15 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins
Equívocos natalícios, Parte 1/2
O Natal já não é como antigamente. Contudo, o motivo original da celebração – o nascimento do Messias da Cristandade – permanece ainda no subconsciente colectivo. Ainda temos presentes os traços gerais da narrativa da natividade de Jesus, que nos foi transmitida na infância, como um acontecimento bastante concreto e real, ocorrido há pouco mais de dois milénios, de onde derivam aspectos importantes do corpo doutrinal da Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas, afinal, o que vem a ser esta história extraordinária, feita de anunciações angelicais, nascimento virginal, reis magos, perseguição e fuga para o Egipto? Será este um conto assim tão singular? Até que ponto é que o drama por detrás da festa natalícia corresponde à verdade histórica?
Segundo a visão defendida pela maioria dos historiadores do cristianismo primitivo, o mais provável é que tudo não passe de pura ficção – produto de imaginações férteis e esperanças religiosas a actuar na adaptação de mitos pagãos populares.
Dos quatro evangelhos da Bíblia, apenas os de Mateus e Lucas mencionam as circunstâncias do nascimento de Jesus. Segundo Geza Vermes [1], a explicação para esta singularidade é que estes foram evangelhos particularmente dirigidos a uma audiência de pagãos, ou seja, gente para quem era importante não só a génese de Jesus, como a sua compreensão em termos identificáveis com a sua própria mitologia.
Mas o mais curioso é que as narrativas de Mateus e Lucas são incompatíveis em quase todos os aspectos. Sem exagero, pode mesmo dizer-se que os evangelistas relatam duas histórias completamente distintas. Se a história tradicional de Natal não nos é familiar no formato de duas versões independentes, isso deve-se à relutância que a Igreja sempre demonstrou em reconhecer abertamente discrepâncias nos seus textos sagrados.
Vejamos, então, em que diferem os relatos da natividade preservados nestes dois evangelhos. A perseguição de Herodes, a consequente fuga da família sagrada para o Egipto e o massacre das crianças em Belém só figuram na narrativa de Mateus. Apesar de todo o dramatismo deste episódio, Lucas nem se refere a ele. Em lugar disso, diz-nos que José e Maria se vêem forçados a viajar de Nazaré para Belém por causa de um censo, sendo por essa altura que nasce Jesus.
Além de discordantes, as duas narrativas levantam sérias dificuldades históricas. O massacre dos inocentes descrito em Mateus não é referido por nenhum historiador da época, como Nicolau de Damasco e Filo de Alexandria. Mesmo Flávio Josefo, que dedicou capítulos inteiros às muitas atrocidades perpetradas por Herodes, não nos diz nada sobre o assunto, pelo que o mais certo é que tal nunca tenha sucedido.
A efabulação da narrativa de Lucas ainda é mais fácil de detectar, uma vez que este situa o nascimento de Jesus por altura dum censo decretado por César Augusto e conduzido por Quirino. Ora, sabemos, por Josefo e outras fontes, que este censo teve lugar no ano 6 EC, isto é, 10 anos após a morte de Herodes. Portanto, se confiarmos em Lucas, concluímos que Jesus nasceu a 6 EC, o que contradiz a datação de Mateus de 4 AEC.
Além disso, segundo Lucas, José é obrigado a ir a Belém para se recensear, porque era descendente do rei David – que viveu cerca de mil anos antes. Ora, não é simplesmente credível que populações inteiras tivessem de se deslocar até ao local da sua linhagem ancestral de há um milénio. Certamente que a maior parte das pessoas não saberia para onde ir! Além disso, sabemos hoje que, naquele tempo, os censos não funcionavam assim.
Por que teria então Lucas inventado esta história? Porque, para Lucas, era de crucial importância colocar o nascimento de Jesus em Belém, indo assim de encontro à profecia de Miqueias (5:1), que apontava essa localidade como origem do Messias. Desta forma, os seus leitores não teriam dúvidas de que Jesus era o Messias, ficando ao mesmo tempo com a impressão de que uma antiga profecia se tinha confirmado. Mateus, por sua vez, não tem de recorrer a nenhum artifício para situar o nascimento do salvador em Belém, pois a sua narrativa já parte com o casal Maria e José a residir aí. Contudo, o argumento usado para desviar a família sagrada para Nazaré, após o regresso do Egipto, é também pouco convincente.
Mas há ainda mais diferenças relevantes a assinalar entre os dois evangelhos. Toda a narrativa de Lucas sugere um cenário simples e humilde. Jesus nasce num estábulo e é visitado apenas por um conjunto de pastores anónimos. E não há mais nada em Lucas. Pelo contrário, em Mateus, tudo é grandioso. Aqui o Messias nasce numa casa (e não num abrigo de animais), é anunciado por uma estrela e é visitado por magos do Oriente (que, já agora, nem são reis, nem são necessariamente três). Isto torna evidente que os dois evangelistas tinham de facto entendimentos muito diferentes sobre o Messias, razão pela qual não faz grande sentido misturar os elementos das duas narrativas, como é da tradição. Quando as duas histórias são combinadas, as mensagens individuais perdem-se irremediavelmente. Nas palavras do académico Bart Ehrman [2], o resultado que se obtém não é um quadro completo e mais detalhado dos acontecimentos, como quase sempre se julga, mas antes uma terceira versão da história.
A estrela é outro dos pormenores importantes na narrativa de Mateus. O sinal dos céus é algo recorrente na mitologia da Antiguidade como forma de assinalar o nascimento de alguém capaz de alterar o curso da humanidade. Uma nova estrela surgiu nos céus quando Abraão nasceu. O nascimento de Alexandre o Grande também foi marcado pela observação de uma nova estrela. O mesmo aconteceu quando nasceu César Augusto. Mateus não faz mais do que alimentar a tradição, inventando mais uma estrela e engrandecendo assim o nascimento do Messias à escala das figuras mais eminentes. O mesmo se passa com a homenagem prestada pelos magos, que também surge nas narrativas de outros autores relativas a diferentes personagens históricas. Plínio, por exemplo, menciona a homenagem de magos feita perante Nero. Suetónio faz referência a um mago que proclama o nascimento do Senhor do mundo, aquando do nascimento de Octávio.
O nascimento virginal é talvez o aspecto crucial da natividade de Jesus, mas esse é um tema que deixamos para a segunda parte deste artigo.
—
EVM
Notas:
——-
[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “Jesus, Interrupted: Revealing the Hidden Contradictions in the Bible (And Why We Don’t Know About Them)”, HarperCollins, 2009.