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Etiqueta: Ateísmo

15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.

2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.

20 de Setembro, 2023 Onofre Varela

Sobre a morte de deus

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando se ouve vaticinar a “morte de Deus” aventada por Nietzsche, pensamos numa revolução que nasce na madrugada de um dia, e que ao raiar do Sol… Deus já não existe. Mas não é nada disso!…

A “morte de Deus” não é mais do que o abandono do conceito deifico por uma maioria que faz o caminho da sua descrença naturalmente e sem drama.

Na verdade, no nosso tempo, Deus (enquanto ideia de um ser criador omnipotente, omnipresente e omnisciente) já está a morrer… e tanto mais morrerá quanto mais alargada for a consciência das pessoas sobre a real dimensão imaginária desse milenar conceito de Deus que formatou sociedades, mas que não existe veramente fora do pensamento de quem crê.

Enquanto essa consciência não se generalizar (se, quiçá, algum dia se generalizar… e eu acredito que sim pelo facto de o Homem ser a última experiência da Natureza; somos ainda muito primitivos; cheiramos a pintado de fresco… e lá chegaremos quando atingirmos a “idade adulta”) a maioria de nós garante que a divindade é real, mercê da educação familiar e social que recebeu desde o berço. Em consequência, deposita mais confiança nos sacerdotes, bispos e pastores de igrejas e seitas malvadas… que são tão falsos quão falsos são os pregões dos políticos quando nos prometem a felicidade se receberem votos suficientes para atingirem o poder.

Na verdade a ideia de Deus emparceira com a Política no que respeita ao alimentar de desejos e paixões, e ao criar guetos e inimizades (mas também amizades… se francas ou falsas… isso já é outra conversa), e no extremo leva a guerras que a História regista e a actualidade assiste. Guerras declaradas com a invasão de países independentes, ou acções terroristas “em nome de Deus”, tão graves e mortíferas como muitas das acções bélicas decretadas por Parlamentos, generais ambiciosos e presidentes que sonham ser czares.

E também serve para manter a classe clerical e os gestores de seitas – que se pretendem defensores da moral instalada – em níveis económicos e sociais elevados… mas sem respostas realistas para o engrandecimento da sociedade onde se instalam… em vez disso prometem benefícios celestes baseando a sua moral em mitologias que são, afinal, a ferramenta do seu trabalho, de onde retiram o sustento… embora também abracem a realidade material recebendo subsídios governamentais para explorarem ramos sociais como o ensino, a saúde, lares da terceira idade e infantários. No extremo, organizações desta índole (a maior das quais, entre nós, é a Igreja Católica) transformaram a caridade numa indústria social.

A indústria da caridade é indigna numa sociedade verdadeiramente democrática e de cariz socialista que se interesse pelo bem-estar do seu Povo. Enquanto houver um sem-abrigo e uma família sem pão, a Democracia (e toda a prática política) é uma fraude. A indústria da caridade ajuda a alimentar essa fraude ao substituir a solução definitiva, que pertence aos governos, por remendos sazonais e “sopa dos pobres”, que nada resolvem em definitivo e só adiam a morte anunciada a quem tem fome, lhe falta abrigo e meios de subsistência dignos.

Neste contexto político e social (que, infelizmente, cada vez mais, faz o nosso dia-a-dia) a crença em Deus é positiva porque acaba por ser uma tábua de salvação das consciências religiosas, garantindo algum conforto espiritual.

Quero acreditar que quando atingirmos a “maioridade” enquanto “Homo sapiens-sapiens”, a perfeição comportamental estará mais perto… e a razão será de Nietzsche no vaticínio da definitiva “morte de Deus”.

Mas parece-me que isto também é fé… embora laica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Por Friedrich Hermann Hartmann – Domínio público
18 de Setembro, 2023 Onofre Varela

“No princípio era o verbo”

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

O termo Verbo é usado em Religião para designar o autor do princípio dos princípios, e na sua essência é o próprio Deus. Quem quer saber mais do que isto não o consegue nos registos religiosos; aí, o que encontra é pura fé: “Antes de qualquer coisa existir, Deus já existia. Foi ele o criador de tudo a partir da sua palavra. Deus falou e tudo se formou. Do nada, nada surge, mas da palavra de Deus tudo foi formado. O Verbo é a palavra, e a palavra é Deus. A palavra de Deus transformou-se em homem e esse homem é Jesus”.

Para um ateu, “saber isto”… é saber nada! (e para o religioso, também… embora ele imagine que não!). Quem mergulha na fé como numa piscina de sapiência, não sente necessidade de saber… a fé basta-lhe. Não tenho nada contra as vontades religiosas e só espero que quem assim sente seja feliz no entendimento dos seus conceitos… e não cometa actos contrários à ética universal, como fazem os religiosos fundamentalistas islâmicos e outros extremistas no campo da política.

Mas quem quiser saber realmente, tem de escolher outros caminhos que não os da fé. Pela fé nada se sabe. O “saber religioso” usa como garantia o selo-da-fé sem explicar os processos usados na comunicação e na criação. Em nome da fé valoriza-se o mito e relega-se a História (e toda a Ciência) para planos de menor, ou nula, importância.

Dir-me-ão que a fé pertence a outra dimensão que não à da Razão nem à da Ciência. Claro que sim. Sei disso. Os credos religiosos são uma questão ideológica, e os livros de fé derramam ideologia e não História nem Ciência. E também sei que a propaganda feita à fé para conquistar crentes, atropela e nega princípios científicos, mesmo os mais básicos. Logo, é desonesta na sua essência e à partida, por não considerar o avanço do conhecimento acontecido depois dos registos de fé que datam da Idade do Ferro e que ainda são usados como base de uma doutrina comportamental alegadamente ditada por um hipotético deus.

A fé inibe a vontade de interrogar e de investigar perante “explicações” ideológicas divorciadas de todas as explicações científicas, e algumas delas são, até, totalmente carentes de nexo. No campo racional não há espaço para discursos de pura fé debitados como realidade.

A Ciência, como meio de procura de explicações, é imbatível por qualquer ideologia política ou teológica, e quem rege a sua vida por dogmas religiosos, não tem uma conduta moral e cívica com melhor qualidade do que o ateu que se guia por uma sã decência laica. Aliás, no campo da decência, os conceitos comportamentais dos ateus até poderão ter lugar no pódio mais alto.

Os crentes, mais do que crentes, são crédulos… tomam por verdade as “escrituras sagradas” sem se preocuparem em saber a verdadeira origem e intenção primeira dos textos que lhes merecem crença em vez de compreensão. Há grupos de crentes (principalmente nos EUA, onde tudo é em grande… tanto a sapiência como a ignorância) apostados na “vitória da Bíblia sobre o conhecimento científico”, afirmando o Génesis contra a Evolução. A Ciência estuda e investiga (e também se engana), e só afirma com provas aferidas e experimentadas. Aqueles que a atacam fazem-no com base em comportamentos culturais que são outra coisa… nada têm a ver com conhecimento científico. Ao contrário da Religião, que “sabe que tudo sabe”, a Ciência apenas sabe que hoje sabe mais do que sabia ontem e espera saber, amanhã, mais do que sabe hoje… não sabendo se o saberá!

Ao contrário, a Religião afirma saber hoje o mesmo que garantia saber há cerca de três mil anos… e diz não haver nada mais para se saber e que a verdade lhe pertence… sendo que a Verdade é a “palavra de Deus” (grafada com maiúscula porque sagrada).

Perante conceitos religiosos há quem se coíba de pensar para além daquilo que diz o sacerdote ou o guru da seita, aceitando quaisquer palavras dúbias (ou explicitamente mentirosas) por verdade universal e absoluta, dispensando o seu cérebro do “penoso acto de pensar”!…

Parece ser esta a principal característica do crente típico… e quem dispensa o cérebro (não raciocinando para além dos conceitos religiosos) tem mais fé do que aquele que o usa, raciocina e quer saber.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de beate bachmann por Pixabay
11 de Setembro, 2023 Onofre Varela

Manuscritos do Mar Morto

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Os Manuscritos descobertos em 1947 em Qumrán, nas proximidades do Mar Morto, por um pastor que procurava uma ovelha tresmalhada, contém 900 textos bíblicos e são os mais antigos até hoje conhecidos. Foram alvo de várias disputas e situações dignas de um filme de espionagem, e sobre eles já foram escritos vários livros. O último deles tem como autor o teólogo bíblico Jaime Vázquez Allegue, e o título de “Los Manuscritos del Mar Muerto – La Fascinante Historia de su Descubrimiento y Disputa”, cujo conhecimento me chegou através de uma notícia publicada no jornal espanhol “El País” (16/05/2023).

Trata-se de um “ensaio literário” que se lê como um romance policial e que remete o leitor para o ano 70 da nossa era, quando as tropas do imperador romano Tito destruíram, pela segunda vez, o Templo de Jerusalém provocando a fuga de várias comunidades para o deserto.

Uma delas, denominada “Essénios”, era muito religiosa e cumpria com rigidez as leis de Moisés. Os Essénios em fuga estabeleceram-se em Qumrán, mas receavam que as tropas romanas não tardariam a encontrá-los. No sentido de preservarem os seus escritos religiosos – mais do que as suas próprias vidas  – (Livro de Isaías, Génesis, Pentateuco, Êxodo e Deuteronómio) meteram-nos em vasilhas e esconderam-nas em várias grutas daquela região que agora conhecemos por Cisjordânia. 

Para os Essénios cumpriram-se os receios da perseguição de que eram vítimas… e não escaparam ao massacre perpetrado pelas tropas romanas. Os manuscritos perderam-se por dois milénios, até à busca da ovelha tresmalhada, no Verão de 1947… cuja história é bastante conhecida.

A ideia de enriquecimento tomou conta da cabeça do achador. Os textos arqueológicos foram divididos em várias partes e vendidos a diversos coleccionadores de antiguidades. Só depois de se saber desta “tragédia comercial” é que entram em cena arqueólogos e epigrafistas apostados em reunir todos os escritos que o pastor vendeu a várias entidades.

Para os Judeus aqueles documentos eram a mais importante fonte literária da sua história, cultura e tradição. Para os Cristãos a importância daqueles textos prendia-se com o contexto social e religioso em que viveu Jesus. Os arqueólogos não tinham dúvida de que estavam perante a maior descoberta do século. Os Judeus conseguiram a sua independência em 1948 (no ano seguinte à descoberta dos manuscritos) e viam naquele achado a oportunidade de demonstrarem que os judeus habitavam aquela parte da Palestina há milhares de anos.

Os manuscritos, redigidos em Aramaico e Hebreu Antigo, converteram-se num achado de valor incalculável. Se o pastor achador vendeu os primeiros documentos por cerca de 40 dólares (no valor actual), os últimos valeram mais de um milhão de dólares! O achado foi dividido em cerca de seis centenas de peças vendidas a vários coleccionadores espalhados pelo mundo. Foi muito difícil reuni-los para poderem ser adquiridos, não por comerciantes, mas por estudiosos.

Em 1954 o jornal americano “Washington Post” anunciou a venda de uma grande parte dos Manuscritos do Mar Morto, e o estado de Israel organizou uma comissão com o objectivo de os comprar a qualquer preço, já que aquela colecção arqueológica constituía o melhor testemunho da sua origem. Israel demonstraria, assim, a todo o mundo, que aquela terra era o berço dos judeus, a terra onde chegou Abraão e que foi prometida por Deus a Moisés. Um aproveitamento dos registos de fé na tentativa de se escrever História.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

8 de Setembro, 2023 Onofre Varela

O MUNDO É PLANO, O HOMEM NUNCA FOI À LUA

E A PANDEMIA DO COVID É MENTIRA

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Vivemos numa época em que o título desta crónica pretende ser a resenha da realidade, e a tais preceitos juntam-se mais estes: Putin, Trump e Bolsonaro são exemplos de pessoas bem comportadas. Embora Putin tenha invadido o país vizinho, a culpa da invasão é da Ucrânia e da NATO, a destruição de zonas residenciais e a morte de civis inocentes não aconteceram, os cadáveres encontrados com as mãos amarradas nas costas não foram encontrados… e se alguém os viu é porque foram mortos pelos ucranianos ou se suicidaram antes de se auto-amarrarem, já que as tropas russas e os mercenários pagos por Putin estão ali em missão de paz, distribuindo beijos, abraços, flores e laranjadas, merecendo ser louvados e condecorados.

O presidente chinês foi convidado para mediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia… ele aceitou o convite com um largo sorriso de contentamento (fechando ainda mais os olhos) e o mundo também ficou contentíssimo!… Xi Jinping nem se prepara para fazer a Taiwan o mesmo que Putin fez à Ucrânia!… 

Trump e Bolsonaro são exemplos top de civismo e de bons governantes. Foram exemplares no tratamento do Covid eliminando a transmissão do vírus que enterravam bem fundo depois da população morrer às molhadas. Por isso têm quase metade dos norte-americanos e dos brasileiros a apoiá-los. O tribunal dos EUA acabou de acusar Trump por quatro dezenas de crimes… mas da lista não consta o principal que o eliminaria da corrida às eleições presidenciais: a incitação dos seus apoiantes à invasão do Capitólio em 2021. Bolsonaro repetiu a “prescrição” de Trump para os mesmos “sintomas de perda de eleições”, e também incitou à invasão do Congresso Nacional. Está em liberdade e feliz, sendo convidado de candidatos a ditadores para fazerem propaganda dos seus ideais antidemocráticos em Parlamentos estrangeiros.

No Ocidente tão “respeitador e democrático” queimam-se livros de Banda Desenhada do Tintin, do Astérix e do Lucky Luke, alegadamente por incitarem ao ódio rácico!… Ódio e racismo que enche a cabeça dos censores, mas que nunca passou pela imaginação de Hergé, Goscinny e Uderzo, nem de Morris, seus autores. 

A História é atacada nas figuras de relevo que a fizeram, vandalizando-se estátuas representativas de personalidades que, em cada tempo e de acordo com a realidade social e política das épocas a que pertenceram, a escreveram. 

Editores permitem-se censurar obras clássicas, como as histórias do Agente Secreto 007, do escritor Ian Fleming, eliminando termos como “gordo” e “negro”, substituindo-os por “forte” e “homem de cor” (como se fossem sinónimos!)… E dizem que é por ser politicamente mais correcto… sendo que o politicamente correcto não é mais do que tentar pegar num pedaço de merda pelo lado limpo! 

A Igreja Católica que sempre se considerou exemplo de moralidade e politicamente correcta, obrigando as populações a esse reconhecimento auto-propagandeado, tem na sua História milenar exemplos de gritante imoralidade, perseguições e assassinatos, albergando pedófilos no seu seio.

Os Parlamentos Democráticos abrem a porta aos seus inimigos, permitindo acento a quem a ataca por dentro e propala ideais nazis e xenófobos, lançando a confusão no cérebro dos eleitores mais manipuláveis, descontentes, ignorantes e (por isso) fáceis de iludir.

De facto este mundo não é redondo… é quadrado como as bestas que o comandam!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de WOKANDAPIX por Pixabay
6 de Setembro, 2023 Onofre Varela

A coragem do Papa Francisco

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Para um ateu o Papa não faz falta. Na lista das importâncias sociais, o Papa merece-me a designação de chefe de Estado, que é o que ele realmente é: chefe do Estado do Vaticano.

Porém… o mundo não sou eu… somos todos nós!… A religião existe e o chefe da Igreja Católica, maioritária entre nós, é o argentino Mário Bergóglio que adoptou o cognome de Francisco I para o desempenho do papel de Papa no Teatro do Vaticano (riquíssimo em cenários, adereços, guarda-roupa e com boa receita de bilheteira). A importância dos chefes das Igrejas tem peso no mundo, porque socialmente o construímos assim… e tempos houve em que os chefes políticos das nações eram também os chefes religiosos (na Inglaterra ainda é).

Os homens fazem a História… e a História modela os homens. Se habitualmente os papas não passam de beatos autoritários, não merecendo qualquer respeito especial por parte de quem não é católico, com a escolha de Bergóglio para a cadeira de S. Pedro as coisas mudaram. Francisco I está no “top” porque teve a coragem de trocar a tradicional beatice papal pela Humanidade de cariz laico.

Um dos assuntos quentes da Igreja, de muito difícil tratamento, é a praga da pedofilia no seu seio, que inundou páginas de jornais e noticiários de rádios e televisões. Velha como o tempo, a pedofilia praticada por sacerdotes sempre foi escamoteada. Os papas sabiam dela, mas encolhiam os ombros. Com Francisco I mudou o paradigma.

Em Dezembro de 2019 Francisco I aboliu o segredo pontifício para os casos de abuso sexual por membros da Igreja. A nova lei, que entrou em vigor imediatamente, levantou o silêncio em relação às queixas, processos e decisões referentes a estes casos e promoveu o dever de a Igreja colaborar com a Justiça, fornecendo toda a documentação sobre processos e denúncias em curso, às autoridades judiciais. Em Portugal a Igreja começou por ignorar a lei de Francisco I… mas acabou por cumprir, e a comissão constituída para o efeito fez bem o seu trabalho.

Especialistas nas coisas que ao Vaticano dizem respeito, afirmam haver um “lobby gay” dentro da Igreja Católica que não gosta deste Papa por contrariar os seus prazeres. Junta-se a este grupo uma outra facção que faz a extrema-Direita política do Vaticano e que rotula o Papa Francisco I de “comunista”. Se estes pudessem, destituíam-no já (ou matavam-no como – há quem o afirme – fizeram a João Paulo I em 1978), para acabarem com tal personagem desarranjadora de arranjinhos!

A política de Direita Capitalista internacional também está aliada ao movimento clerical clandestino contra Francisco I, e querem ver no Vaticano uma personalidade mais de acordo com as políticas de Direita desrespeitadoras dos pobres e dos oprimidos que Mário Bergóglio pretende ver dignificados. Não vos parece que se Deus existisse realmente… já tinha desintegrado esta Igreja?!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

4 de Setembro, 2023 Onofre Varela

A mulher mártir

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Nawal el-Saadawi nascida em 1931 e falecida em 2021, foi médica e escritora egípcia, e liderou a luta pelos direitos da mulher no mundo árabe. Foi perseguida e detida várias vezes por pensar de modo diverso do estabelecido numa sociedade machista e por divulgar o seu pensamento. Teve os seus livros confiscados e proibidos, tal como em tempo de ditadura Salazarista por cá se fazia.

Cresceu numa cultura patriarcal onde as raparigas estavam sujeitas a vários abusos desrespeitadores da mulher, como o casamento infantil e a mutilação genital. Sofreu tal mutilação por imposição familiar e tornou-se numa activista contra tão aberrante procedimento em nome de uma tradição referida como sendo cultural, mas que é, também, criminosa. Na verdade a mutilação genital é uma condenação ao sofrimento da mulher por toda a sua vida, impedindo-a de ter prazer sexual, o qual é substituído por dores sempre que tem relações. 

Escreveu dezenas de livros abordando temas tabu, como sexualidade e prostituição. Observando o mundo pleno de sociedades patriarcais e homófobas, escreveu: “Depois de viajar por todo o mundo, descobri que as raparigas são educadas de uma maneira muito parecida; estamos todas no mesmo barco. O sistema patriarcal, capitalista e religioso é universal”.

Desta universalidade nasce o desrespeito pela mulher. Na nossa sociedade ainda se discute o óbvio: se a mulher que executa o mesmo trabalho de um homem, deve receber um ordenado do mesmo valor. As tabelas salariais são sempre mais baixas para a mulher!… Esta discriminação não significa nada mais que não seja atribuir o estatuto de menor importância à mulher, e tem origem em milenares conceitos religiosos. Se no mundo ocidental (onde tanto se fala no sentido de humanidade pregado por Jesus Cristo) esta verdade existe, em países muçulmanos o drama é substancialmente ampliado.

Lembro um caso acontecido na Turquia, onde os chamados “crimes de honra” ainda são entendidos como o eram na medievalidade. No ano 2000 os jornais deram conta do caso de uma rapariga turca, de 14 anos, ter cometido a imprudência de ir ao cinema com umas amigas sem a autorização prévia da família… o que era uma vergonha. Em reunião caseira de machos, foi sentenciada a pena capital para a “portadora da vergonha familiar”, e um sobrinho da jovem, também menor, foi encarregado de executar a “justiça”. Sem pestanejar nem se interrogar por que haveria de fazê-lo, o moço aceitou naturalmente a incumbência como um ritual a ser cumprido sem questionamento. Provavelmente até se sentiu honrado por ter sido escolhido para aquela tarefa que lhe daria mais valia curricular de macho. Saiu da sala, passou pela cozinha onde pegou uma faca, foi-se à tia… e degolou-a!… E a Justiça turca nada pôde fazer, por aceitar a figura do “lavar da honra com sangue”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

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31 de Agosto, 2023 Onofre Varela

Todas as religiões são uma só

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Enquanto filosofia, a Religião é um espaço aberto a toda a gente onde se deve entrar sem ser convidado, tal como se nasce sem, para isso, termos dado permissão. Daí me sentir à vontade discorrendo sobre Religião sem necessidade de frequentar o seminário nem igrejas, onde o pensamento é unilateral. Basta-me viver com olhos e ouvidos abertos, pronto a receber a abundante informação que o meu raciocínio processa de acordo com o indivíduo que sou, o que me permitiu experimentar rebeliões e emancipações no decorrer das etapas que fizeram a minha vida, em obediência a uma ética comportamental laica. 

A ética religiosa apregoada em todos os púlpitos, tem duas vertentes: a ética universalista, puramente laica (e ateia), que induz uma boa conduta nas relações humanas; e a ética (que em alguns casos é a falta dela enquanto universalista) de conduta interna do credo que manda cumprir conforme o que está registado no livro sagrado pelo qual se rege… e que no Alcorão (III, 157) manda tirar a vida aos descrentes (segundo alguma interpretação da Jihad). 

Sendo a fé religiosa fruto de um pensamento colectivo, ela é, também, uma opção pessoal, pois cada qual terá a sua, escolhida em consciência esclarecida, ou induzida; e a fé de um, que considera ter muitíssima importância, na verdade é tão estapafúrdia como a de outro, que para um não tem valor, mas que para outro é a razão do seu viver. 

No fundo, as religiões regem-se por uma única matriz: todas elas são uma só (no sentido do sentimento da sua necessidade, que não nas práticas rituais que as diferenciam. O núcleo da fé no conceito deífico é o mesmo na construção de todas elas), como muito bem afirmou o tipógrafo, poeta, gravador e artista plástico inglês, William Blake (1757-1827). 

Um dos males que me parece consumir a Humanidade, poderá ser este de – ainda hoje, neste século XXI que sempre sonhamos ser um tempo de perfeição – se dar demasiada importância à crença num deus por nós criado, permitindo a exploração de mentes através dele, e se desrespeitar tanto o semelhante. 

Desrespeito, vaidade e interesses pessoais, que nos levam a guerras destruidoras de tanta gente e de tanto património, só porque um líder vaidoso e malvado o quer, e tem armamento que o leva a sentir-se seguro da “vitória”, por muito injusta que ela venha a ser reconhecida pela História. 

Um filósofo contemporâneo cujo pensamento admiro, é o espanhol Fernando Savater. Num dos seus textos publicados no jornal El País, lembra Immanuel Kant para dizer que o mestre “nunca explicou, nas suas aulas, nada que pudesse alterar a ordem, ainda que sempre defendesse a liberdade de expressão […] o lema da Ilustração é “sapere audi”. Atreve-te a pensar por ti mesmo. Acreditava ser já chegada a hora de a Humanidade abandonar a sua menoridade intelectual”. 

É esta menoridade intelectual que ainda hoje vejo existir na sociedade em que me insiro (e que me escandaliza), mais de 200 anos depois de Kant!… 

Somos mesmo muito lentos, porra… não aprendemos nada?!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

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29 de Agosto, 2023 Onofre Varela

FÁTIMA (5 e Fim)

Texto de Onofre Varela previamente publicado na imprensa escrita.

Cumprindo o prometido guardei para último artigo desta série de textos sobre Fátima a abordagem ao pensamento do Republicano e defensor acérrimo da Lei da Separação do Estado da Igreja, perseguido por dois sistemas governamentais, ex- seminarista, pensador e escritor beirão, Tomás da Fonseca (1877-1968). Escreveu o livro Na Cova dos Leões (editado no Brasil em 1958 e em Lisboa em 2009 pela Antígona. Tomás da Fonseca foi o último autor Português a escrever em defesa do Ateísmo, antes do meu livro “O Peter Pan Não Existe” [Caminho, 2007] 49 anos depois).

Quando li o seu livro fiquei convicto de que o autor é honesto no modo como aborda e narra os acontecimentos de 1917 na Cova da Iria. Teve o cuidado de entrevistar personalidades próximas das pessoas envolvidas neles. Em conversa com o Dr. Luís Cebola, especializado em doenças mentais e director da Casa de Saúde do Telhal, sabendo este que Tomás da Fonseca “andava coligindo elementos para a história do embuste de Fátima” lhe garantiu o seguinte (transcrevo na íntegra as palavras do autor): “O seu amigo, padre Fernando Eduardo da Silva, capelão militar já falecido, procurara-o, um dia, para dizer-lhe que não desejava ir desta vida sem lhe confidenciar um facto que supunha da maior gravidade para a Igreja Católica, de que era ministro. E narrou o diálogo havido em Torres Novas, entre três sacerdotes: o pároco de Fátima [Manuel Marques Ferreira], o fanático Benevenuto de Sousa e outro cujo nome lhe esquecera [mas que o autor identifica em nota de rodapé como tendo sido o padre Abel Ventura do Céu Faria, prior de Seiça]. Perguntado o primeiro sobre como lhe corria a vida na paróquia, respondera: «Aquilo não dá nada. Região pouco produtiva, gente miserável, sem iniciativa…». Então, o que perguntara lembrou-lhe: «Tens uma maneira de enriquecer depressa: provoca uma aparição como a de La Salette ou a de Lourdes e cai-te lá o poder do mundo»! O de Fátima ouviu, pensou um bocado e replicou: «Pensas bem. E o meio presta-se para coisas dessas!». E logo ali combinaram promover, sem perda de tempo, a aparição, entrando os três no negócio. Como, porém, rebentou a Grande Guerra em 1914, os trabalhos da empresa foram suspensos até 1917. Redigida esta nota, mostrei-a ao ilustre psiquiatra que a considerou exacta”. Algumas linhas depois, o autor diz mais isto: “Continuando na pesquisa de elementos, tempo depois encontrei-me com o velho democrata Manuel Duarte, que me informou de outro caso não menos valioso: a conversa que o bispo de Leiria mantivera com o Dr. Egas Moniz, meses após a farsa das aparições de Fátima”. Tomás da Fonseca fora colega do cientista (que, em 1949, recebeu o primeiro prémio Nobel concedido a um Português), e convivera com ele nas Constituintes da República em 1911. Procurou-o no seu escritório, ouviu o seu relato e escreveu-o no livro que cito. O Dr. Egas Moniz, certo dia, encontra casualmente o bispo de Leiria D. José Alves Correia da Silva, numa viagem de comboio. Tinham sido condiscípulos e eram amigos desde há muitos anos. Esta aproximação levou o bispo a confessar ao cientista que “uma coisa o andava confrangendo: era o caso de Fátima, em que estavam envolvidos alguns párocos, um dos quais excessivamente falador.” E continuou o bispo: “compreendes a minha preocupação e receio de que tudo redunde num fracasso, ou, melhor, num desaire para a Igreja de que sou representante […]. O professor procurou sossegar o espírito inquieto do bispo. «Diz-me: isso está limitado à acção do clero local? O povo não colabora?». O bispo esclareceu que a acorrência ao santuário era já muito grande e que aumentava dia a dia. E o cientista, que é também hábil psicólogo: «Uma vez que o povo já tomou conta do caso, sossega, porque só ele poderá desfazer o que está feito. E sabes bem que o não fará na tua diocese, uma das mais devotas da nação. Pelo que me dizes o povo já proclamou a aparição, já lhe ergueu santuário e corre em chusma para ele” […]. A seguir, Egas Moniz sossegou ainda mais o espírito amedrontado do bispo, dizendo quase que uma profecia: “Dentro de pouco tempo terás de sancionar a voz do povo, e tu próprio acabarás por presidir e orientar os negócios de Fátima”.

Estes testemunhos levam-me a aceitar a razão das críticas de Tomás da Fonseca aos acontecimentos de Fátima em 1917 que sublinham a invenção das “aparições”. São depoimentos com valor jornalístico e escrevem História. Por isso terão de, forçosamente, ser considerados num estudo que se pretenda honesto, sobre as “visões dos pastorinhos” ou “embuste de Fátima”.

(Fim)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV