22 de Abril, 2025 Ernesto Martins
Ciência e Cristianismo (3)
Dois dos pensadores mais significativos dos Secs. XI e XII a seguir as pisadas de Agostinho no uso da lógica dos gregos para analisar os temas da teologia católica foram Anselmo de Cantuária (1033-1109) e Pedro Abelardo (1079-1142). Abelardo acreditava que o domínio da filosofia era importante, não pela pura especulação sobre a natureza das coisas, mas, primeiramente, para defender a fé dos ataques heréticos (e.g. a heresia cátara). A aplicação das ferramentas da filosofia era feita, no entanto, de forma cautelosa, e nem mesmo os teólogos mais liberais ousavam questionar a autoridade da Igreja. As verdades da fé eram tratadas como axiomas indubitáveis e a razão nunca era usada para esmiuçar crenças doutrinais. A Bíblia estava excluída de qualquer escrutínio rigoroso. Sobre isto Pedro Abelardo escreveu
“Jamais serei filósofo se isso for falar contra São Paulo; não seria um Aristóteles se isso me separasse de Cristo” [1]

Abelardo e Anselmo acreditavam na supremacia da autoridade divina. A razão e a lógica eram usadas para entender a fé que, por sua vez, era aceite com base na autoridade. Ainda assim o trabalho de Abelardo foi considerado demasiado ousado, tendo este sido condenado em 1140.
A condenação foi despoletada por denuncias movidas por Bernardo de Clairvaux (1090-1153), um dos mais influentes teólogos monásticos da época – teólogos conservadores, hostis ao uso da lógica e da dialéctica como ferramentas de análise dos dogmas católicos, que favoreciam o conhecimento directo de deus, nomeadamente através de experiências de contemplação e êxtase [2]. Segundo Bernardo, Abelardo era culpado de heresia em resultado da sua confiança excessiva na razão:
“Ele [Abelardo] contaminou a Igreja; infectou com a sua própria praga as mentes das pessoas simples. Tentou explorar com sua razão o que a mente devota capta imediatamente com uma fé vigorosa. A fé acredita, não contesta. Mas este homem, aparentemente suspeitando de Deus, não acreditará em nada até que primeiro o tenha examinado com a sua razão”
O uso da razão era coisa de curiosos; envolvia investigações intermináveis e por isso era uma actividade vista com suspeição pelos teólogos monásticos. Ruperto de Deutz (1070-1129), outro de entre essa corrente de teólogos escreveu:
“Vergonhosamente, ousaram examinar os segredos de Deus nas Escrituras de forma presunçosa, motivados pela curiosidade e não pelo amor. Como resultado, tornaram-se hereges” [3]
Esta atitude resume bem – usando as palavras do historiador de ciência Edward Grant – o clima de hostilidade e as lutas intelectuais entre fé e razão que se viveram durante o Sec. XII.
Gilberto de la Porrée (1085-1154), Pedro Lombardo (1100-1160) e Pedro de Poitiers (1130-1205) foram outros dos teólogos que acabaram acusados de heresia por terem aplicado a filosofia e as regras do pensamento racional a temas da fé.
No início do Sec XII o estudo da filosofia natural (a ciência) continuava subordinado às necessidades da teologia e aos limites impostos por esta. Invariavelmente os filósofos naturais interpretavam o mundo físico em termos teológicos. Mas alguns tentaram romper com esta abordagem, passando a apreciar os fenómenos naturais em termos puramente racionais. Adelardo de Bath (1080-1142) foi um desses pioneiros. Defendeu enfaticamente a busca de explicações naturais, ao mesmo tempo que condenou aqueles que se contentam com argumentos de autoridade teológica. De temperamento igualmente científico, Guilherme de Conches (1085-1154) rejeitou a ideia da Bíblia ter alguma relevância no estudo da filosofia natural, considerando impróprio invocar a omnipotência de deus como explicação para os fenómenos naturais. A causa dos efeitos devia ser procurada na própria natureza [4]. No seu “De philosophia mundi” referiu-se nestes termos aos inimigos da ciência:
“ignorantes das forças da natureza e querendo ter companhia na sua ignorância. . . não querem que as pessoas investiguem nada; querem que acreditemos como camponeses e não perguntemos a razão das coisas” [5]
No final do Sec. XII a Igreja ver-se-ia a braços com uma ameaça maior: a filosofia de Aristóteles, que passou a estar disponível em Latim no mundo Ocidental em virtude dum movimento sem precedentes de traduções do grego e do árabe.
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EVM
Notas:
[1] Grant, Edward; “God and Reason in the Middle Ages”, Cambridge University Press, 2004, Cap. 2, pg. 57.
[2] ibid, pg. 63.
[3] ibid, pg. 64
[4] ibid, pg. 73
[5] Grant, Edward; “Science and Theology in the Middle Ages” in David C. Lindberg and Ronald L. Numbers (Eds) “God and nature – Historical essays on the encounter between Christianity and science” University of California Press, 1986.