior que nada vale se não for alicerçada na beleza interior. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.