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Etiqueta: Ateísmo

19 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

O Dom do Dom Aguiar, Que Afinal é Política

Não foi uma grande entrevista, mas foi uma entrevista grande. Digo isto porque me chateou quase do início ao fim, a Grande Entrevista (Temporada 17, Episódio 7, 14 de fevereiro de 24) com Américo Aguiar. Ponderei se devia fazer aqui um comentário ou não. Em boa verdade, que é isto se não o dia a dia de uma ateia? Desculpem-me os meus consócios que preferem uma postura mais neutra quanto à influência da Igreja Católica em Portugal e no mundo, mas eu calada fico com azia e diz que isto dá úlceras.

Vítor Gonçalves caracteriza-o como o “rosto da JMJ” e como tendo tido uma “ascensão fulgurante na Igreja portuguesa”. Tudo coisas que eu não escolheria para elogiar alguém, mas que não deixam de ser verdade. Depois refere que Américo Aguiar decidiu encontrar-se com os cabeças de lista de todos os partidos que concorrem no círculo eleitoral de Setúbal. Eh lá, foi aqui que comecei a pensar, “dá-lhe o Papa um dedinho, já o homem quer um braço e uma perna”. Mais me espanta que os ditos partidos lhe tenham feito a vontade, mas sabemos que a Igreja continua a movimentar esse tipo de influência.

A ideia que Américo Aguiar passa de que a Igreja não se pode afastar da política não é nova. Aliás, o seu maior problema é ser antiga. Desde que conseguiu deitar a mão, ou a cruz, a meia dúzia de pessoas influentes, que a Igreja se tem dedicado historicamente a influenciar a política das nações. No passado, fê-lo com tanto sucesso que um rei não era rei na Europa, sem beijar o anel ao Papa em Constantinopla. Mais recentemente, a Igreja Católica abraçou o Estado Novo em Portugal até se tornar evidente que estava do lado da História que teria de perder. No pós-25 de Abril, lá se agarrou ao poder que pôde manter, com a segunda Concordata (2004) que lhe garantiu muitos dos privilégios que Salazar lhe havia concedido em 1940. Antes fosse uma ideia nova. Mas a Igreja tem esta tendência de estender tentáculos para todo o lado.

Que conhecimentos tem o Cardeal de política para ser convidado a fazer este comentário na RTP? Ora, sabe que a raiz da palavra “política” vem do grego antigo, πολιτεία (politeía), que se refere à participação na vida coletiva de uma sociedade. A partir daí a coisa deixa de correr tão bem. Se calhar é porque já há muito que abandonou a política e já só lhe ficaram os chavões. Portanto, para Dom Aguiar, justifica-se que a Igreja meta o proverbial nariz na política porque tem de estar envolvida “naquilo que são as alegrias e as tristezas, os sorrisos e as lágrimas” do povo a que se dirige. E até é tão inclusivo que refere outras religiões, não que tenham muita importância no seu discurso. E até respeita muito os não-crentes. Só não o suficiente para não se meter onde não é chamado.

Ora, as decisões políticas referem-se (não só, mas também, e principalmente) à alocação de recursos. Vulgo, onde se gasta o dinheiro público obtido por meio de impostos. Portanto, o Cardeal quer ter uma palavra a dizer naquilo para o qual não contribui, dado que impostos não é coisa que lhe assiste. Pensando bem, é a postura tradicional da Igreja. Uma instituição de homens a quererem ter uma palavra a dizer sobre o que a mulher pode ou não fazer com o seu próprio corpo, uma instituição de supostos celibatários a querer ter uma palavra a dizer sobre o que constitui ou não uma forma de amor válido, uma forma válida de constituir família, até uma forma válida de morrer. Um conjunto de homens cujo objetivo é viver o menos possível a querer cortar as asas a quem só quer ser livre.

A influência que Américo Aguiar quer vai da freguesia ao mundo. Já não me devia chocar, mas a esta altura ainda vou nos dois primeiros minutos desta entrevista de quase uma hora, e já o coração me quer saltar da boca. Ah esperem! A igreja não se pode meter em questões partidárias. E qual é a diferença? – pergunta Vítor Gonçalves. E eu queria ter estado lá, para dizer “nenhuma!”. Falei para a TV, como os adeptos de futebol mais irascíveis. Mas o Cardeal não explica a diferença. Deixai-me dizer eu contudo, oh gentes da minha terra: o padre não precisa de dizer aos crentes em quem votar. Basta defender ativamente a mesma postura que o seu partido de eleição para que o crente entenda em quem deve votar. E essa manipulação sempre foi feita de uma maneira ou de outra. Não tivesse o Cardeal começado a sua enumeração de partidos candidatos ao círculo eleitoral de Setúbal com… a Aliança Democrática.

Valeu-me concordar com o Bispo de Setúbal numa coisa, não se justifica a abstenção. Já dizer que é pecado, foi um momento de humor que apreciaria, se quando se falasse em pecados se falasse sempre com esse tom jocoso. Mas o alívio é momentâneo. É que dizer que a Igreja deve meter-se na política é fácil, difícil é quando se lhes pede para identificar um partido que esteja a ir contra a ideologia da Igreja Católica. E parece que para Américo Aguiar, a pergunta é tão difícil que o discurso ora anda em círculos ora anda a fugir. Para o cidadão consciente, a pergunta não é assim tão complicada. Pensando uns segundos, conseguimos todos identificar os partidos que defendem o que a Igreja diz defender, e os que defendem o que a Igreja não admite defender.

Ei-de rir sempre de um bispo de critica quem vota num dado partido sem nunca ler a sua proposta. É o melhor tipo de humor, aquele que se faz sem querer. A Igreja é a instituição que mais aceita e promove que os seus crentes não leiam o programa. É para isso que o sacerdote serve, para dizer o que diz na Bíblia. Ora agora, ler aquilo tudo, e com páginas tão fininhas. Nem o padre na missa lê tudo, escolhe sempre a dedo o que convém mostrar, vai agora o crente ler o programa todo. Ainda mudava de ideias.

Não discordo, contudo, que os programas são para ler, os objetivos de um partido são para conhecer e a posição da Igreja ou bem que é clara ou bem que se deve calar. E de preferência deve calar. Num país laico, tem de calar. O Bispo de Setúbal lá foi forçado a criticar os partidos que são a favor do aborto ou da eutanásia. Que choque! No entanto, antes tinha falado da dignidade humana, pelo que fiquei sem saber o que quer, afinal, o sacerdote.

Ao menos posso encontrar outro ponto de concordância com o Cardeal, que é o de aceitar e receber bem os imigrantes que cá chegam, tal como gostaríamos que os nossos tivessem sido aceites lá fora. Concordo, sim. Também concordo que há ameaças à democracia em Portugal, na Europa e no Mundo. Só não concordo que fuja à questão da ascensão da extrema-direita em Portugal preferindo referir-se às políticas europeias e criticar Putin, Trump e a guerra na Ucrânia apenas para mais uma vez, evitar falar do elefante na sala. Só não evita sublinhar que tem amigos em todos os partidos. Acredito que tem.

Chega-se ao fim e Américo Aguiar fala como cidadão e não como sacerdote. Pouco fala sobre a Igreja naquilo que são as decisões políticas e sociais do país. Mas pega nisso como mote para defender que a Igreja se deve meter na política. Não deve não. O cidadão, independentemente de ser ou não crente seja no que for, deve votar. Não é preciso vir um Cardeal dizer isso, mas dá jeito.

Estava eu já a entrar numa certa simpatia pelo Cardeal e eis que surge o tema das JMJ. Afinal, esperem lá, já não quero beber um copo com o Dom Aguiar. Começa por agradecer a Portugal e aos Portugueses. É bom que agradeça, porque ao que tudo indica, a coisa não ficou nada barata e teve momentos verdadeiramente vergonhosos. Diz o Cardeal que as JMJ deram lucro. Ultrapassa os 20 milhões, diz orgulhosamente. Falou muito, mas não disse de onde tirou 20 milhões em lucros. A organização lucrou 20 milhões? Ah bom! Isso acredito. E quanto gastou o Estado para proporcionar as condições para que a organização das JMJ lucrasse 20 milhões?

Cito: “O senhor patriarca acha que a Fundação deve continuar, para concretizar agora a materialização do que se venha a fazer com o lucro”. Faz-me lembrar as frases que se dizem em reuniões com empresas de atividade corporativa que levam a cabo projetos empresariais. Ou seja, coiso. E daí não melhorou a sua competência em explicar exatamente para onde vão os 20 milhões que tantos mais milhões custaram aos bolsos dos contribuintes. A meu ver, as contas que antecedem esse lucro é que devem ser revistas. Ou seja, quanto pagou afinal o Estado, a fundo perdido, para que o evento se realizasse?

Outra questão que não vi abordada e que me parece uma falha indesculpável, é a questão dos outdoors que foram retirados da via pública, que chamavam a atenção para as mais de 4800 crianças cujo abuso no seio da Igreja Católica é conhecido. Aliás fica aqui, que é para o Dom Aguiar não se esquecer, já que fala da dignidade humana com tanto afinco:

Outdoor “+49800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal” censurado durante as JMJ.

Dos problemas sociais que aponta, abusos sexuais dentro da Igreja Católica não foi tema. Para mim, foi o único tema que valia a pena discutir na farsa das JMJ. Surpreendeu-me que o entrevistador tenha decidido tocar nesse tema. E que suavemente até tenha tentado que o Bispo se focasse na realidade ao invés do que ele deseja que a realidade fosse. Doeu-me ouvir que ele quisesse corrigir os números. Não foram 4800 casos, foram 500 e tal denúncias que permitiram essa extrapolação. E isso em 70 anos, nem foram 70 dias. Ah! Bom! Então muito melhor. Afinal nem é nada de assim tão grave.  E o Cardeal está muito contente porque a transparência e a tolerância zero começa a ser normal.

Sou só eu que acho que dizer isto é absurdo? Está contente? Eu não estou e duvido que alguma das vítimas esteja. Já os padres que foram denunciados e que continuaram com as suas vidinhas, devem partilhar dessa felicidade. Resta-me questionar onde está mesmo a tolerância zero, ou a transparência. E já agora, perguntar se numa instituição que insiste representar um deus omnisciente, omnipotente e bom, há espaço para que estas coisas sejam ditas sem uma gargalhada de desespero como som de fundo.

Por fim, aborda-se o tema do momento: abençoar os casais em situação irregular. Só a frase arrepia. Existem casais em situação irregular? E isso da bênção, é esmola? Casar não, mas olha, ide lá com a graça do senhor. Mas é piada? É a isto que se bate palmas? A meu ver não há que abençoar casais, nem há que os unir em sacramento. É uma não-questão para mim porque sou ateia. Mas permite-me ver a hipocrisia desta instituição.

Vem agora o Cardeal falar em opções. Abençoa as duas pessoas (homossexuais) e não as suas opções. Alguém de Setúbal que esclareça o Bispo da sua terra que ninguém escolhe ser quem é. Nasce-se heterossexual, como se nasce homossexual ou qualquer outra variação naquilo que sabemos ser um espectro. Portanto, dado que esta pessoa acredita que deus nos fez à sua imagem e dado que ser homossexual não é escolha, foi deus que criou a pessoa com aquela orientação sexual. Alto, que isso já é muito inclusivo para a Igreja. Todos, todos, todos, mas vontade não é à vontadinha. Este discurso cheira à velha máxima cristã “odeia o pecado não o pecador”. Bafiento.

Em momento algum o Bispo de Setúbal diz que se presta a abençoar a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Apenas a abençoá-las individualmente. No entanto, quer que todos se sintam acolhidos. Não são acolhidos porque a Igreja Católica é o que toda a organização religiosa é: opressiva, restritora das liberdades pessoais e com um complexo de superioridade moral que não aplica quando encontra atrocidades no seu seio.

A minha conclusão é simples. O mote desta entrevista era que a Igreja se deve meter na política. Afinal foi um político que se foi meter na Igreja. Em todas as instâncias em que o Cardeal fala, refere sempre a religião em último lugar. Por pouco que não se esquecia de agradecer a deus o “sucesso” das JMJ. O Cardeal é certamente um homem da religião, só não me parece muito religioso, e por esse motivo quem sabe se não nos sentaríamos à mesa, como ele diz, a beber um copo, amigos como d’antes.

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

30 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O DEUS ANÓNIMO

De Jesus a Shakespeare

O seguinte texto é da autoria de Daniel Ramalho

Mesmo sem saber quem está neste momento a ler estas linhas, arrisco afirmar que é nelas que lerá pela primeira vez o nome de Constantin François de Chassebœuf, conde de Volney. Digo-o com quase absoluta certeza porque o seu anonimato chega ao ponto de o dia do seu aniversário, 3 de Fevereiro, ser conhecido como “Nobody’s Day” – o dia em que por algum inexplicável desígnio do destino alegadamente nenhuma personagem histórica de relevo nasceu.

Que é uma injustiça relegar de Volney à vala comum da História é facilmente justificável. Os seus contributos como arabista, filósofo e político (nomeadamente pelo seu envolvimento na Revolução Francesa) são demasiados em número e interesse para que procure aqui resumi-los. Direi apenas que não será tempo perdido pesquisá-los. Contudo, refiro-o aqui em particular à sua magistral obra As Ruínas, ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios (1817), por ter sido a primeira a popularizar muitos dos argumentos mais comuns no arsenal argumentativo daqueles que defendem a teoria do “Mito de Cristo.”  Apesar de então ter inaugurado a dúvida sobre a existência do Jesus histórico, de Volney foi sem dúvida o mais importante dos seus divulgadores entre a intelligentsia iluminista, em particular após o referido livro ter sido traduzido para Inglês por Thomas Jefferson, seu amigo próximo. Poucos sabem que de Volney existiu, mas o problema histórico e teológico que nos deixou em legado é hoje, em grande medida graças a si, lugar-comum.

A teoria do mito de Cristo foi amplamente discutida nos últimos dois séculos e não é minha intenção abordá-la aqui, mesmo porque a posição de que o Jesus histórico existiu é quase consensual entre historiadores. Mais do que a questão em si, interessa-me como é possível que tenha surgido – ou por outras palavras, como pode ser que não saibamos com absoluta certeza se a personagem mais importante da História é ou não fictícia. A forma mais simples de um cristão responder a estas objecções consiste em apontar para o facto de se tratar de alguém que viveu há 2000 anos, numa sociedade predominantemente analfabeta e antes de haver imprensa, e que este abismo cronológico faz com que seja fácil para os cépticos questionar se estas figuras tão distantes no tempo chegaram a nascer (como acontece, por exemplo, com o ainda mais remoto Sócrates).

Será então que a distância temporal justifica duvidar da existência de Jesus, e que se estivéssemos apenas mais perto do tempo e espaço em que ele viveu teríamos dados suficientes (orais e escritos) para saber sem sombra de dúvidas que ele de facto existiu e que fez milagres? Será por miopia histórica que não vemos o que é evidente para todo o cristão?

Não, e sabemos que assim é pelo exemplo de uma outra figura central da história ocidental historicamente muito mais próxima de nós. Refiro-me ao caso de William Shakespeare.

O culto de Shakespeare atingiu ao longo dos séculos proporções tão desmesuradas que George Bernard Shaw sentiu necessidade de criar uma designação para quem padece dessa condição clínica: “bardólatra” – da qual me confesso paciente crónico. Quase dois milénios passaram até que alguém pusesse em causa a existência do Jesus histórico. Com Shakespeare, apesar de ter vivido na Inglaterra isabelina que era obcecada com registos de toda a espécie, foi preciso apenas um século. O espraiar da bardolatria pela Europa foi acompanhado por uma crescente desconfiança sobre quem seria realmente o mítico “Bardo.” Ninguém questiona que alguém chamado Shakespeare existiu entre 1654 e 1616.  Poucas certezas há sobre o homem – alguns até questionam que tenha sido um homem –, mas entre elas estão a de que era actor, filho de um luveiro (provavelmente analfabeto), que não deixou indicação de ter viajado para lá de Londres, que saiu da escola aos 15 anos, e que nunca frequentou uma universidade. Destas certezas uma outra foi extraída por vários ao longo da História: a de que este retrato simplesmente não pode ser o do autor do corpo literário 100.000 palavras mais longo que a Bíblia do King James, e que Harold Bloom designou de “bíblia secular.” Além disso, de todas essas incontáveis palavras que escreveu – muitas das quais cunhadas por si, entre as quais a palavra “incontável” – apenas seis nos chegaram escritas à mão: todas elas assinaturas, de autenticidade duvidosa, e todas escritas de forma diferente (nenhuma delas “Shakespeare” como escrevemos hoje).

Os que não acreditam que o Shakespeare de Stratford-upon-Avon foi o autor da obra que lhe é atribuída consideram que está provado de forma decisiva que o autor foi outro, muito provavelmente Edward de Vre, Conde de Oxford – de onde deriva a designação de “Oxfordianos” atribuída a quem defende esta hipótese. Foram várias as celebridades ao longo do tempo que se incluíram no número dos Oxfordianos, como Sigmund Freud, Henry James, Walt Whitman, William James, Ralph Waldo Emerson, Mark Twain, Orson Wells, Charlie Chaplin, e muitos outros. Diana Price, uma das mais famosas Oxfordianas da actualidade, afirma que “se escrever peças fosse crime, não haveria provas suficientes para condenar Shakespeare em tribunal.” Alexander Waugh, outro anti-Stratfordiano contemporâneo, está convicto de que uma enorme conspiração foi engendrada para proteger a identidade de Edward de Vere, verdadeiro autor da obra “Shakespereana,” com pistas espalhadas aqui e ali que uma vez identificadas provam sem margem para dúvidas que o Shakespeare histórico não foi mais do que um actor e astuto homem de negócios que provavelmente nunca escreveu uma linha na vida por nunca ter aprendido sequer a escrever. Há aqui um interessante paralelismo com o conde de Volney, que propôs a hipótese de ter havido uma obscura figura histórica correspondente a Jesus transubstanciada em Cristo pela religião até pouco ou nada restar da pessoa que realmente existiu.

Mas o paralelo vai mais longe do que isso. Tal como especialistas em crítica textual procuram extrair dados sobre o Jesus histórico dos Evangelhos, também os bardólatras fazem o mesmo com a obra de Shakespeare. A cena do festival da tosquia na peça As You Like It leva os Stratfordianos a crer que o Shakespeare de origens humildes e poucos estudos foi de facto o autor, pois um aristocrata nunca saberia tanto sobre um festival de camponeses. Um outro bardólatra foi a todos os locais de Itália referidos por Shakespeare nas suas peças e concluiu que as descrições feitas dos mesmos só poderiam ter sido escritas por quem tenha lá estado, o que reforça a posição Oxfordiana porque Shakespeare, que se saiba, nunca saiu das fronteiras britânicas.

E há ainda dilemas textuais, como acontece com a Bíblia. Por exemplo, no final da peça King Lear encontram-se em diálogo Edgar e Albany, dois candidatos à coroa, nenhum dos quais a quer. Tradicionalmente, no teatro isabelino e jacobino, as palavras que concluem a peça são proferidas por quem fica no poder. Nos últimos versos do King Lear, um destes dois acaba por ter de aceitar ser rei, mas numa edição (1623) quem o faz é Edgar, e noutra (1632) é Albany. Ora, Albany é o legítimo sucessor, pelo que a mensagem de Shakespeare é diferente consoante quem ascende ao poder no final. E apesar dos rios de tinta que correram sobre a questão, a verdade é que não se sabe. Stephen Greenblatt, um famoso estudioso de Shakespeare da actualidade, diz sobre esta questão que provavelmente nem Shakespeare sabia qual das personagens devia ascender ao trono no final, e que a indeterminação em que nos vemos hoje a esse respeito é tão nossa quanto foi dele.

Ou seja, tanto no caso de Jesus quanto no de Shakespeare, temos uma personalidade histórica que sabemos ter existido mas que é identificada pela tradição com uma personagem rodeada de uma aura de divindade de tal modo ofuscante que não conseguimos perceber se são ou não a mesma pessoa. E este é o ponto para o qual pretendo chamar a atenção. Estando nós na posse quando um milhão de palavras na “voz” de um autor, atribuídas a uma personalidade que sabemos sem sombra de dúvida ter existido, separada de nós por uns meros 400 anos, ainda assim não nos livramos de uma “dúvida razoável” relativamente à sua identidade igual à da do Jesus Cristo dos Evangelhos. Em ambos os casos a dúvida é suscitada pelo carácter “sobrenatural” dos textos que nos chegaram dessas figuras, com a diferença de que no caso de Shakespeare o texto na origem da discussão não lhe atribui milagres mas é em si o milagre que lhe é atribuído.

A hipótese Oxfordiana mais popular aponta, como referido, para uma conspiração que alegadamente visou escudar a real identidade do autor dos textos “Shakespereanos.” Autores como Bart Ehrman defendem algo semelhante em relação a Jesus, i.e. que foi um profeta apocalíptico falhado, cuja mensagem os discípulos desiludidos alteraram para justificar o facto inesperado e traumático de verem crucificado aquele que esperavam vir a ser seu rei terreno, tornando o seu reino sobrenatural. É verdade que houve uma “conspiração” nos casos de Shakespeare e de Jesus? Não sabemos. Apenas sabemos que qualquer medida de tempo tem solo fértil que chegue para a teoria da conspiração germinar.

Então, se a dúvida relativa à identidade de uma figura considerada sobre-humana pode surgir com a mesma pertinência em relação a alguém nascido há 2000 anos e há 400 anos, poderia surgir relativamente a alguém que morreu ontem? Estamos convictos de que os registos audiovisuais que conseguimos captar hoje protegem a identidade histórica dos nossos génios, mas se Shakespeare tivesse morrido ontem, após receber o Nobel da Literatura e três ou quatro Óscares, e com infindáveis entrevistas gravadas ao vivo em programas televisivos e podcasts, seria impensável que a questão da autoria das suas peças se tornasse tópico de debate no ano 2424? Seria impossível que uma franja de intelectuais desconfiados atribuísse a sua fama literária à inteligência artificial, ou a uma conspiração de autores, ou a outra coisa qualquer, de forma plausível?

Caso a resposta seja “não,” o mesmo pensamento é aplicável com igual propriedade a Jesus. Estaríamos em melhor posição para julgar a veracidade dos eventos relatados nos Evangelhos se Jesus tivesse morrido há 400 anos? Ou em Inglaterra no século XVII? Ou ontem? Talvez. Afinal, temos câmaras e microfones. Mas poderia essa certeza manter-se incólume historicamente? O caso de Shakespeare indica que não. Mais século menos século, a dúvida razoável surgirá nas franjas académicas e a posição céptica deixaria de ser absurda. O tempo acumula-se nas figuras que endeusamos como um sarcófago, até que finalmente dos lábios dourados alguém ouve as famosas palavras de Iago: “I am not what I am.”

Se de facto assim for, se o milagre for sempre mais absurdo do que a conspiração independentemente do registo histórico, se a existência do Cristo bíblico não fosse mais certa hoje tivesse ele sido contemporâneo de William Shakespeare, é tarefa de todo o céptico responder à questão a que assim fica exposto perante o Cristianismo: “Ateu, que Evangelho, ainda que em formato audiovisual, te converteria?”

21 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo!

Neste texto, Daniel Ramalho explica as motivações que levaram a que diminuísse o tempo dedicado a escrever sobre ateísmo.

Escrevi sobre ateísmo com frequência e de forma disseminada durante mais de metade da minha vida, de tal modo que muitos dos meus conhecidos (em particular nas redes sociais) pouco mais conhecem de mim para além dessa faceta. Há relativamente pouco tempo, e quase de repente, parei, o que levou a que alguns desses conhecidos me perguntassem porquê. A esses, aqui deixo a minha resposta.

Não foi por ter passado a achar que é tempo perdido argumentar com fanáticos que me calei, nem por ter deixado de considerar o tema importante ou interessante, nem por me ter convertido. Apenas cheguei à conclusão de que o ateísmo está finalmente completo. Quero com isto dizer que chegámos a um ponto em que não já existe argumento teológico algum que não tenha um contra-argumento demolidor. Por não ser um sistema de crenças independente, o ateísmo precisa da vitalidade da religião para sobreviver, e há já muito tempo que não surge um argumento teológico com pretensão de originalidade que dê aos ateus alguma coisa que fazer. Houve tentativas como a do Plantinga, mas tão exangues e fáceis de rebater que podem ser consideradas nados-mortos. A religião chegou ao limite do que pode dizer em sua defesa, e já não pode haver dúvida razoável que faça pender o fiel da razão a seu favor.

O ateísmo chegou à sua última página. Nada do que possa ser dito daqui em diante em resposta aos velhos argumentos teológicos mesmo dos mais sofisticados católicos (que sempre gostaram de se considerar mais espertos do que a concorrência) poderá ser mais do que a repetição de um argumento também ele já vetusto ao qual nada de importante precisa de ser acrescentado para que seja fatal. Tanto do lado da física, cosmologia, biologia, geologia, etc., quanto da história, antropologia, filosofia moral e crítica textual, todos os “bolsos de ignorância” onde se poderia adivinhar a presença de um deus foram ou iluminados para se revelarem vazios, ou se verificou que enfiar lá deus apenas multiplicaria os problemas. Chegámos a um ponto em que os nossos melhores teólogos (e note-se que a completude do ateísmo implica o fim da teologia) não têm como discordar de grande parte da argumentação avassaladora com que agora se deparam. Resta-lhes refugiarem-se nos únicos dois redutos em que tal ainda é possível: ou na fé esvaziada de razão que se assume como tal, ou na deprimente afirmação de que o valor cultural e utilidade social da religião a justificariam ainda que fosse falsa – e é incrível o número de apologetas cristãos derrotados que segue esta última linha.

Por tudo isto não tenho muito mais a dizer acerca de ateísmo excepto que está lá para quem o quiser visitar, em exposição num mausoléu. Ser religioso neste momento é, como sempre será doravante, um imperativo psicológico dos doutrinados desde tenra idade, daqueles com demasiado investimento social/profissional na sua crença, seduzidos emocionalmente pela estética religiosa, ou que simplesmente não aguentam a ideia de que um dia deixarão de existir. Ironicamente, estes sempre existirão (de forma colectiva), mas é um facto que toda a argumentação de que tentem socorrer-se para defender a sua crença de forma discursiva já tem resposta suficiente escrita algures. Nada mais podem fazer do que desviar os olhos e acreditar porque sim.

O trabalho do ateu militante não terminou, claro. A religião continua e continuará a ter de ser empurrada diariamente e sem descanso para a esfera privada, a que pela sua natureza nunca se confinará de forma voluntária. No que diz respeito à questão da sua veracidade ou falsidade, o trabalho está feito. E por isso vou lendo, vendo e ouvindo sobre ateísmo como quem contempla uma estátua: em silêncio, deleitando-me com um prazer que é agora apenas estético.

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo.

15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.

2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.

20 de Setembro, 2023 Onofre Varela

Sobre a morte de deus

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando se ouve vaticinar a “morte de Deus” aventada por Nietzsche, pensamos numa revolução que nasce na madrugada de um dia, e que ao raiar do Sol… Deus já não existe. Mas não é nada disso!…

A “morte de Deus” não é mais do que o abandono do conceito deifico por uma maioria que faz o caminho da sua descrença naturalmente e sem drama.

Na verdade, no nosso tempo, Deus (enquanto ideia de um ser criador omnipotente, omnipresente e omnisciente) já está a morrer… e tanto mais morrerá quanto mais alargada for a consciência das pessoas sobre a real dimensão imaginária desse milenar conceito de Deus que formatou sociedades, mas que não existe veramente fora do pensamento de quem crê.

Enquanto essa consciência não se generalizar (se, quiçá, algum dia se generalizar… e eu acredito que sim pelo facto de o Homem ser a última experiência da Natureza; somos ainda muito primitivos; cheiramos a pintado de fresco… e lá chegaremos quando atingirmos a “idade adulta”) a maioria de nós garante que a divindade é real, mercê da educação familiar e social que recebeu desde o berço. Em consequência, deposita mais confiança nos sacerdotes, bispos e pastores de igrejas e seitas malvadas… que são tão falsos quão falsos são os pregões dos políticos quando nos prometem a felicidade se receberem votos suficientes para atingirem o poder.

Na verdade a ideia de Deus emparceira com a Política no que respeita ao alimentar de desejos e paixões, e ao criar guetos e inimizades (mas também amizades… se francas ou falsas… isso já é outra conversa), e no extremo leva a guerras que a História regista e a actualidade assiste. Guerras declaradas com a invasão de países independentes, ou acções terroristas “em nome de Deus”, tão graves e mortíferas como muitas das acções bélicas decretadas por Parlamentos, generais ambiciosos e presidentes que sonham ser czares.

E também serve para manter a classe clerical e os gestores de seitas – que se pretendem defensores da moral instalada – em níveis económicos e sociais elevados… mas sem respostas realistas para o engrandecimento da sociedade onde se instalam… em vez disso prometem benefícios celestes baseando a sua moral em mitologias que são, afinal, a ferramenta do seu trabalho, de onde retiram o sustento… embora também abracem a realidade material recebendo subsídios governamentais para explorarem ramos sociais como o ensino, a saúde, lares da terceira idade e infantários. No extremo, organizações desta índole (a maior das quais, entre nós, é a Igreja Católica) transformaram a caridade numa indústria social.

A indústria da caridade é indigna numa sociedade verdadeiramente democrática e de cariz socialista que se interesse pelo bem-estar do seu Povo. Enquanto houver um sem-abrigo e uma família sem pão, a Democracia (e toda a prática política) é uma fraude. A indústria da caridade ajuda a alimentar essa fraude ao substituir a solução definitiva, que pertence aos governos, por remendos sazonais e “sopa dos pobres”, que nada resolvem em definitivo e só adiam a morte anunciada a quem tem fome, lhe falta abrigo e meios de subsistência dignos.

Neste contexto político e social (que, infelizmente, cada vez mais, faz o nosso dia-a-dia) a crença em Deus é positiva porque acaba por ser uma tábua de salvação das consciências religiosas, garantindo algum conforto espiritual.

Quero acreditar que quando atingirmos a “maioridade” enquanto “Homo sapiens-sapiens”, a perfeição comportamental estará mais perto… e a razão será de Nietzsche no vaticínio da definitiva “morte de Deus”.

Mas parece-me que isto também é fé… embora laica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Por Friedrich Hermann Hartmann – Domínio público
18 de Setembro, 2023 Onofre Varela

“No princípio era o verbo”

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

O termo Verbo é usado em Religião para designar o autor do princípio dos princípios, e na sua essência é o próprio Deus. Quem quer saber mais do que isto não o consegue nos registos religiosos; aí, o que encontra é pura fé: “Antes de qualquer coisa existir, Deus já existia. Foi ele o criador de tudo a partir da sua palavra. Deus falou e tudo se formou. Do nada, nada surge, mas da palavra de Deus tudo foi formado. O Verbo é a palavra, e a palavra é Deus. A palavra de Deus transformou-se em homem e esse homem é Jesus”.

Para um ateu, “saber isto”… é saber nada! (e para o religioso, também… embora ele imagine que não!). Quem mergulha na fé como numa piscina de sapiência, não sente necessidade de saber… a fé basta-lhe. Não tenho nada contra as vontades religiosas e só espero que quem assim sente seja feliz no entendimento dos seus conceitos… e não cometa actos contrários à ética universal, como fazem os religiosos fundamentalistas islâmicos e outros extremistas no campo da política.

Mas quem quiser saber realmente, tem de escolher outros caminhos que não os da fé. Pela fé nada se sabe. O “saber religioso” usa como garantia o selo-da-fé sem explicar os processos usados na comunicação e na criação. Em nome da fé valoriza-se o mito e relega-se a História (e toda a Ciência) para planos de menor, ou nula, importância.

Dir-me-ão que a fé pertence a outra dimensão que não à da Razão nem à da Ciência. Claro que sim. Sei disso. Os credos religiosos são uma questão ideológica, e os livros de fé derramam ideologia e não História nem Ciência. E também sei que a propaganda feita à fé para conquistar crentes, atropela e nega princípios científicos, mesmo os mais básicos. Logo, é desonesta na sua essência e à partida, por não considerar o avanço do conhecimento acontecido depois dos registos de fé que datam da Idade do Ferro e que ainda são usados como base de uma doutrina comportamental alegadamente ditada por um hipotético deus.

A fé inibe a vontade de interrogar e de investigar perante “explicações” ideológicas divorciadas de todas as explicações científicas, e algumas delas são, até, totalmente carentes de nexo. No campo racional não há espaço para discursos de pura fé debitados como realidade.

A Ciência, como meio de procura de explicações, é imbatível por qualquer ideologia política ou teológica, e quem rege a sua vida por dogmas religiosos, não tem uma conduta moral e cívica com melhor qualidade do que o ateu que se guia por uma sã decência laica. Aliás, no campo da decência, os conceitos comportamentais dos ateus até poderão ter lugar no pódio mais alto.

Os crentes, mais do que crentes, são crédulos… tomam por verdade as “escrituras sagradas” sem se preocuparem em saber a verdadeira origem e intenção primeira dos textos que lhes merecem crença em vez de compreensão. Há grupos de crentes (principalmente nos EUA, onde tudo é em grande… tanto a sapiência como a ignorância) apostados na “vitória da Bíblia sobre o conhecimento científico”, afirmando o Génesis contra a Evolução. A Ciência estuda e investiga (e também se engana), e só afirma com provas aferidas e experimentadas. Aqueles que a atacam fazem-no com base em comportamentos culturais que são outra coisa… nada têm a ver com conhecimento científico. Ao contrário da Religião, que “sabe que tudo sabe”, a Ciência apenas sabe que hoje sabe mais do que sabia ontem e espera saber, amanhã, mais do que sabe hoje… não sabendo se o saberá!

Ao contrário, a Religião afirma saber hoje o mesmo que garantia saber há cerca de três mil anos… e diz não haver nada mais para se saber e que a verdade lhe pertence… sendo que a Verdade é a “palavra de Deus” (grafada com maiúscula porque sagrada).

Perante conceitos religiosos há quem se coíba de pensar para além daquilo que diz o sacerdote ou o guru da seita, aceitando quaisquer palavras dúbias (ou explicitamente mentirosas) por verdade universal e absoluta, dispensando o seu cérebro do “penoso acto de pensar”!…

Parece ser esta a principal característica do crente típico… e quem dispensa o cérebro (não raciocinando para além dos conceitos religiosos) tem mais fé do que aquele que o usa, raciocina e quer saber.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de beate bachmann por Pixabay
11 de Setembro, 2023 Onofre Varela

Manuscritos do Mar Morto

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Os Manuscritos descobertos em 1947 em Qumrán, nas proximidades do Mar Morto, por um pastor que procurava uma ovelha tresmalhada, contém 900 textos bíblicos e são os mais antigos até hoje conhecidos. Foram alvo de várias disputas e situações dignas de um filme de espionagem, e sobre eles já foram escritos vários livros. O último deles tem como autor o teólogo bíblico Jaime Vázquez Allegue, e o título de “Los Manuscritos del Mar Muerto – La Fascinante Historia de su Descubrimiento y Disputa”, cujo conhecimento me chegou através de uma notícia publicada no jornal espanhol “El País” (16/05/2023).

Trata-se de um “ensaio literário” que se lê como um romance policial e que remete o leitor para o ano 70 da nossa era, quando as tropas do imperador romano Tito destruíram, pela segunda vez, o Templo de Jerusalém provocando a fuga de várias comunidades para o deserto.

Uma delas, denominada “Essénios”, era muito religiosa e cumpria com rigidez as leis de Moisés. Os Essénios em fuga estabeleceram-se em Qumrán, mas receavam que as tropas romanas não tardariam a encontrá-los. No sentido de preservarem os seus escritos religiosos – mais do que as suas próprias vidas  – (Livro de Isaías, Génesis, Pentateuco, Êxodo e Deuteronómio) meteram-nos em vasilhas e esconderam-nas em várias grutas daquela região que agora conhecemos por Cisjordânia. 

Para os Essénios cumpriram-se os receios da perseguição de que eram vítimas… e não escaparam ao massacre perpetrado pelas tropas romanas. Os manuscritos perderam-se por dois milénios, até à busca da ovelha tresmalhada, no Verão de 1947… cuja história é bastante conhecida.

A ideia de enriquecimento tomou conta da cabeça do achador. Os textos arqueológicos foram divididos em várias partes e vendidos a diversos coleccionadores de antiguidades. Só depois de se saber desta “tragédia comercial” é que entram em cena arqueólogos e epigrafistas apostados em reunir todos os escritos que o pastor vendeu a várias entidades.

Para os Judeus aqueles documentos eram a mais importante fonte literária da sua história, cultura e tradição. Para os Cristãos a importância daqueles textos prendia-se com o contexto social e religioso em que viveu Jesus. Os arqueólogos não tinham dúvida de que estavam perante a maior descoberta do século. Os Judeus conseguiram a sua independência em 1948 (no ano seguinte à descoberta dos manuscritos) e viam naquele achado a oportunidade de demonstrarem que os judeus habitavam aquela parte da Palestina há milhares de anos.

Os manuscritos, redigidos em Aramaico e Hebreu Antigo, converteram-se num achado de valor incalculável. Se o pastor achador vendeu os primeiros documentos por cerca de 40 dólares (no valor actual), os últimos valeram mais de um milhão de dólares! O achado foi dividido em cerca de seis centenas de peças vendidas a vários coleccionadores espalhados pelo mundo. Foi muito difícil reuni-los para poderem ser adquiridos, não por comerciantes, mas por estudiosos.

Em 1954 o jornal americano “Washington Post” anunciou a venda de uma grande parte dos Manuscritos do Mar Morto, e o estado de Israel organizou uma comissão com o objectivo de os comprar a qualquer preço, já que aquela colecção arqueológica constituía o melhor testemunho da sua origem. Israel demonstraria, assim, a todo o mundo, que aquela terra era o berço dos judeus, a terra onde chegou Abraão e que foi prometida por Deus a Moisés. Um aproveitamento dos registos de fé na tentativa de se escrever História.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV