19 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins
Equívocos natalícios, Parte 2/2
O nascimento virginal é, provavelmente, o aspecto crucial da natividade de Jesus Cristo.
Estranhamente, é também um conceito sem paralelo na Bíblia Hebraica e na literatura judaica pós bíblica, onde os nascimentos extraordinários ou ocorrem com mulheres que já ultrapassaram a idade reprodutiva, ou são fruto de uniões entre anjos e mulheres humanas, semelhantes às dos mitos greco-romanos. No entanto, estes nascimentos nunca implicam a conservação do estado de virgindade.
A história da antiguidade é rica em figuras com suposta origem divina. Considerando apenas as celebridades que viveram perto do tempo de Jesus, podemos citar, por exemplo, Platão, o gigante da filosofia que se acreditava ser filho de uma mulher e do deus Apolo; Alexandre o Grande, que tinha fama de ser o produto de uma aventura entre a sua mãe e Zeus; Apolónio de Tiana, profeta venerado pelas suas curas milagrosas e ressurreições de mortos, também ele resultado de uma investida de Zeus sobre uma donzela mortal; e César Augusto, que também teve créditos de paternidade divina. No fundo, trata-se de lendas que nos dão uma ideia do contexto mental dos gentios helénicos da época e que são, portanto, importantes para a compreensão histórica dos evangelhos.
Para sustentar a ideia do nascimento em estado virgem, Mateus cita a profecia de Isaías (7:14). Contudo, já há muito que se sabe que o original desta passagem não se refere a uma virgem, nem a qualquer tipo de concepção miraculosa. O equívoco acontece, porque o autor de Mateus cita a profecia de Isaías segundo a versão grega da Bíblia Hebraica (a Septuaginta), que contém vários erros de tradução. Um desses erros ocorre exactamente neste versículo de Isaías: enquanto o original hebraico refere uma ‘mulher jovem’ que irá conceber, a tradução grega refere uma ‘virgem’.
Baseando-se portanto em Isaías (7:14), o autor de Mateus pretende demonstrar que Jesus é o Messias previsto pelas escrituras. O equívoco fornecido pelo erro de tradução motiva-lhe a criação da história do nascimento virginal, uma fórmula que permite colocar Jesus acima de todas as figuras divinas do paganismo. A mensagem de Mateus é clara: Jesus não nasceu meramente de um deus, como Platão ou Apolónio de Tiana; Jesus é ainda mais divino – o seu nascimento foi ainda mais miraculoso: foi virginal.
O aspecto curioso a reter aqui é que a ideia da concepção virginal resulta de uma extrapolação da Septuaginta. Se, por acaso, Mateus tivesse usado a Bíblia Hebraica e não a sua versão (errada) em grego, é muito provável que a ideia da concepção e nascimento virginal – um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica – nunca tivesse surgido no seu evangelho. Eis a frágil natureza do alicerce dogmático.
Estranhamente, apesar de ser consensual entre os especialistas que o original de Isaías (7:14) não fala em ‘virgem’, o Catecismo oficial da Igreja insiste em citar, no seu artigo §497, essa passagem do Antigo Testamento com a palavra ‘virgem’. O artigo §498 “rejeita que a concepção virginal seja uma lenda ou apenas uma construção teológica sem pretensão histórica”. Isto quando a mais básica das avaliações históricas parece indicar exactamente o contrário, ou seja, que estamos perante um caso de pura invenção. Mas é assim mesmo que funciona a crença baseada na fé, esse substituto pobre da razão, que tem precedência sempre que as evidências e o pensamento crítico teimam em não corroborar as doutrinas desejadas.
A história da natividade relatada por Mateus assenta como uma luva no imaginário dos gentios e judeus helenizados do Cristianismo primitivo, a quem este evangelho foi inicialmente transmitido.
Segundo Geza Vermes [1], os elementos sobre o nascimento virginal fazem mais sentido se entendidos como um desenvolvimento posterior, uma espécie de prólogo propagandista para consumo de pagãos, que surge só na fase em que a história é transmitida em grego. Antes desta fase, ou seja na tradição pré-evangélica, Jesus seria identificado como o Messias davídico a quem era reconhecida uma relação especial com Deus, mas é pouco provável que se considerasse que era filho de mãe virgem.
Essa é também a opinião de Bart Ehrman [2]: nas tradições anteriores ao Novo Testamento, Jesus era visto pelos seus seguidores como um ser humano (não divino) que tinha sido adoptado por Deus como seu filho. A ideia da concepção virginal não fazia parte do quadro de crenças e era mesmo activamente rejeitada pelos Ebionitas, um dos grupos cristãos primitivos de que há registo, que partilhavam este ponto de vista que os académicos designam por adopcionismo. O facto do evangelho mais antigo (o de Marcos) não fazer qualquer referência à concepção virginal de Jesus reforça esta perspectiva.
A perspectiva adopcionista está em perfeita sintonia com aquilo que sabemos da antiga Mesopotâmia e da Babilónia, em que a divindade titular adoptava o rei como seu filho, conferindo-lhe poder. Este mito encontra reflexo em algumas passagens do Antigo Testamento e era com base neste tipo de filiação simbólica que os primeiros cristãos judeus atribuíam a Jesus o título de Filho de Deus. Segundo Randal Helmes[3], esta filiação nunca foi verdadeiramente compreendida pelos cristãos gentios, os quais, vindos de um ambiente pagão, conheciam unicamente a concepção divina de heróis, em que a divindade era literalmente o pai dessa figura. É, pois, com a transmissão do evangelho junto destes cristãos não judeus que surge, fruto dum processo de sincretismo, a história da concepção divina de Jesus. O erro na tradução grega do Antigo Testamento fornece o motivo adicional para a criação do mistério da concepção e nascimento em estado virgem, reforçando-se assim a imagem de um Jesus literalmente filho de Deus e literalmente divino. Negar a influência do pensamento pagão na génese dos mitos cristãos, como o faz reiteradamente a Igreja no seu Catecismo, é não só intelectualmente desonesto, como um sinal claro da irracionalidade da fé.
A terminar, uma última questão que não se relaciona com a Natividade, mas que vem no seguimento do tema anterior: a virgindade perpétua de Maria.
Na opinião de muitos académicos, é um engano supor que os evangelhos sustentam a ideia de que Maria se tenha mantido virgem até à morte. Trata-se de mais uma invenção da Igreja. Segundo Vermes e James Tabor [4], o dogma da virgindade perpétua não é detectável em passo algum do Novo Testamento, nem faz parte de nenhuma das crenças mais antigas dos primeiros cristãos. A maior parte dos escritos cristãos datados de antes do final do séc. IV EC, aceitavam sem reservas a ideia de que os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos nascidos de modo natural de José e Maria. A noção da “virgindade real e perpétua”, referida no artigo §499 do Catecismo da Igreja, não passa pois de um produto da imaginação fértil dos pensadores cristãos, obcecados com a ideia do sexo como veículo primordial de transmissão do pecado original.
EVM
Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament”, HarperCollins, 2011.
[3] Helmes, Randal; “Gospel Fictions”, Prometheus, 1989.
[4] Tabor, James; “The Jesus Dynasty: The Hidden History of Jesus, His Royal Family and the Birth of Christianity”, Simon & Schuster, 2007.