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9 de Dezembro, 2019 Carlos Esperança

A propósito do ateísmo

Há quem não compreenda que o ateísmo é uma opção filosófica de quem se assume responsável pelos seus atos; de quem respeita a vida, única e irrepetível, a sua e a dos outros; de quem defende a razão e confia na ciência para elaborar modelos de racionalidade, sem recurso a um ser hipotético ou à esperança de outra vida para além da morte.

Há quem não veja que o Deus abraâmico foi fruto dos patriarcas tribais que, na Idade do Bronze, o criaram à sua imagem e semelhança: violento, xenófobo, homofóbico, misógino e vingativo.

Há quem recuse o direito de não acreditar em afirmações sem provas e de sentir repulsa pela crueldade dos homens da Idade do Bronze, crueldade atribuída ao deus criado à sua imagem e semelhança, quando hoje a tolerância e o humanismo se vão impondo.

Há quem não repare que cada religião considera falsa todas as outras e o deus de cada uma delas, no que certamente têm razão, e que os ateus só consideram falsa mais uma religião e um deus mais, tornando-nos a todos, de certo modo, ateus.

Há quem não admita que todos somos ateus em relação a Zeus, Afrodite, Ísis ou ao Boi Ápis e que os deuses de hoje poderão um dia ser estudados na mitologia.

Há quem pense que o único deus verdadeiro é aquele que lhe ensinaram em criança e que há um Paraíso à espera de quem troca a vida por um mito, a felicidade pela oração e a compaixão pela guerra.

Há quem não saiba que a defesa dos crentes e descrentes não exclui combater as crenças que sustentam a discriminação de género, o ódio, as mutilações, as torturas, as guerras e as crenças num Paraíso para quem execute as patifarias do deus com que o intoxicaram.

Não se podem esquecer factos, por muito que desgostem os crentes. Sem islamismo não haveria Estado Islâmico nem o rapto de crianças cristãs da Nigéria, feitas escravas. Não foram ateus, disfarçados de muçulmanos que as raptaram. Sem cristianismo não teria havido Cruzadas e sem judaísmo não haveria sionismo.

Vale mais um só artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos do que todas as páginas do Antigo Testamento.

«E se todos os homens do mundo quisessem dar-se as mãos…» (De uma balada de Paul Ford)

8 de Dezembro, 2019 Carlos Esperança

O Vaticano, o Papa e a tradição

Em 2013, o Vaticano recusou informações a uma comissão da ONU sobre investigações internas de abusos sexuais de menores, cometidos pelo clero, sob o pretexto de que é política da Igreja manter sigilo sobre tais casos.

Ao recusar partilhar informações com a ONU, o Vaticano revelou uma duplicidade que mitigou a gigantesca campanha de promoção do Papa, ajudada pela figura retocada de simplicidade e determinação onde o despojamento pessoal, a atenção aos crimes do clero e as investigações ao Banco do Vaticano eram as linhas de força para o branqueio da imagem do Vaticano.

O Papa Francisco é uma fonte de contradições. Perante uma imagem de sinceridade e de bondade, estava subjugado à Cúria que parecia estar a caminho da cura. Face a uma ideia de modernidade, insistiu nos milagres e exorcismos que são mais mortíferos para a credibilidade da Igreja do que um PIM de Almada a fustigar o Dantas.

O Papa Francisco afirmou então, no Vaticano, que a fé na “ressurreição da carne”, referida no Credo, é uma “verdade”, que está ligada à ressurreição de Jesus. A fé e a razão detêm um litígio de difícil solução mas não se entende que a leitura literal de uma crença possa ser promovida sem reflexão crítica.

A antiguidade da Terra, biliões de mortos, 7,5 mil milhões de vivos e muitos biliões que ainda nascerão, são números colossais que o Antigo Testamento não previu. Como se convence um mortal, no pleno uso das suas faculdades, que no Vale de Josafá, ora Vale de Megido, terá lugar a Batalha do Armagedão, apenas para não deixar mal colocado o profeta Daniel, que a previu?

Quem pode crer na ressurreição física de todos os mortos no exíguo espaço do Vale de Megido, onde aos transplantados serão reclamados os órgãos alheios? Quem imagina as cinzas dos incinerados em vida, pela Inquisição, ou dos mortos, por vontade própria, a refazerem a anatomia do corpo e a complexidade do cérebro?

Do pavor que a Igreja insiste em infundir, escapam três anos e meio em que o anticristo, personagem escatológica que dominará provisoriamente o mundo, fará um reino de ‘paz mundial, estabilidade económica e liberdade religiosa’ antes do fim dos tempos, ou do Armagedão, a tragédia fatal para derrotar Satanás, como se o importante fosse dar razão ao profeta Daniel ou a Mateus (24:3, 21) cujas profecias eram o seu modo de vida.

Quem convencerá a Igreja católica , para além dos que se habituaram a crer nela desde o nascimento?

7 de Dezembro, 2019 Carlos Esperança

A Universidade de Coimbra e a missa da Imaculada – 2019

A Universidade de Coimbra não cria apenas cientistas de elevado mérito e académicos de referência, atrai beatos capazes de conduzirem a caldeirinha com o hissope, atrás das saias de um capelão. Mistura Matemática, Física, Biologia e outras ciências com missas e orações, trocando a laicidade a que a CRP obriga por indulgências para os devotos.

O Magnífico Reitor, Amílcar Falcão Ramos, depois de ter proibido a carne de vaca na U. C., como os talibãs a de porco, procura aliviar a alma com missas na capela privativa onde a tradição e dinheiros públicos mantêm um capelão. Ungido com missa integrada na cerimónia de posse, uma inovação do antecessor, começa o mandato, qual almuadem católico, a convidar docentes e discentes para cerimónias pias em honra da Imaculada.

Falcão Ramos não perde as asas com que voou para reitor, mas empenha a envergadura do cargo ao convidar, com o capelão, professores, alunos e funcionários, para a missa de homenagem à padroeira da Universidade – a Imaculada Conceição –, a 8 de dezembro, às 12H00, na capela de S. Miguel.

Aceita-se que o capelão, no exercício das funções, convide os crentes a assistirem a uma cerimónia da sua religião. Permite, aliás, visitar a magnífica capela, uma relíquia da arte sacra, e, aos devotos, adorarem um dos muitos avatares da mãe de Jesus, que o Papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, tornou dogmaticamente virgem, como é hábito milenar para as mães de diversos deuses.

O que é inaceitável é que a mais alta entidade académica, de uma Universidade pública, se comporte como diretor de uma escola confessional ou mullah de uma madraça. Quem preside ao areópago da Ciência não pode dedicar-se à fé, sobretudo num país laico, onde a separação das Igrejas e do Estado é obrigatória.

Há anos, uma docente beata, então vice-reitora, propôs a recriação da extinta Faculdade de Teologia, no que fracassou por ter prevalecido o bom senso e a formação cívica do corpo docente, mas teme-se que a onda beata, que ora percorre a Reitoria da U.C., traga na enxurrada o regresso do ensino da única ‘ciência’ sem método nem objeto.

Uma faculdade de Teologia teria certamente licenciaturas em islamismo, cristianismo e judaísmo, bacharelatos em hinduísmo, xintoísmo e budismo, graduações em lançamento de búzios, mestrados em tarô e bruxaria, e doutoramentos exotéricos.

A Universidade deve ser o último reduto da laicidade e não uma vanguarda do convite à genuflexão e à prática litúrgica. Em vez de santuário da sabedoria, onde a Ciência deve ser o único culto, transforma-se em madraça que concede à liturgia a mesma dignidade.

Se a Universidade de Coimbra persiste em homenagear a Virgem, de que necessita para padroeira, é tempo de transformar as igrejas, mesquitas e sinagogas em laboratórios, e a água benta em potável, através da química para que a formação farmacêutica preparou o Reitor.

Ámen.

6 de Dezembro, 2019 Carlos Esperança

A religião, a doença e o sofrimento

O prazer é o alimento da felicidade e do bem-estar. O hedonismo preserva a espécie e dá sentido à vida. A doença é o revés que devasta, e a dor a infortúnio que transforma a vida em tragédia e a morte na única forma de libertação.

A morte é aliciante para quem se alimenta dela, industriais funerários, gatos-pingados e funcionários de Deus. Estes últimos encontram no medo o húmus para a evangelização, o meio para a sua eficácia, e a estratégia para a manutenção do emprego.

O medo da morte criou os deuses, à imagem e semelhança dos homens, mas foram os chefes tribais da Idade do Bronze que criaram o deus misógino, xenófobo e vingativo que deu origem aos monoteísmos.

Confundir o direito à vida com a obrigação de a prolongar quando se torna insuportável, é a maldade de uns e o masoquismo de outros, a perversão pia que o sadismo sustenta e a crença que condena a vida com as dores inventadas para depois da morte.

Quando a crença se sobrepõe à razão, a insensibilidade resiste ao sofrimento, sobretudo dos outros, e cria o pensamento totalitário, que leva ao desprezo dos direitos individuais e à exaltação do sofrimento, como se o deus violento, que mora na imaginação dos seus funcionários, se rebolasse de gozo perante as dores humanas.

É a ausência de discernimento, que o embotamento da fé produz, que ateia fogueiras ou leva imbecis a atar um cinto com explosivos à barriga, a demência que criou cruzados e fabrica talibãs, a crença que leva um clérigo a trocar a compaixão por um versículo e a atormentar um moribundo para o levar a agradecer ao carrasco que inventaram.

2 de Dezembro, 2019 Carlos Esperança

A Irmã Lúcia e os folhetins dos segredos

Lúcia de Jesus dos Santos ou Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado, Irmã Lúcia, para os mais chegados, fez a 1.ª comunhão aos 6 anos e aos 14 tornou-se reclusa, como pensionista, na escola das Irmãs de St.ª Doroteia, em Vilar, próximo do Porto.

A 3 de janeiro de 1944, já com letra aprimorada e intimidade com o divino, escreveu, a pedido, a “Terceira Parte do Segredo de Fátima”, quando ainda usava o pseudónimo de Maria das Dores e vivia enclausurada em Tui, Espanha.

Já era então vasto o currículo místico, com amplo traquejo no campo das visões, desde as entrevistas com a Virgem, que saltitava de azinheira em azinheira, até aos rodopios do sol, transformado em bola de fogo, a brilhar em numerosas cores, e à viagem ao Inferno onde encontrou o Administrador do Concelho de Ourém, a frigir como merecia, por, em vida, ter faltado à missa.

A Terceira Parte do Segredo de Fátima foi um ponto alto da sua bibliografia pois era a profecia que o papa João Paulo II, na sua superstição, entendeu ser a seu respeito. Esse recado celeste vai agora ser investigado por uma professora catedrática de Coimbra, Maria José Azevedo Santos, não porque tenha a santidade no apelido, mas por ser uma cientista em Paleografia, Diplomática e Codicologia, ciências terrenas que hão de ajudar a compreender as idiossincrasias do Paraíso.

A Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo-Ofício, de passado pouco estimável, é a possuidora do valioso documento, ora emprestado, pelo prazo de 1 ano, ao Santuário de Fátima onde integrará a exposição «Segredo e Revelação», evento que acordará paixões pias e êxtases místicos.

Espera-se que no acervo dos alvitres da Senhora do Rosário – nome com que a virgem se apresentou aos pastorinhos –, não faltem as cartas que a experiente vidente dirigiu a Marcelo Caetano pedindo legislação adequada para a altura das saias e o tamanho das mangas dos vestidos femininos.

Sabe-se que a Ir.ª Lúcia está no Céu porque, no dia do seu funeral, o Papa João Paulo II e o futuro Papa Bento XVI disseram que ela iria para o céu e Deus seria incapaz de lhes contrariar as previsões.

1 de Dezembro, 2019 Carlos Esperança

O Estado e a Igreja

Apesar da separação ser uma imposição da Constituição, constando aliás dos limites à sua eventual revisão, que impõe o carácter laico do Estado, os dois últimos presidentes da República puseram a devoção acima da decência republicana.

Cavaco era um beato mal encarado, Marcelo é um beato simpático, com uma enorme sofreguidão pelo anelão dos bispos que oscula em voo picados de intensa sobrevivência pia.

27 de Novembro, 2019 Carlos Esperança

Ficção, Razão e Fé

Por

ONOFRE VARELA

Michel Houellebecq, francês natural da Ilha de Reunião, onde nasceu em 1958, é escritor. No seu livro Submissão, embora se trate de um romance de ficção que nada tem de racionalmente premonitório, aborda a expansão do Islamismo na Europa, e fá-lo de um modo muito dramático afirmando que a França está a ser islamizada perante a inércia de uma classe política dirigente decrépita, apontando o dedo aos pontos débeis do Cristianismo e a uma Esquerda que navega num mar de erros.

Entrevistado pelo jornal El País (suplemento Babélia, 15 de Abril de 2015) o escritor diz que, na realidade, “a razão não se opõe à fé de uma maneira muito clara. Se tivermos atenção na comunidade científica, encontramos cientistas ateus sobretudo entre os biólogos. Ao contrário, entre os astrónomos encontra-se um grande número de cristãos. A explicação disto está no facto de ser possível encontrar uma boa organização no universo. Porém, quando se trata de seres vivos, a coisa é mais duvidosa. Os seres vivos não estão bem organizados e são, até, um pouco repugnantes. Um matemático não tem grande dificuldade em crer em Deus, porque trabalhar com equações liga bem com a ideia de uma ordem e de um criador dessa ordem”.

O livro está semeado de pessimismo, ao ponto de um seu crítico, Carlos Zanón, autor de um artigo sobre a obra, dizer que Michel Houellebecq “é um moralista que espera algo de um queijo ou de um polvo, mas não espera nada de um ser humano”.

No enredo da novela Submissão conta-se que os franceses acabam por votar maioritariamente no partido de estrema-Direita Frente Nacional, liderada por Marine Le Pen, e num partido islâmico moderado liderado por um tal Mohammed Ben Abbes. O livro alertou (e, principalmente, assustou) a opinião pública para o perigo islâmico de extremismo violento, desrespeitador e sanguinário, já hoje instalado na sociedade francesa.

Neste livro, que embora seja, assumidamente, uma ficção, as mentes mais receosas encontram alguma analogia com os discursos que alimentam medos semeados pela Frene Nacional.

Passando da ficção para a realidade, parece-me que os actos cometidos pelos extremistas islâmicos são de tal modo horríveis e desumanos, o que, por si só, afasta o perigo da vitória dos inimigos da cultura europeia e ocidental, da paz e da liberdade individual. É coisa que ninguém deseja, o que impede a hipótese de um acto eleitoral dar poderes a quem teria como primeira acção governativa, incendiar o Louvre e explodir o Museu do Homem!…

Mas também sabemos que o eleitorado é tão débil e tão facilmente manipulável… o que nos leva, a todos nós, a uma meditação séria sobre este problema… o qual, de facto, existe!

(A sair no jornal Gazeta de Paços de Ferreira, edição do dia 28/11/2019)

24 de Novembro, 2019 Carlos Esperança

A ciência, os milagres e a santidade

Pensava eu, em meu pensamento, que os milagres cientificamente comprovados no laboratório do Vaticano, no mínimo de dois, eram as provas académicas de acesso à santidade que, comparadas com o mundo profano, equivaleria o primeiro milagre ao mestrado e o segundo ao doutoramento.

Pensava ainda, em meu pensamento, que a canonização, sem numerus clausus, atribuiria um alvará para novos milagres, sendo os dois primeiros as provas de exame no apertado filtro da canonização que, com o defunto ausente, fariam da Sagrada Congregação para as Causas dos Santos, a Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, com a dignidade de Prefeitura.

Compreende-se que os santos precisem de provas para poderem continuar no ramo dos milagres, sendo os primeiros obrados à experiência e os seguintes já com provimento definitivo. Isso justifica as alegadas exigências postas na comprovação científica dos prodígios pela Congregação oficial para não se repetir a exclusão do Livro dos Santos, como sucedeu a S. Guinefort que, apesar de mártir, foi exonerado quando se descobriu tratar-se de um cão e o templo, em sua honra, foi mandado arrasar pelo Papa de turno.

Um santo, depois do alvará de canonização, tem direito a biografia no Livro dos Santos, acompanhada da oração dedicada ao mesmo, de uma imagem clássica e do patronato e dia consagrado dento do culto católico. Não admira, pois, a exigência de três médicos que confirmem os milagres e a dificuldade acrescida dos defuntos em obrarem milagres de jeito, depois da evolução farmacológica e dos avanços médicos.

Exceto na oncologia, os milagres andam agora pelas varizes, furúnculos, queimaduras, moléstias da pele e, às vezes, pela fisiatria. Acontecem sempre na área da medicina e nunca na economia, física ou matemática, isto é, a santidade está confinada a medicinas alternativas.

Mas o que surpreende é a inércia dos santos reconhecidos e o frenesim dos candidatos. Lembro-me que Nuno Álvares Pereira, depois da brilhante cura do olho esquerdo de D. Guilhermina de Jesus, queimado com salpicos de óleo fervente de fritar peixe, e logo canonizado, nunca mais curou um simples furúnculo, hemorroides ou uma fratura do colo do fémur, o mesmo acontecendo com os milhares de canonizados dos três últimos pontificados.

A canonização, se a política da santidade se mantiver, deixa de ser o diploma para obrar milagres e passa a mero pergaminho da jubilação, assinada e com lacre do Vaticano.

23 de Novembro, 2019 Carlos Esperança

ICAR – Da primeira à última confissão – Crónica

Quando a Ti Ricardina e a menina Aurora, sua sobrinha, me ensinavam o catecismo e o ódio aos judeus, comunistas, maçons, sacrílegos, apóstatas e outros malfeitores que não seguiam a única religião verdadeira, a delas, não imaginava que lhes guardaria a afeição que se dispensa a quem devemos a primeira vacina.

O meu nascimento na casinha térrea no Bairro Galego, de Escalhão, naquele dia 17 de dezembro de 1942, viria a ser premonitório do nascimento de um ateu, tal o número de candidatos a padrinhos de batismo do neófito. Eram o Tó Vieira, de Almeida, o meu tio Alfredo, o prof. Carlos, o único que tratei por padrinho, que viria a presentear-me com o ‘Cristo Nunca Existiu’, de Emilio Bossi, e à madrinha Irisalva, sua cunhada.

A fé e o medo do Inferno vieram durante o tempo da escola primária, e foi na catequese que o medo do Inferno e das almas do outro mundo veio ao meu encontro pela voz das doces catequistas. O Purgatório era outro dos medos e o Limbo motivo de desolação. O sofrimento de Cristo e a raiva a Pôncio Pilatos, metido acidentalmente no Credo, eram torturas para a criança sensível que fui.

Um dia assisti a um pôr do Sol com vermelhidão intensa antes de entrar na igreja e de pedir uma explicação à Ti Ricardina, que logo esclareceu que era um sinal de que os comunistas matariam os cristãos, tinha-o dito a Lúcia. Eu, que rezava pela conversão da Rússia, todas as noites, como a Lúcia pedira, saí da catequese a chorar, e foram outros garotos, indiferentes à Lúcia, aos comunistas e à catequista que me levaram a casa onde perguntei à mãe se o meu pai, que não ia à missa, teria culpa pelo perigo que corriam os cristãos. De como a minha mãe tentou tranquilizar-me, não me recordo. Sei que o meu pai, no domingo seguinte, esperou o padre à saída da missa e queixou-se da ignorância das catequistas e dos terrores que infundiam, alertando-o para os disparates com que lhe aterrorizavam o filho. Regressou espantado com a resposta do padre, que lhe confirmou ser verdade a advertência da Lúcia e a necessidade de rezar pela conversão da Rússia. E que perigoso era para um casal de funcionários públicos tirar o filho da catequese!

Ficou o agnóstico descoroçoado e o filho a viver terrores noturnos com as labaredas do Inferno a entrarem nos sonhos, as caldeiras de azeite fervente a frigir almas e o Diabo a mergulhá-las com um enorme garfo de três dentes, durante os anos sacramentados com a eucaristia e a penitência até à confirmação que o Sr. Dom Domingos me impôs por se ter finado o antecessor, José Alves Matoso, que o Senhor chamara, depois de 38 anos de mitra, báculo e anelão, à frente da diocese.

Tinha, pois, dez anos quando fiz a comunhão solene, vestido de Cruzado, e fui crismado pelo Sr. D. Domingos, que me besuntou com os santos óleos para os quais o padre Faria não tinha alvará, o que levou o Sr. Bispo a deslocar-se ao Cume e a indagar quem queria ir para o seminário. Antecipei-me aos outros e disse-lhe logo que só o Zé Marcelino.

Nesse ano entrei no liceu da Guarda e nunca mais rezei o terço ou me lembrei do mês de Maria, em maio, quando todas as noites sofria o frio da igreja enquanto o Sr. António Bernardo orientava o terço, com cada mistério a arrastar um pai-nosso e dez ave-marias.

Até da missa, com posologia semanal, comecei a fazer o desmame. Nos três primeiros anos só fui à missa no 1.º de Dezembro, a desfilar fardado da Mocidade Portuguesa, e à missa pascal, com comunhão, antecipada para não coincidir com as férias, precedida da desobriga coletiva que o padre Cabral e o Dr. Ramalho estimulavam.

No 4.º ano, durante o confesso, perguntei ao padre se podia deixar de cometer pecados, dado que Deus sabia que os cometeria e teria culpa. Foi dramático ouvir dizer-me que tinha a mão de Satanás na garganta e que não podia dar-me a absolvição, embora eu não sentisse tal mão. Já resignado a erguer-me, sem os sinais cabalísticos que lavam à alma os pecados, olhei para trás e vi o Dr. Ramalho genufletido, a aguardar a sua confissão, e de cuja vingança pia tive maior medo do que do eventual castigo divino. Num ápice, disse ao confessor que Satanás tinha tirado a mão, e logo me mandou rezar o ato de contrição e deu a absolvição, com um ror de padre-nossos e ave-marias de penitência que a dúvida cartesiana mereceu e me exonerei de cumprir. Com as pernas a tremer, preenchi a ficha, para a estatística da paróquia da Sé, que ficava no padre e não era previsível que fosse enviada a Deus.

No dia seguinte não fui à missa nem à comunhão. Acabou aí a relação com a Igreja que tanto pavor me provocara. Só voltei à missa na consagração do curso de 1959/61 da Escola do Magistério da Guarda, tradição vigiada pelo diretor, quando os docentes do ensino primário eram obrigatoriamente católicos, mas dessa missa, da dissimulação a que fui constrangido e das respetivas circunstâncias hei de falar noutra crónica.

A visão do Dr. Ramalho não me reforçou a fé, mas levou-me a resistir ao proselitismo, a libertar das crenças e a reagir à repressão. Devo-lhe muito, a ele, às minhas catequistas e à multidão de sotainas que enxameavam a Guarda com um padre tonsurado dentro, de colar romano ao pescoço.

A vacina vitalícia da descrença foi aquela última confissão. Já leva 62 anos de eficácia.

Coimbra, novembro de 2019