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16 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

Texto escrito em 2013 contra JP2.

A indústria da santidade e a inflação de beatos por quem não se arrepende

Para vergonha da Igreja católica, descontados os crimes de épocas recuadas, que podem sempre ser atribuídos aos costumes bárbaros da época, mas comprometem a inspiração divina de que se reclama, bastava a cumplicidade e o silêncio perante um dos maiores genocidas da Humanidade – Francisco Franco –, para exigir o pedido de perdão sincero de quem herdou o ferrete da ignomínia.

Todos sabemos que a violência atingiu na Guerra Civil espanhola limites inauditos de crueldade dos dois lados da barricada. Não houve bons e maus, apenas maus. Não podemos esquecer a violência cruel do anticlericalismo dos anarquistas e liberais e, em menor medida, dos marxistas, cujo ódio à Igreja, implicada com a pior direita, rivalizou com o empenhamento do clero nos crimes mais perversos.

Há, no entanto, duas diferenças capitais entre os que se bateram de um e outro lado da barricada. Do lado da República, o facto de ter resultado de eleições livres sufragadas pelo povo, e, do lado dos sediciosos, a intenção derrubar o Governo legal e instalar a ditadura. A segunda diferença, assaz sinistra, resulta do facto de, vencida a guerra, insistirem nas execuções sumárias, perseguições cruéis, assassinatos programados e nas valas comuns, cujos vestígios querem apagar, para onde atiraram as vítimas, fuziladas por divertimento sádico e violência sectária.

As crianças roubadas a mulheres, que assassinavam após o parto, foram distribuídas por casais inférteis de sequazes do fascismo espanhol. Não houve ignomínia, crueldade ou sadismo que os franquistas não cometessem, depois da guerra onde Hitler experimentou o armamento com os aviões da Legião Condor, Mussolini colaborou com submarinos e avões, a Igreja católica concedeu o estatuto de Cruzada aos revoltosos e Salazar apoiou a retaguarda, permitindo o recrutamento dos Viriatos, o abastecimento aos franquistas e impedindo o refúgio das tropas leais ao Governo.

Franco teve o apoio entusiasta do Opus Dei, que nunca lhe faltou com bênçãos, missas e ministros para o Governo. Balaguer, além de ter colaborado na guerra, ainda o felicitava entusiasticamente, quase duas décadas depois, em carta de 25 de maio de 1958, carta que a filha do ditador conservou extasiada com a veneração do futuro santo ao déspota.

Depois da dolorosa memória que dilacera Espanha, depois de mais de 400 mil mortos e centenas de milhares de exilados, impede-se a exumação das vítimas do franquismo e exonera-se um juiz corajoso, Baltasar Garzón, que quis identificá-las e reparar a sua humilhação e esquecimento, exumando as valas comuns. Para trás fica o horror galego onde o franquismo instaurou, depois da guerra, o método dos “passeios” –, ir às casas das pessoas buscá-las para as “passear”, isto é, fuzilá-las à noite e deixá-las nas valetas.

Através dos sinistros “passeios”, dos conselhos de guerra contra civis, dos fuzilamentos maciços de prisioneiros e de confrontos armados com a guerrilha, morreram, só na Galiza, 197.000 galegos (fonte “La Guerra Civil en Galicia” edic. La Voz) durante o regime franquista, continuando a grande maioria em valas comuns. Nesse período, cerca de 200 mil galegos exilaram-se noutros países, sorte que não tiveram os que escolheram Portugal e foram entregues para fuzilamento pelas polícia de Salazar.

João Paulo II beatificou 233 vítimas religiosas da repressão republicana, ignorando o sofrimento coletivo dos espanhóis e Bento XVI reincidiria com nova beatificação de outras 498 vítimas, a maior beatificação da história da Igreja Católica.

A decisão destes dois papas, profundamente reacionários e comprometidos com o Opus Dei não surpreendeu, apenas indignou os familiares das vítimas republicanas e todos os que ansiavam pelo esquecimento do ódio que dilacerou Espanha.

Com mais de duas mil valas comuns por abrir, surpreende que o Papa atual, de quem se esperava que não deitasse mais ácido nas feridas por sarar, cerca de cinco centenas de beatos serão elevados ao altar do franquismo numa manifestação de demência episcopal da Espanha que não perdoa e não se deixa julgar.

Este Papa, depois da lixivia gasta a limpar as nódoas do Vaticano, maculou as vestes e deixou recordar as boas relações que manteve com Videla.

15 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

Religiões e democracia

Todas as religiões se consideram as únicas verdadeiras, tal como o seu deus. Cada uma considera falsas todas as outras e o deus de cada uma delas e, provavelmente, todas têm razão. Os ateus só consideram falsa mais uma religião e um deus mais. Em certa medida todos somos ateus.

E somo-lo, não apenas na aceção grega, em que um ateu era o que acreditava nos deuses de uma cidade diferente, mas também na aceção atual, na descrença num ente superior imaginário, e, ainda, em relação a Zeus, a Shiva, ao Boi Ápis e à multidão que aguarda, nas páginas da mitologia, os deuses atuais.

No soneto «Divina Comédia», de Antero de Quental, os homens perguntam, com voz triste, «deuses, porque é que nos criastes»? E os deuses respondem, com voz ainda mais triste, «homens, porque é que nos criastes»?

A crença, em si, não é apenas legítima, é um direito que cabe ao Estado laico assegurar. O que assusta é o proselitismo dos que não lhes basta a sua crença e a procuram impor a outros, a violência que usam para agradar ao deus que lhes ensinaram desde a infância ou àquele que os seduziu numa qualquer fase da vida.

Infiéis são os fiéis da concorrência e os descrentes de qualquer fé, e que devem gozar de igual proteção, quer pertençam a uma seita ou religião poderosa. A seita é a religião de minorias e a religião é a seita globalizante. Todas têm direitos e deveres e não se aceita que sejam exoneradas do respeito pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O pluralismo é uma exigência democrática a que nenhum deus devia poder esquivar-se. Há para com os crimes praticados em nome das religiões uma condescendência que não existe para outras associações ou ideologias profanas. Porquê?

O nazismo é reprimido mas o totalitarismo religioso é tolerado. A democracia não deve consentir quem a combata, não pode conformar-se com os vírus que a ameaçam. Não se compreende que uma religião que não aceita as outras nos países onde é dominante e escraviza os que aí vivem, possa gozar de igualdade de direitos nos países que ameaça.

Com que legitimidade se permitem mesquitas aos crentes de uma religião que não aceita igrejas, pagodes, sinagogas ou templos às outras religiões? A Europa, onde se recrutam soldados de um deus cruel e vingativo, continuará a aceitar a divulgação de manuais que apelam à guerra santa e a deixar circular os pregadores que destilam ódio nos sermões e aliciam terroristas para a guerra santa?

O pluralismo, conquistado com a sangrenta Guerra dos Trinta Anos, em Vestefália, não pode ser posto em causa por ideologias que pretendem a exclusividade do mercado da fé e a eliminação da concorrência. Basta de cobardia para com as crenças. Urge resguardar os crentes dos fenómenos racistas detonados pelo medo à sua fé. E o medo existe.

A democracia é incompatível com o totalitarismo pio e belicista que assola o mundo.

14 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

A consagração do Mundo ao Sagrado Coração de Maria

Fez ontem 6 anos que o papa Francisco consagrou o mundo ao Sagrado Coração de Maria, numa cerimónia realizada na praça de S. Pedro, no Vaticano, perante a imagem de «Nossa» Senhora de Fátima, da Cova da Iria. Se a cerimónia fosse destinada apenas a crentes merecia respeito, dado que não viria daí grande mal ao mundo.

A um ateu não perturba semelhante consagração cujo temor não ultrapassa o da praga que a cigana roga a quem lhe nega a leitura da sina. É, aliás, alheio a que consagração seja ao coração, ao fígado, aos rins ou a outro qualquer órgão, mas há perplexidades que assaltam um livre-pensador, a saber:

1 – Com que legitimidade é que o Papa católico que, na melhor das hipóteses, dispõe de 20% da população que acredita no seu deus, se permite consagrar o mundo a um ídolo privativo da sua religião e que até outros cristãos desprezam?

2 – Tendo sido já realizado esse número por antecessores seus, nomeadamente durante a monarquia, era justo que, tal como nos outros bens de consumo, fosse divulgado o prazo de validade de uma consagração.

3 – Para estabelecer um módico de racionalidade nos gestos exotéricos, seria lícito dar a explicação plausível para a deslocação da imagem da Cova da Iria até ao Vaticano, para evitar o risco que um acidente aéreo fez correr ao ícone imprescindível. Sabendo-se que um papa é facilmente substituído seria mais sensato deslocar o Papa do que a imagem.

4 – Quanto à arrogância de «consagrar» os que não querem, não difere do proselitismo islâmico ansioso de fazer ajoelhar o mundo virado para Meca.

Apostila: A última decisão de um tribunal islâmico foi a proibição aos não muçulmanos de utilizarem a palavra «Alá». Os três monoteísmos são implacáveis ainda que o papa seja uma pessoa de bem, tal como um rabino ou um aiatola podem sê-lo. Já da religião de cada um deles, tenho dúvidas.

12 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

O ateísmo e a intolerância – Reflexão

As pessoas são boas ou más, independentemente das crenças ou descrenças. Há exemplos de genocidas entre crentes e ateus, mas penso que ninguém é capaz de fazer tanto mal, ou de ser tão generoso e abnegado, se não estiver imbuído de uma crença profunda.

Há crentes que acusam os ateus de intolerância. Se consideram intolerância a denúncia da hipocrisia, a defesa dos direitos humanos, o combate ao pensamento único e a defesa da liberdade, têm razão.

Se, pelo contrário, acham que somos capazes de defender o racismo, a xenofobia, a misoginia ou qualquer ditadura, assim como restrições ao direito de associação, onde cabem as religiões, não nos conhecem. Não conhecem pelo menos a Associação Ateísta Portuguesa (AAP).

Se um regime despótico privar os crentes, de qualquer religião, do acesso aos seus templos, do culto das suas crenças, do direito de reunião e da livre expressão escrita e oral, contará com a oposição determinada e a luta, sem tréguas, dos ateus.

As religiões combatem o que julgam serem os nossos erros, nós combatemos o que pensamos serem as suas mentiras. Onde está, da nossa parte, a intolerância? Porventura propomos a punição de quem vive da exploração da fé? Queremos queimar os quatro evangelhos que Constantino coligiu dos oitenta que foram considerados para o Novo Testamento? Alvitramos coimas para quem se sacramenta, jejua, reza ou exulta com procissões e peregrinações?

Podemos considerar burla o negócio dos milagres, a venda de indulgências, a purificação por borrifos do hissope e condenar a atmosfera terrorista que as Igrejas criam com o temor do Inferno. Desmascaramos os negócios pios dos transportes do Purgatório para o Paraíso, com veículos movidos a missas e oferendas, ou com óbolos que esportulados aos crentes para adquirir um estacionamento no Paraíso, mas não consentimos perseguições aos devotos nem restrições aos seus locais de culto.

O cristianismo plagiou crenças antigas. Cristo não foi o primeiro a nascer de uma virgem, a ressuscitar ao terceiro dia ou a dedicar-se ao lucrativo ramo dos milagres. Crer no poder dos santos, nos dons do Espírito Santo ou na omnipotência divina, não prejudica o mundo.

O perigo reside na violência crescente das religiões, na infiltração que fazem nos aparelhos de Estado e nas perseguições crescentes a quem não crê ou crê em mentiras alternativas.

O continente americano está infestado de cristão evangélicos que condicionam as liberdades e contribuem para o retrocesso civilizacional e o próprio catolicismo atinge formas jurássicas.

Em África, na zona do Sahel trava-se um combate mortal entre o protestantismo evangélico e o Estado Islâmico que dispõe aí de um dos grupos terroristas mais perigosos do mundo, o Boko Haram.

Na Birmânia os budistas negam a cidadania e a sobrevivência às tribos islâmicas cujo genocídio completo está em curso.

Na Índia o hinduísmo nacionalista entrou numa fase de chacina aos muçulmanos. E, por todo o mundo, o desvario islâmico wahhabita tem a civilização refém dos facínoras de um deus idiota, vingativo e troglodita.

Não somos nós, ateus, que somos intolerantes. Somos solidários com os direitos dos crentes, mas não nos peçam que renunciemos a desmascarar quem os engana, explora e fanatiza e, sobretudo, que quer destruir os alicerces da nossa civilização, herdeira do Iluminismo.

11 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

Leiam a Bíblia

Não se esqueçam de que o Antigo Testamento é a palavra de Deus e, embora nem todas as religiões do livro ofereçam na bem-aventurança eterna 72 virgens e rios de mel doce, é no cumprimento da vontade de Deus que o Paraíso de todas se alcança.

Publico hoje um importante versículo para advertir os homens que não queira manetas as suas mulheres para não brigarem com outros homens porque a solidariedade conjugal pode custar uma amputação. Depende da forma que a solidariedade assume.

10 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

A fé, a tirania e a violência

Quando o demente Abraão quis sacrificar o filho para fazer a vontade ao seu deus criou um axioma que perdura: os tiranos têm sempre quem lhes obedeça.

Que outra forma há para explicar as casmurrices papais que encontram sempre câmaras de eco que ressoam urbi et orbi?

Que justifica a existência de carrascos para darem cumprimento à sharia ? Quem criou os frades que rezavam alegremente enquanto as bruxas e os hereges eram grelhados nas fogueiras da Santa Inquisição ?

Faltam, acaso, médicos que atestem a veracidade dos milagres obrados por um sistema de cunhas que envolve uma virgem, um defunto e a associação de embusteiros?

As religiões são as multinacionais que mais tempo se mantêm no mercado sem renovar o stock dos produtos e os métodos da cautela premiada. Prometem o paraíso sem terem escritura válida ou o averbamento na conservatória do registo predial celeste e ameaçam com o Inferno, sem o localizarem no mapa imaginário da fé.

O clero é a classe de vendedores de ilusões que obedece cegamente à pouco recomendável hierarquia. Do hinduísmo ao cristianismo, do judaísmo ao islamismo, da bruxaria à quiromancia, a superstição e o medo são os motivos que levam os clientes a alimentar mentiras pias e o fausto dos patrões da fé.

5 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

Viva a República!

O núcleo de Coimbra do MR5O, constituído em 2010 para comemorar o 1.º Centenário da data emblemática do 5 de Outubro, integrado então por Amadeu Carvalho Homem, Anabela Monteiro, Augusto Monteiro Valente, Carlos Esperança, Fernando Fava e José Dias, foi reativado para lutar pela recuperação do feriado quando a iliteracia e a traição o exoneraram do calendário da Democracia, e dissolveu-se quando a justiça foi reposta.

Recordo hoje os companheiros desse movimento cívico e o texto sobre o qual o honrado republicano e ilustre Historiador e académico Amadeu Carvalho Homem escreveu em 2012 esta frase, que muito me honra:

«Este texto, elaborado por Carlos Esperança, foi adoptado pelo Núcleo de Coimbra do Movimento Republicano 5 de Outubro como solene declaração dos nossos actuais e futuros compromissos.»

***

O 5 DE OUTUBRO, A REPÚBLICA E O DECORO
A Revolução de 5 de Outubro de 1910 é a marca identitária do regime e uma referência da liberdade. Nessa data, os heróis da Rotunda redimiram Portugal da monarquia e da dinastia de Bragança, e foram arautos da mudança numa Europa que rejeitou os regimes anacrónicos ou os remeteu para um lugar decorativo.

Comemorar a República é prestar homenagem aos cidadãos que rejeitaram ser vassalos, aos visionários que quiseram o povo instruído, aos patriotas que impuseram a separação da Igreja e do Estado. Os revolucionários de 1910 anteciparam, por patriotismo, a queda de um regime esgotado e abriram portas para uma democracia avançada que a Grande Guerra, as conspirações monárquicas e clericais e os erros dos governantes sabotaram.

O 5 de Outubro de 1910 não se limitou a mudar um regime, foi portador de um ideário libertador que as forças reacionárias se esforçaram por boicotar. As leis do divórcio, do registo civil obrigatório e da separação Igreja/Estado são marcas inapagáveis da História de um povo e do seu avanço civilizacional.

A República aboliu os títulos nobiliárquicos, os privilégios da nobreza e o poderio da Igreja católica. O poder hereditário e vitalício foi substituído pelo escrutínio popular; os registos paroquiais dos batizados, casamentos e óbitos, pelo Registo Civil obrigatório; o direito divino, pela vontade popular; a indissolubilidade do matrimónio, pelo direito ao divórcio; o conluio entre o trono e o altar, pela separação da Igreja e do Estado.

Cessou com a República a injúria às famílias discriminadas pelo padre no enterramento das crianças não batizadas, dos duelistas e suicidas. O seu humanismo assentiu direitos iguais na morte aos que dependiam do humor e do poder discricionário do clero ou do exotismo do direito canónico.

Em 5 de outubro de 1910, ao meio-dia, na Câmara Municipal de Lisboa, Eusébio Leão proclamou a República, aclamado pelo povo, perante o júbilo de milhares de cidadãos. É essa data que, hoje e sempre, urge evocar em gratidão aos seus protagonistas.

Cândido dos Reis, Machado dos Santos, Magalhães Lima, António José de Almeida, Teófilo Braga, Basílio Teles, Eusébio Leão, Cupertino Ribeiro, José Relvas, Afonso Costa e João Chagas, além de Miguel Bombarda, foram os heróis, entre muitos outros, alguns anónimos, que prepararam e fizeram a Revolução.

Afonso Costa, uma figura maior da nossa história, honrado e ilustríssimo republicano, granjeou sempre o ódio de estimação das forças reacionárias e o vilipêndio da ditadura fascista, mas é o mais merecedor da homenagem de quem ama e preza os que serviram honradamente o regime republicano.

Não esperaram honras nem benefícios os heróis do 5 de Outubro. Não se governaram os republicanos. Foram exemplo da ética por que lutaram. Morreram pobres e dignos.
Nós, republicanos, é que não podemos aceitar que o 5 de Outubro se mantenha o feriado rasurado no calendário por quem não tinha cultura, memória e amor à Pátria. E honrá-lo-emos sempre.

Glória aos heróis do 5 de Outubro.

Viva a República!

Viva Portugal!

4 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

O problema das religiões

O problema das religiões não está nas fábulas que contam ou na liturgia que praticam, o problema insolúvel, a tragédia da sua existência, reside na fanatização que incita os crentes para a ação.

Não prejudica ninguém que um católico acredite na virgindade de Maria* ou no voo de Jesus para o Paraíso, a desgraça está no proselitismo para persuadir disso a concorrência e anatematizar os que desprezam a sua fé.

Que os muçulmanos detestem a carne de porco, como eu abomino cebola crua, não traz qualquer problema à humanidade, mas quando o opúsculo terrorista os convence de que devem matar os infiéis, isso já é problema grave e um crime contra a Humanidade.

Os judeus das trancinhas podem descansar ao Sábado e pensarem o que entenderem do Messias que aguardam, mas a gravidade do que pensam está toda no sionismo.

A fé não passaria de uma treta inofensiva se os crentes não se achassem na obrigação de converter incréus, de acossar outras crenças e de intoxicar crianças com as suas.

Deus podia ter sido uma criação interessante, como as deusas gregas ou as sereias, mas tornou-se um detonador do ódio e está na origem de guerras e interditos.

*«A doutrina segundo a qual a Bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante da sua conceição, foi por especial privilégio de Deus Omnipotente, com vista aos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano, preservada imune de toda a mácula do pecado original, é revelada por Deus e deve por isso ser acreditada por todos os fiéis, firmemente e com constância». (Pio IX, in Bula Ineffabilis Deus — 08-12-1854).**

**Depois disto cessaram as discussões ginecológicas sobre a Virgem Maria.

3 de Outubro, 2019 Carlos Esperança

A indústria dos milagres não entra em crise

Não compreendo o entusiasmo com que os cruzados degolavam infiéis, a euforia com que a Inquisição incinerava bruxas, ímpios e judeus, o dever cristão de denunciar pais, irmãos e filhos, suspeitos de heresia, nem o gozo da combustão de livros heréticos.

Não aprendi a gozar jejuns, a deliciar-me com cilícios ou a extasiar-me com a castidade. Sou um indivíduo falhado para a vida eterna e um problema para o qual a democracia e os hábitos atuais não têm solução.

Não discuto o valor nutritivo da eucaristia, o interesse terapêutico da missa, a utilidade da confissão, como detergente, nem o valor da oração para adquirir um lugar no Paraíso.
Duvido, sim, da influência das novenas na pluviosidade, da capacidade de santa Bárbara a amainar trovoadas, da autonomia de voo da Virgem Maria para poisar nas azinheiras de Fátima, dos anjos de duas, quatro e seis asas e de toda a fauna celeste cuja existência embevece os crentes.

Abomino o hábito de vergastar pessoas para agradar a Maomé, de decepar membros para cumprir o Corão, de lapidar mulheres para punir o adultério, de decapitar infiéis para satisfazer Alá e os suicidas obcecados por virgens e rios de mel.

Troco Moisés por Voltaire, Cristo por Pasteur e Maomé por Rousseau. À fé prefiro a dúvida e aos milagres a realidade. Desprezo Deus e a sua vontade e substituo qualquer encíclica por um livro de Saramago.

E não sei o que dizer da onda de beatificações e canonizações com que o papa Francisco continua a produção industrial da santidade.