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Etiqueta: Catolicismo

22 de Março, 2025 Onofre Varela

«Onde estava Deus?»

O tempo que tem feito, com estragos e mortes em vários pontos do globo, lembrou-me que perante tal infortúnio há quem se pergunte: “Onde estava Deus, que permitiu tão nefasto acontecimento? Porque não evitou tal desastre se, afinal, ele tudo sabe e pode?”

São perguntas lícitas que qualquer crente pode fazer, mas não há respostas para elas. A pergunta só é formulada por quem crê, na convicção de a divindade ser real para além dos seus pensamentos. Na verdade Deus não podia estar no local do acidente, da catástrofe natural ou do crime, porque como ideia que é, só se encontra dentro da cabeça de quem nele crê. Fora da cabeça do crente não há Deus em lado algum. 

Penso que esta pergunta trágica do crente que se sente frustrado por não ver a intervenção divina naquilo em que, segundo o seu entendimento, deveria intervir, aconteceu aos judeus na segunda metade da década de 1940. Por essa altura o pensamento filosófico foi abalado por duas realidades brutais: duas guerras tinham preocupado o mundo, e a segunda delas carregava o peso do holocausto judeu, promovido pela Alemanha Nazi, mais o trágico fim do Japão no teatro de guerra, com o lançamento de duas bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, pelos EUA.

Quando os soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres, era o que restava dos prisioneiros judeus. O general Eisenhower fez questão de ver tudo com os seus próprios olhos e recomendou a quem tivesse máquinas fotográficas que registasse o maior número possível de imagens, pois haveria de surgir um dia em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam (premonitório!). 

Gerada com IA

Passado o natural estupor provocado pelo conhecimento das atrocidades cometidas na guerra, a realidade da condição humana, no contexto político, social e religioso da época, foi alvo de profundas reflexões que tiveram eco na década seguinte, prolongando-se para a de 1960, ultrapassando-a, até. A religião, como refúgio das almas, não podia, naturalmente, estar ausente dessas reflexões que acabaram por promover mudanças de atitudes. 

Não era possível explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos, nem eliminar a dor das vítimas. E os religiosos mais directamente atingidos pela tragédia da guerra sentiam legitimidade para perguntar: “Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!” 

Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira… mas tais perguntas não têm razão de ser! Elas não consideraram a História, a sociedade, nem a naturalidade das coisas naturais. São perguntas sem nexo, ao nível da mitologia que as provoca… logo, são irrespondíveis porque também são “ininterrogáveis” por uma mente esclarecida! 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) OV

16 de Março, 2025 Carlos Silva

Epístola

Imagem: RTP

Acabei de ver um pequeno extrato em vídeo que, parece, terá sido transmitido ontem por uma estação pública de TV (a RTP para a qual obrigatoriamente contribuo com a quantia mensal de 2,85€) durante um programa designado “Eucaristia Dominical”.

Durante o extrato, uma das participantes do evento, dito religioso, lê um texto bíblico, que alegadamente terá sido proferido pelo Apóstolo São Paulo aos Efésios.

Até aqui tudo bem!… Apenas mais um texto, como tantos outros!

A questão é que sou de imediato confrontado e desafiado a reagir às citações, certamente incumbidas por interposta pessoa.

Cito…

“Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo, do qual é o Salvador. Ora, como a Igreja se submete a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos. (…)”

Após o embate inicial, qualquer pessoa, menos atenta ao tema, dirá…

A sério? “Isto está mesmo escrito na Bíblia?!”

A Igreja Católica diz que “a mulher é inferior ao homem e deve submeter-se a ele”?!

Não é possível!

Pois é!… Estamos mesmo no Séc. XXI… e confesso que previamente, tendo em conta o que atualmente se está a passar no Afeganistão relativamente à situação da mulher, pensei que se trataria de uma crítica da igreja católica portuguesa aos talibãs…

Afinal não era!

Apenas mais do mesmo!…

O mesmo discurso “obsoleto e primitivo” que claramente choca com a Constituição da República Portuguesa e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem… (e da mulher!)

Quase ninguém sabe, mas em Portugal existe uma entidade que supostamente será um exemplo de excelência e eficiência e cuja competência é precisamente fiscalizar e regular este tipo de conteúdos…

Não fiscalizou nem regulou antes de ser exibido… e a até ao momento também não terá sequer reagido…

E o nosso “Estado”?! O que faz?!

Pois continua no mesmo silêncio de sempre… uma espécie de silêncio conveniente, ou talvez estratégico para que a Igreja Católica divulgue e exponha publicamente alguns extratos mais transcendentais das suas brilhantes escrituras!

AGORA ATEU (I), 2021-08-23

Nota: Após a polémica… reação da Conferência Episcopal Portuguesa:

9 de Março, 2025 Onofre Varela

Humor e Fé(2)

Herman José, em 1994, teve um programa no canal 1 da RTP, denominado Herman Zap!, de grande audiência e agrado nacional. Um dia, nas suas rábulas, criou uma Última Ceia de Jesus, humorística. Caiu o Carmo e a Trindade!… 

A Igreja Católica não achou piada nenhuma àquele excelente trabalho de comédia, e protestou. O bispo Maurílio Gouveia, então responsável por um gabinete que julgo denominar-se “Episcopado para a Comunicação”, apressou-se a dizer que “O programa ridicularizou o que há de mais sagrado na fé dos cristãos: a eucaristia”. A série de programas foi interrompida e realizaram-se mesas redondas debatendo a questão religiosa e a liberdade de expressão. 

Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PPD, declarou: “Vejo com preocupação que, sendo um canal de serviço público, nele se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como é a Igreja Católica”. Herman José mostrou-se surpreendido pela reacção da Igreja, e declarou: “Deus deve estar a rir-se às gargalhadas da mesquinhez de quem criticou o Herman Zap!”. 

RTP

Organizou-se uma mesa redonda na RTP onde se discutiu aquele programa televisivo de diversão transformado em tragédia nacional pela Igreja, e frei Bento Domingues pareceu-me ser, de entre os vários intervenientes, aquele que teve a opinião mais lúcida. Declarou ter visto o programa e não ter encontrado nele nada que beliscasse a sua fé. Confessou que até lhe achou graça: “Aquilo tinha a ver com o meu riso, não com a minha fé”, disse. 

Na madrugada do dia 24 de Dezembro de 2019 extremistas brasileiros atacaram à bomba, no Brasil, a sede da produtora de conteúdos televisivos “Porta dos Fundos”, como protesto pela transmissão televisiva de um “sketch” cómico com o título “A primeira tentação de Cristo”, na qual Jesus foi representado como um jovem que terá tido uma experiência homossexual, e também insinua que o casal bíblico Maria e José viveram um triângulo amoroso com Deus. 

Eu vi o programa e não vi nele a graça que, provavelmente, os seus autores pretendiam. Teve dois ou três momentos de humor, e o restante, para o meu gosto e de acordo com o excelente trabalho que já vi do mesmo grupo, era francamente mau. A qualidade daquilo era muito rasteira… mas, daí, até se lançarem bombas contra a empresa produtora do programa, vai uma distância abissal!… Pode-se gostar ou não gostar e criticar o programa. Se nos consideramos ofendidos apresentamos o nosso protesto às entidades competentes para julgar o caso, e esperamos que a Democracia e a Justiça façam o seu trabalho… mas um ataque à bomba é crime! 

Naquele momento da política brasileira (consulado de Jaír Bolsonaro), com as acções da Direita mais extremista apoiada por Bolsonaro, a liberdade de expressão e de criação artística estava seriamente comprometida. O seu próprio filho, Eduardo Bolsonaro, deputado por São Paulo, foi uma das figuras públicas a condenar o “sketch”. Os actores Gregório Duvivier e Fábio Porchat, responsáveis pela “Porta dos Fundos”, declararam: “Não nos vamos calar! Nunca!”. Eu apoio sempre qualquer luta a favor da liberdade de criação e expressão. Não admirei aquele trabalho, mas defendo a liberdade de o terem criado. 

Um dia depois do atentado, um grupo ultra-nacionalista intitulado “Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integrista Brasileira”, reivindicou a responsabilidade do acto criminosoo. O espírito que sobressai do nome deste grupo leva-me a entendê-lo como uma espécie de Ku-Klux-Klan e de agrupamento Nazi. Só grupos de tal índole atacam a liberdade de expressão, alegadamente em favor de um ultranacionalismo balofo e criminoso. 

(Continua) 

24 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

Sobre a Saúde Debilitada do Papa

Acompanhando o noticiário que dá conta da hospitalização de Francisco I (F1), padecendo de pneumonia nos dois pulmões, lamento o seu estado de saúde e coloco-me ao seu lado na esperança de que se liberte do mal, recupere rapidamente e regresse à sua vida normal.

A propósito, lembrei-me de que (já lá vão muitos meses), vi e ouvi num canal de televisão, um responsável político do CDS dizer algo parecido com isto, relativamente ao criticar da crença (cito de cor): “Se não é crente não tem o direito a dar opinião sobre a crença dos outros”. Tal frase mostra que quem a profere, muito provavelmente, deseja (como político extremado que é) cortar a voz a quem tem opinião diversa da sua.

Gerado com IA.

É evidente que não preciso de ser religioso para ter opinião sobre religião e religiosos, como não preciso de dar vivas ao rei para poder criticar a Monarquia. Só preciso de estar atento à evolução da História, ter opinião própria e viver numa sociedade que respeita a liberdade de expressão, para o poder fazer. Como ateu é evidente que tenho opinião formada sobre religião, e como humanista é mais do que evidente que espero o rápido restabelecimento da saúde de F1.

Sei que este meu “sentimento fraterno de ateu” relativamente ao Papa, não é partilhado por muitos religiosos!… Neste tempo em que ultra-conservadores de extrema-direita e muitos milionários norte-americanos apoiados por Donald Trump, mais tantos outros europeus e asiáticos com o mesmo pensamento mercantilista do comissionista que tomou o poder nos EUA, esperam o pior desfecho para a vida de F1.

No dia 5 de Outubro de 2019 o jornalista Miguel Araújo divulgou no Diário de Notícias o facto (ou a ideia) de haver uma guerra movida contra o Papa pelo sector fundamentalista da Igreja Católica que trata F1 como herege, e que conta com o apoio dos “principais financiadores do Vaticano”. São “insondáveis os caminhos das pressões junto dos senhores da Santa Sé”. Estes “senhores” têm o objectivo de, “algures num futuro mais ou menos próximo, preparar terreno para escolher um Papa que tenha uma visão do mundo que se oponha frontalmente à de um bispo de Roma como Francisco, um «esquerdista» como é apoucado, por denegrir «o deus do dinheiro», atacar um liberalismo económico desenfreado e as políticas desumanas dos Estados ocidentais para com os migrantes, apostando sempre no diálogo e nas pontes com aqueles que os ultra-conservadores querem ver expulsos da mesma mesa [como os homossexuais, as mulheres que abortam, os casais de união de facto, os divorciados e recasados, etc.]».

F1 está ciente desta conspiração interna que cresceu contra si. Por isso, no lote dos novos cardeais (então nomeados) se conta o português José Tolentino Mendonça, entre outros da sua confiança. Há uma facção fundamentalista na Igreja Católica que se coloca ao lado do deus-dinheiro, do poder económico, abandonando os pobres e maltratados, esperando o rápido fim de F1… que pode sobreviver (e espero que sobreviva) à pneumonia que o debilita neste momento…  mas pode não escapar à maldade que contra si se alberga na Santa Sé, que tendo tantos “santos”… provavelmente terá muito mais “demónios”!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

22 de Fevereiro, 2025 Carlos Silva

Sudarium Capitis

Imagem: Internet
Nota: “Sudarium Capitis”: Manto muçulmano com 2,81 m comprimento e 1,13 de largura.

Desde o século XII, em Cadouin, França, os cristãos veneraram, efetuaram peregrinações, atribuíram milagres e ressurreições a uma peça de tecido (“sudarium capitis”) que supostamente teria envolvido a cabeça de Cristo e tinha sido preparado pela própria “Virgem Maria”.

Inesperadamente, em 1935 o bispo de Périgueux suprimiu todas as cerimónias porque foi descoberto por um professor da Escola de Línguas Orientais, de Paris, que o mesmo continha a inscrição…
“Em nome de Deus clemente e misterioso (De Deus não há senão Allah) seu associado. Mahomet é o enviado de Allah…” -que teria pertencido a Moustali, que foi califa do Egipto entre 1094 e 1101. O pano foi tecido nessa época.

Até à Revolução, o sudário foi considerado uma das mais importantes relíquias de França, ao ponto de no século XVIII o Padre Frison lhe chamar “o mais antigo e firme monumento da Religião” (Católica).
“Fiéis em multidão vieram orar diante deste precioso motivo de paixão” …
A “Igreja encorajou as peregrinações e numerosos Papas atribuíram graças e indulgências aos peregrinos” …
“As peregrinações continuaram cada vez mais numerosas, acompanhadas de milagres retumbantes e prodigiosos (ressurreições)…”

Por mais de 700 anos os fiéis católicos veneraram um manto que continha inscrições que glorificaram Allah e Mahomet e catorze papas declararam solenemente que o Sudário de Cadouin era autêntico.
O bispo Debert afirmou que, “duvidar da sua autenticidade, equivalia a nunca mais podermos dar crédito a testemunhos humanos”.

Para além deste longo e humilhante período de tempo de “paixão religiosa” que a Igreja Católica devotou a um véu islâmico, é de salientar a forma brusca como foi interrompida após ter sido desmascarada… e sobretudo como tem sido silenciada para não cair na chacota popular ou objeto de ridicularização perante a opinião pública.

Se a “autenticidade dos milagres tem no sudário de Cadouin o seu mais genuíno padrão” e o tomarmos como um exemplo histórico que teve início no século XII e foi venerado por multidões de peregrinos até 1935, então o que dizer, do fenómeno (“milagre de Fátima”) que teve início em 1917 e pouco mais que um século de vida tem, mas atinge hoje uma das suas fazes mais apoteóticas e de maior fulgor económico?


Fonte: Fátima Desmascarada, Cap. XI., João Ilharco

AGORA ATEU (II), 2023-02-02

4 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

«Ateísmo-Cristão»

Em 1945, quando soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres era o que restava dos prisioneiros judeus. O general Eisenhower pediu a quem tivesse máquinas fotográficas para registar o maior número possível de imagens, pois haveria de vir um tempo em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam (premonitório!).

A realidade da condição humana foi alvo de profundas reflexões. A religião, enquanto refúgio das almas, não sabia explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos. Os crentes mais directamente atingidos pela tragédia, sentiam legitimidade para perguntar: “Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!”… Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira. Urgia assumir a necessidade da revisão de conceitos culturais e religiosos que tinham perdido todo o significado e o carisma que possuíam antes da guerra.

Foto de Frederick Wallace na Unsplash

Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão perito em história das religiões, era um dos intelectuais que alinhavam na nova atitude. Anunciou a necessidade da proclamação moderna do Evangelho “sem que os ouvintes se sintam obrigados a adoptar a mentalidade e a cultura dos homens do começo da era cristã”. Bultmann chamava a atenção para o facto de o Novo Testamento ser mitológico, e preocupava-se com a questão de como propor o verdadeiro conteúdo da mensagem cristã. “Esta exprimiu-se nos primeiros séculos segundo um determinado número de ideias, de imagens, de referências tomadas da cultura de então, cuja forma de pensar era mítica, isto é, apresentava as realidades divinas, transcendentes, em termos deste mundo. Ora, essa forma de pensar já não é a nossa!”.

Impunha-se a desmistificação da mensagem cristã tornando-a compreensível na simples e natural dimensão humana, abandonando a ideia de se ter em Jesus Cristo (JC) um mediador da divindade.

Mas Bultmann foi mais longe nas suas considerações. Argumentando que desde o século I o entendimento evoluiu de tal modo que a concepção do mundo e o aparecimento do Homem são matérias que já não podem ser consideradas da mesma maneira, defendia que a ressurreição de Cristo devia ser considerada como mito. Não a rejeitava enquanto mensagem de fé, mas entendia que deveria fazer-se a separação dos conceitos, já que, na realidade, JC não ressuscitou!…

O seu contemporâneo Thomas J. L. Altizer, também teólogo, navegava nas mesmas águas e propôs a ideia do “Ateísmo-Cristão”, fundamentando-se em estudos que lhe permitiam concluir que “o Deus soberano, absoluto, opressivo e transcendente, morreu em Jesus Cristo. Deus aniquilou-se a si próprio para que uma nova manifestação do espírito pudesse aparecer sob uma forma profana. A morte de Deus deveria ser saudada pelos cristãos como um acto redentor que liberta o homem da escravidão a uma divindade despótica que lhe permite aguardar, confiante, uma nova epifania do Espírito no mundo”.

Estas eram as preocupações de alguns homens de religião despoletadas pela guerra, pelos horrores e pelas atrocidades que se conheceram em 1945. Hoje, quando assisto a uma missa observando o que ali acontece, retrocedo para a Idade Média!… A Igreja não ouviu os seus influentes teólogos de há 80 anos.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

29 de Janeiro, 2025 Eva Monteiro

Nem só de religião vive o ateu

O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.

Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.

Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.

Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.

Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro.  Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?

O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.

Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.

Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:

Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.

Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.

Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.

17 de Janeiro, 2025 Onofre Varela

SENTIR-SE E SER-SE OFENDIDO

A clérigo sandeu parece-lhe que todo o mundo é seu”

(Provérbio Popular)

A propósito de o Papa Francisco I condenar populismos e defender divorciados e homossexuais (tal como “O Cidadão” noticiou no último dia 15 de Janeiro), mostrando ser a primeira vez que o Vaticano tem na Cadeira de São Pedro um clérigo verdadeiramente sensível e fraterno na defesa das liberdades individuais, limpando – com as suas atitudes e os seus discursos – a parte mais negra da História que a Igreja Católica escreveu durante séculos, lembrei-me de um caso ocorrido em Fevereiro de 2016. Já lá vai quase uma década, mas o sentimento de escândalo que ele provocou, continua actual; por isso considerei lembrá-lo aqui e agora.

Nessa ocasião, para assinalar a aprovação da lei que permite a adopção de crianças por parte de parelhas do mesmo sexo (eu prefiro usar o termo “parelhas” em vez de “casais”, porque “um casal” implica dois indivíduos de sexo diferente: um macho e uma fêmea. O termo “parelha” designa “um par”… neste caso, “um par de pessoas – duas pessoas”, que é o que é, e não um casal!) o Bloco de Esquerda (BE) criou um cartaz que gerou controvérsia, representando, em desenho, a figura (graficamente esbelta e religiosamente correcta) de Jesus Cristo, com a frase “Jesus também tinha 2 pais”. Esta mensagem, sob o ponto de vista histórico, científico e filosófico, é imaculada… não ofende ninguém e sublinha o que as religiões cristãs afirmam: Jesus é filho de Deus, e José é o seu pai adoptivo! Logo, tendo um pai adoptivo, não resta dúvida de que conta com dois pais… o adoptivo… e o outro!

(Bem… aqui, “o outro” , refere o “pai biológico”. Mas na estória cristã, a Biologia não está presente… aquilo não se entende… é uma confusão em que entra a figura de uma casta e branca pombinha, chamada “Espírito Santo”, como portadora do esperma divino que depositou no ovário de Maria… o que dificulta a compreensão do acto!… Os crentes afirmam esta “narrativa de fé” como sendo realidade, mas eu desconfio que quem a afirma não a entende e só a defende “por fé” sem se preocupar com as explicações que devia exigir para, só depois, poder defender… ou não!).

A aprovação da Lei da Adopção foi confirmada na Assembleia da República no dia 10 de Fevereiro, depois de Cavaco Silva (então presidente da República) a ter vetado. Em termos de religiosidade, não há diferença no tratamento das leis por parte de Cavaco e de Marcelo. Ambos são católicos e, na presidência de uma República laica (repito, em maiúsculas: LAICA) perfilam-se ao lado da Igreja, desaprovando tudo quanto a LAICIDADE REPUBLICANA diz dever ser aprovado.

A Constituição Portuguesa permite que um qualquer cidadão fiel a uma qualquer fé religiosa, seja eleito para presidir à República que é LAICA!… E permite-o, exactamente, por atribuir legalidade ao sentimento religioso, à sua fé e à sua livre expressão, quer se seja a favor, ou contra… correndo-se o risco de a LAICIDADE republicana não ser cumprida. São as idiossincrasias da Democracia!…

O BE, fazendo Juz à política de Esquerda que representa, concordou com a lei da adopção de crianças por parelhas do mesmo sexo, bem como concorda com o casamento homossexual, porque respeita a dignidade do Ser Humano e as vontades individuais. A Igreja Católica é que não alinha com tal respeito e contestou a lei por se sentir ofendida (esquecendo que estava a ofender a Liberdade e a Dignidade de quem quer ver a lei aprovada, em nome da sua própria Liberdade que o espírito do 25 de Abril lhe deu). Numa atitude de assumir a figura do “politicamente correcto”, o BE reconheceu ter sido um erro usar aquela mensagem e desculpou-se, retirando os cartazes, demonstrando usar de muito mais compreensão do que aquela de que a Igreja Católica se diz portadora.

Quero aqui dizer que quando alguém se sente ofendido, esse sentimento não é, por si só, prova de que o tenha sido realmente. “Sentir-se” não é o mesmo que “ser-se”. Eu posso sentir-me rico e ser pobre (ou vice-versa)!… Qualquer ofensa só é real se for exercida com a consciência de ofender. Se na sua origem não estiver a atitude de ofender, a ofensa não passa de um incidente que foi lido como ofensa pelo receptor, independentemente da intenção do emissor.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo e comentando, ao ofendido, o texto que o meu interlocutor diz ter sido uma ofensa à sua fé. Invariavelmente fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender as coisas. E quando esta ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o BE usasse aquela imagem e aquela frase, sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias (por isso há tantas seitas religiosas baseadas no mesmo Livro), e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação só porque choca com entendimento diverso. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico, nem natural… não passa de uma “estória de fé” que, merecendo respeito, também merece crítica numa sociedade maior, livre e consciente da Liberdade que tem.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia grega, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde. (Naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade.

A fé deve ser mantida por quem a tem, e respeitada por quem a não tem… mas não é matéria tabu! Nada o é. Numa sociedade maior (como é a nossa, liberta de ditaduras fundamentalistas religiosas) pode-se falar de tudo, seja elogiando ou criticando. E se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o seguidista de uma fé que desliga o seu motor de busca na procura de entendimento… e nunca o seu crítico.

Por muito respeito que me mereçam todos os crentes, eu tenho (tal como eles) o direito (e a obrigação) de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico, e a biologia implica sexo. 

A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas reais e naturais. 

19 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 2/2

O nascimento virginal é, provavelmente, o aspecto crucial da natividade de Jesus Cristo.
Estranhamente, é também um conceito sem paralelo na Bíblia Hebraica e na literatura judaica pós bíblica, onde os nascimentos extraordinários ou ocorrem com mulheres que já ultrapassaram a idade reprodutiva, ou são fruto de uniões entre anjos e mulheres humanas, semelhantes às dos mitos greco-romanos. No entanto, estes nascimentos nunca implicam a conservação do estado de virgindade.
A história da antiguidade é rica em figuras com suposta origem divina. Considerando apenas as celebridades que viveram perto do tempo de Jesus, podemos citar, por exemplo, Platão, o gigante da filosofia que se acreditava ser filho de uma mulher e do deus Apolo; Alexandre o Grande, que tinha fama de ser o produto de uma aventura entre a sua mãe e Zeus; Apolónio de Tiana, profeta venerado pelas suas curas milagrosas e ressurreições de mortos, também ele resultado de uma investida de Zeus sobre uma donzela mortal; e César Augusto, que também teve créditos de paternidade divina. No fundo, trata-se de lendas que nos dão uma ideia do contexto mental dos gentios helénicos da época e que são, portanto, importantes para a compreensão histórica dos evangelhos.


Para sustentar a ideia do nascimento em estado virgem, Mateus cita a profecia de Isaías (7:14). Contudo, já há muito que se sabe que o original desta passagem não se refere a uma virgem, nem a qualquer tipo de concepção miraculosa. O equívoco acontece, porque o autor de Mateus cita a profecia de Isaías segundo a versão grega da Bíblia Hebraica (a Septuaginta), que contém vários erros de tradução. Um desses erros ocorre exactamente neste versículo de Isaías: enquanto o original hebraico refere uma ‘mulher jovem’ que irá conceber, a tradução grega refere uma ‘virgem’.
Baseando-se portanto em Isaías (7:14), o autor de Mateus pretende demonstrar que Jesus é o Messias previsto pelas escrituras. O equívoco fornecido pelo erro de tradução motiva-lhe a criação da história do nascimento virginal, uma fórmula que permite colocar Jesus acima de todas as figuras divinas do paganismo. A mensagem de Mateus é clara: Jesus não nasceu meramente de um deus, como Platão ou Apolónio de Tiana; Jesus é ainda mais divino – o seu nascimento foi ainda mais miraculoso: foi virginal.
O aspecto curioso a reter aqui é que a ideia da concepção virginal resulta de uma extrapolação da Septuaginta. Se, por acaso, Mateus tivesse usado a Bíblia Hebraica e não a sua versão (errada) em grego, é muito provável que a ideia da concepção e nascimento virginal – um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica – nunca tivesse surgido no seu evangelho. Eis a frágil natureza do alicerce dogmático.
Estranhamente, apesar de ser consensual entre os especialistas que o original de Isaías (7:14) não fala em ‘virgem’, o Catecismo oficial da Igreja insiste em citar, no seu artigo §497, essa passagem do Antigo Testamento com a palavra ‘virgem’. O artigo §498 “rejeita que a concepção virginal seja uma lenda ou apenas uma construção teológica sem pretensão histórica”. Isto quando a mais básica das avaliações históricas parece indicar exactamente o contrário, ou seja, que estamos perante um caso de pura invenção. Mas é assim mesmo que funciona a crença baseada na fé, esse substituto pobre da razão, que tem precedência sempre que as evidências e o pensamento crítico teimam em não corroborar as doutrinas desejadas.
A história da natividade relatada por Mateus assenta como uma luva no imaginário dos gentios e judeus helenizados do Cristianismo primitivo, a quem este evangelho foi inicialmente transmitido.
Segundo Geza Vermes [1], os elementos sobre o nascimento virginal fazem mais sentido se entendidos como um desenvolvimento posterior, uma espécie de prólogo propagandista para consumo de pagãos, que surge só na fase em que a história é transmitida em grego. Antes desta fase, ou seja na tradição pré-evangélica, Jesus seria identificado como o Messias davídico a quem era reconhecida uma relação especial com Deus, mas é pouco provável que se considerasse que era filho de mãe virgem.
Essa é também a opinião de Bart Ehrman [2]: nas tradições anteriores ao Novo Testamento, Jesus era visto pelos seus seguidores como um ser humano (não divino) que tinha sido adoptado por Deus como seu filho. A ideia da concepção virginal não fazia parte do quadro de crenças e era mesmo activamente rejeitada pelos Ebionitas, um dos grupos cristãos primitivos de que há registo, que partilhavam este ponto de vista que os académicos designam por adopcionismo. O facto do evangelho mais antigo (o de Marcos) não fazer qualquer referência à concepção virginal de Jesus reforça esta perspectiva.
A perspectiva adopcionista está em perfeita sintonia com aquilo que sabemos da antiga Mesopotâmia e da Babilónia, em que a divindade titular adoptava o rei como seu filho, conferindo-lhe poder. Este mito encontra reflexo em algumas passagens do Antigo Testamento e era com base neste tipo de filiação simbólica que os primeiros cristãos judeus atribuíam a Jesus o título de Filho de Deus. Segundo Randal Helmes[3], esta filiação nunca foi verdadeiramente compreendida pelos cristãos gentios, os quais, vindos de um ambiente pagão, conheciam unicamente a concepção divina de heróis, em que a divindade era literalmente o pai dessa figura. É, pois, com a transmissão do evangelho junto destes cristãos não judeus que surge, fruto dum processo de sincretismo, a história da concepção divina de Jesus. O erro na tradução grega do Antigo Testamento fornece o motivo adicional para a criação do mistério da concepção e nascimento em estado virgem, reforçando-se assim a imagem de um Jesus literalmente filho de Deus e literalmente divino. Negar a influência do pensamento pagão na génese dos mitos cristãos, como o faz reiteradamente a Igreja no seu Catecismo, é não só intelectualmente desonesto, como um sinal claro da irracionalidade da fé.
A terminar, uma última questão que não se relaciona com a Natividade, mas que vem no seguimento do tema anterior: a virgindade perpétua de Maria.
Na opinião de muitos académicos, é um engano supor que os evangelhos sustentam a ideia de que Maria se tenha mantido virgem até à morte. Trata-se de mais uma invenção da Igreja. Segundo Vermes e James Tabor [4], o dogma da virgindade perpétua não é detectável em passo algum do Novo Testamento, nem faz parte de nenhuma das crenças mais antigas dos primeiros cristãos. A maior parte dos escritos cristãos datados de antes do final do séc. IV EC, aceitavam sem reservas a ideia de que os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos nascidos de modo natural de José e Maria. A noção da “virgindade real e perpétua”, referida no artigo §499 do Catecismo da Igreja, não passa pois de um produto da imaginação fértil dos pensadores cristãos, obcecados com a ideia do sexo como veículo primordial de transmissão do pecado original.
EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament”, HarperCollins, 2011.
[3] Helmes, Randal; “Gospel Fictions”, Prometheus, 1989.
[4] Tabor, James; “The Jesus Dynasty: The Hidden History of Jesus, His Royal Family and the Birth of Christianity”, Simon & Schuster, 2007.

8 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

Crer é um acto intelectual

Muito provavelmente a ideia de Deus (dos deuses) entrou em processo de depuração logo após a termos criado, por sentirmos que o caminho dos deuses, afinal, era uma vereda muito mais estreita do que a estrada que ambicionávamos pisar. Razões diversas estarão na base da motivação que nos levou à criação das divindades – que imaginávamos ter-nos oferecido o mundo, a vida e a felicidade eterna – e à eleição de um deus particular para cada momento dos dias que os deuses nos ofereceram para os cultuarmos. Começamos por criar um panteão onde colocamos os deuses da nossa invenção e, com o evoluir do pensamento,

destruímos o panteão e elegemos um único deus (um deus-single) para nos servir a todo o tempo e em cada situação de vida.

A ideia do divino é comum a todas as sociedades porque o Ser Humano é único e universal. Somos o mesmo ser em todas as latitudes e em todos os tempos, e as motivações que nos levam à adoração do que quer que seja, são universais; apenas modificadas por questões culturais de cada povo e em cada época.

Em todas as sociedades há um fundo comum embelezado com as crenças, às quais não é estranha a humana necessidade da introspecção, a inquietude do acaso, a fuga à solidão e às agruras da Natureza, e o sentimento da insegurança, acrescentando o medo da morte como “medo máximo” que eternamente nos consome.

O vencer do caminho que nos conduziu ao abandono de um panteão, pretensamente (mas também enganadoramente) protector de todos os males, e ao apuro de um único deus, acabará por dispensar, também, o deusJeová (Alá) – criado pelos Hebreus, reciclado por Jesus Cristo e adoptado (e adaptado) por Maomé – que sobrou da purga que o passar do tempo e o evoluir do pensamento promoveu no panteão que gregos e romanos herdaram da civilização mesopotâmica.

Na verdade antropológica, “deus habita em nós”. Isto é: existe no nosso pensamento… mas não passa de uma ideia, não se encontrando em mais lado algum fora da cabeça de quem crê. A crença num deus (ou em deuses e santos) é uma característica da nossa espécie de “Sapiens”, a qual nos diferencia de todos os outros animais nossos companheiros da vida na Terra.

Imagem gerada por IA

Porém devemos ter a consciência de que a crença é um acto intelectual. Aqueles ateus “em princípio de carreira” que vociferam contra tudo quanto “cheira a incenso”, se não tiverem essa consciência também não têm discurso que mereça ser ouvido. Se cremos, é porque sentimos que precisamos de crer; se criamos deus à nossa imagem e semelhança, foi porque sentimos necessidade de o fazer, já que o Homem só cria aquilo de que necessita. (A exploração social e económica que dessa ideia se faz, por uma elite exploradora de tal sentimento… é que já é outra conversa!…)

O sentimento da religiosidade é comum a todos os humanos independentemente das geografias em que se encontrem, e só está vedado aos restantes animais por não terem intelecto. Foi a nossa capacidade de raciocínio, a inteligência, a sensibilidade e o sentido estético, que nos levou à criação da Arte, ao entendimento do belo e à criação de deuses (que depois transformamos no Deus único).

Esta faceta criativa que nos caracteriza, faz de nós uns seres especiais. No entanto, quando em discordância com os nossos semelhantes, somos capazes de adoptar comportamentos iguais aos de um qualquer animal predador porque a nossa origem natural, enquanto animais, é a mesma!… 

Embora raciocinemos, deixamos, imensas vezes, a nossa sensibilidade tormentosa comandar-nos tomando conta da razão… e, por esse caminho, se bem virmos, até ficamos em patamares inferiores relativamente aos irracionais nossos companheiros de reino, porque enquanto que eles só guerreiam por alimento, por fêmea e pelo domínio do grupo, nós fazêmo-lo pelas mesmas três razões dos irracionais que consideramos inferiores… e ainda acrescentamos a lista, deixando-nos tomar por uma irracionalidade e uma cupidez que demonstram o pior da nossa condição animal, incluindo na lista das malfeitorias a crença em Deus quando a usamos como arma discriminatória e até mortífera (embora, ao mesmo tempo, o louvemos e lhe cantemos loas… o que sublinha a nossa imponente estupidez).

Isto parece-me incongruente com a capacidade que temos de raciocinar… mas a verdade é que nós somos assim… somos um produto natural ainda muito mal acabado!… (Espero que a evolução natural “lime as arestas” e nos melhore… mas isto, se calhar, também já é crença!).

Nós só erramos porque somos imensamente ignorantes… alguém disse que  “o erro é uma ignorância que se ignora”. A ignorância também é uma das nossas características. Todos nós somos ignorantes, até mesmo os sábios… que só o são no seu tempo e no seu ramo… e, mesmo assim, com limites.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)