Loading
6 de Julho, 2020 Carlos Esperança

Por

ONOFRE VARELA

Conversando com um amigo, falávamos da diversidade de sensibilidades políticas e religiosas que unem as pessoas, mas que também as separam e muitas vezes conduzem a agressões verbais ou físicas condenáveis. Como exemplo desses procedimentos bélicos, referíamos os actos pouco dignos, até criminosos, de grupos fundamentalistas, sejam religiosos ou políticos, e mesmo claques de clubes de futebol. Todos têm a mesma matriz do ódio… só porque uns gostam de maçãs, e outros preferem pêssegos!…

Estas atitudes, sendo condenáveis, também são naturais em nós. Fazem parte da nossa característica de predador, de que a Natureza nos dotou como sistema de defesa e sobrevivência. Mas se a Natureza nos fez predadores – tal como fez o leão – também nos equipou com um cérebro de características especiais, dando-nos raciocínio, sensibilidade e inteligência… faculdades que o leão não possui. Por isso nos obrigamos a usar as nossas características de Sapiens, contrariando o mero animal que somos, usando “odeus que habita em nós”, e abandonando a nossa parte animalesca que, naturalmente, faz o leão. O meu amigo arregalou os olhos de espanto.

Sabendo-me ateu, estranhou a minha referência ao “deus que habita em nós”! Compreendi o seu assombro porque o Ateísmo sempre foi vilipendiado e dele se faz, erradamente, exemplo de desvio comportamental no pior dos sentidos. Na verdade não há razão para espanto, porque os ateus (isto é: eu. Da sensibilidade de outros ateus não posso falar. Tal como há vários modos de se ser religioso, também os há de se ser ateu). Dizia eu que os ateus criticam “a ideia da existência de um deus exterior a nós”, no aproveitamento social e económico que dessa ideia se faz, mas nunca criticam “o deus que habita em nós”… isto é, a ideia que nos levou à criação de deuses, e depois à sua depuração até chegarmos ao “Deus único” adorado por judeus, cristãos e muçulmanos. O processo da “depuração da ideia de Deus” ainda não está concluído. O caminho que conduziu ao abandono de um panteão, apurando um único deus, acabará por dispensar, também, o deus Jeová (Alláh) criado pelos Hebreus (e adoptado por Maomé), que sobrou da purga do tempo. 

Quando refiro “o deus que há em nós”, sei que sou compreendido por quem me escuta e é crente, porque a força que ele sente na crença que alimenta “o deus que habita em si” – cujo deus, na verdade, só existe na sua cabeça, e não fora dela – é característica daquela parte de nós que sublinha o facto de sermos Sapiens, diferenciando-nos de todos os outros animais nossos companheiros da vida na Terra. Só a capacidade de raciocínio, a inteligência, a sensibilidade e o sentido estético que nos levou à criação da Arte, ao entendimento do belo… e à criação de deuses… faz de nós uns seres especiais e superiores. No entanto, quando em discordância com os nossos semelhantes, somos capazes de adoptar comportamentos iguais aos de um qualquer animal predador inferior, porque a nossa origem natural, enquanto animais, é a mesma… embora raciocinemos, deixamos, imensas vezes, a nossa sensibilidade tormentosa comandar-nos, tomando conta da razão.

Por esse caminho, muitas vezes ficamos em patamares inferiores aos irracionais nossos irmãos de reino, porque enquanto que estes só guerreiam por alimento, por fêmea e pelo domínio do grupo, nós fazêmo-lo pelas mesmas três razões… e acrescentamos a lista, tomados por uma irracionalidade que demonstra o pior da nossa condição animal… o que parece incongruente com a nossa capacidade de raciocinar… mas somos assim!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

5 de Julho, 2020 Carlos Esperança

Em nome da liberdade

Sinto-me um nano-micro-mini intelectual, espécie de especialista em coisa nenhuma, o opinante que faz suposições sobre realidades variadas sem aprofundar uma única. Não me demito de opinar, de me interrogar e de desafiar os outros para me acompanharem nas inquietações, dúvidas e enganos. Cada um de nós só se levanta se tiver caído antes e, em cada tombo, aprender a erguer-se de novo.

Por cada preconceito que enjeito adoto outro, por cada amarra de que me liberto aparece uma nova corrente que me prende. A liberdade é o caminho estreito, entre vias sinuosas de vários constrangimentos, que não podemos desistir de procurar e defender.

Ameaçam a liberdade a fome, a sede, o medo e o preconceito, mas a grande ameaça é a violência que se lhes junta, o sectarismo de quem se julga detentor de verdades únicas, a vindicta de quem vê nos adversários inimigos e nos livres-pensadores réprobos a abater.

As religiões são frequentemente detonadoras do ódio, fautoras de guerras, guardiãs dos velhos preconceitos e inimigas da liberdade, apesar da bondade de muitos crentes e dos golpes de rins dos exegetas.

Todas as religiões consideram falsas as outras e o Deus de cada uma delas. No fundo todos somos ateus porque quem se reclama ateu só considera falsa mais uma religião e um Deus mais. Sem recorrer ao conceito grego de ateísmo, veneração de deuses de uma cidade diferente, hoje todos somos ateus em relação a Zeus, Amon, Júpiter ou Boi Ápis.

A crença ou a descrença não fazem as pessoas boas ou más. Há exemplos deploráveis de umas e de outras. Trágico é pretender que o que foi escrito na Idade do Bronze, por homens de tribos patriarcais, seja a palavra de um Deus que demorou muitas centenas de milhares de anos a revelar-se e apenas soprou o barro quando o género humano se reproduzia há muito pelo método popular ainda hoje em uso.

Um Deus feito à imagem e semelhança dos homens, dos homens de tempos onde a luta assegurava a sobrevivência, imbuíram os livros sagrados do espírito violento, xenófobo, vingativo, misógino e homofóbico, incompatível com a modernidade.

Não vem mal ao mundo que as pessoas substituam a reflexão e o espírito crítico pela fé, direito que o Estado moderno deve garantir, mas torna-se intolerável o carácter prosélito que devora os crentes, a demente obsessão de impor aos outros o que cada um julga ser a verdade divina, perpétua e imutável, pela violência, quando necessária.

Um Deus que se preocupa com as normas de conduta, da alimentação ao vestuário, das orações aos jejuns, da liturgia à sexualidade, sobretudo com a última, especialmente a das mulheres, não pode andar à solta, sem que o Estado refreie os guardiões e defenda da sua ira quem prefira, ao risco perpétuo de perder a alma, a fugaz apoteose da vida.

A laicidade é a vacina que defende a Humanidade dos confrontos religiosos na disputa do mercado da fé. A globalização ameaça reduzir a um único os credos em confronto.

4 de Julho, 2020 Carlos Esperança

Em nome da liberdade

As suscetibilidades pias são um episódio na escalada contra a laicidade. A substituição do direito divino pela soberania popular foi um passo para a democracia e uma grande deceção para o clero.

A liberdade é um bem escasso. Limitada pela opressão dos Estados, tolhida pelo medo individual e fanatismo religioso, precisa de quem a defenda contra tudo e contra todos.
A publicação de caricaturas de Maomé desatou, há anos, a ira do Islão e os desacatos, ameaças e violência do fascismo islâmico. Os cristãos opor-se-ão sempre ao escárnio do calvário de Cristo ou da virgindade de Maria, e a liberdade de expressão regressará ao escrutínio dos clérigos que ao longo dos séculos oprimiram a Humanidade.

Recordamo-nos do trauma das perseguições da inquisição, da celeuma do preservativo colocado em sítio menos óbvio – o nariz de João Paulo II –, pelo cartoonista António e do assassínio de um médico por um pastor evangélico, na sequência da prática de um aborto, nos EUA.

Temos o direito de caricaturar Deus, afirmou então, em França, o jornal France Soir, após a publicação dos desenhos de Maomé: «OUI, on a le droit de caricaturer Dieu».

Se nos deixarmos tolher pelo medo, não tarda que o poder seja de novo confiscado pelo clero, que sempre reivindicou procuração divina, e que sejam postos em causa direitos, liberdades e garantias arduamente conquistados ao longo dos séculos.

Dar publicidade aos testemunhos de irreverência, humor e heresia não é provocação aos crentes, é um ato de cidadania em defesa da liberdade de criação, uma ousadia contra a chantagem, uma advertência de quem resiste ao medo, à violência e às bombas.

Não faltarão cobardes a dizer que «deve haver um certo cuidado» e que «talvez não seja sensato». A pusilanimidade não conhece limites.

Defender o direito à blasfémia é um ato de solidariedade para com criadores artísticos, órgãos de comunicação que os acolhem e países que não se vergam à histeria da fé e ao fascismo religioso. É também a forma de homenagear Salman Rushdie cuja condenação à morte teve do Vaticano, do arcebispo de Cantuária e do Rabino Supremo de Israel uma posição favorável ao aiatola Khomeini quando, em piedosa demência, o condenou à morte, pelo abominável crime de…ter escrito um livro.

Se os crentes, de qualquer fé, por mais idiota que seja, entenderem caricaturar os ateus, apelidá-los de burros, idiotas e patetas, estão no seu direito. Todos temos de aprender a tolerar o direito de opinião dos que discordam de nós, por mais injustos e provocadores que sejam. O direito de expressão tem de estar acima do direito à repressão.

Quando o grotesco Califado com que gerações de jihadistas sonharam nasceu entre a Síria e o Iraque, e os facínoras da fé instauraram o Estado islâmico nos territórios que controlaram, não houve caricaturas e insultos que bastassem, urgia repor a salubridade nos territórios que as mesquitas e madraças ameaçaram tornar insalubres.

Mas a vitória não aconteceu ainda. E não há vitórias definitivas.

30 de Junho, 2020 Carlos Esperança

A razão, a superstição e os exorcismos

Quando a razão dorme, acordam os monstros. É esta mensagem de Goya num dos seus «Caprichos», um Iluminista com o pincel e as tintas a fazer mais contra a superstição do que grandes escritores em milhares de páginas. Goya zurziu, em finais do século XVIII, a nobreza e o clero, com o génio do talento e a coragem dos heróis, através de uma das armas mais mortíferas – a sátira –, com que abalou o prestígio de Ordens religiosas e os preconceitos do seu tempo.

O fanatismo religioso, a Inquisição e as superstições foram denunciadas nas 80 gravuras do genial pintor que só por sorte escapou às garras da Inquisição. Ele não foi apenas um precursor da pintura moderna, foi um arauto da sociedade liberta das trevas e conduzida à razão pelo Iluminismo.

Quando, há anos, o cardeal Rouco Varela, nomeou oito exorcistas para a diocese de Madrid e se soube que as dioceses católicas têm peritos no tratamento das possessões demoníacas, não foi o atraso de uma Igreja que desprezo que me preocupou, foi o regresso da sociedade aos medos medievais e forças ocultas que apavoraram gerações de crentes.

Depois de um Papa ter negado a existência do diabo logo outro veio reiterá-la, não fosse a superstição desaparecer. Quando os crentes perdem o medo dos demónios, acabam por duvidar do interesse do seu Deus, mas o que é terrível é a crença do clero nas possessões demoníacas, nesse regresso ao obscurantismo que encobre o autoritarismo eclesiástico e o imobilismo ideológico característico das seitas.

No caso espanhol, o velho cardeal franquista convidou ainda psiquiatras para fazerem o diagnóstico diferencial entre doenças do foro psíquico e da alçada do demo. Claro que à declaração clínica não é alheia a crença do médico e não é por acaso que a única doença exclusiva dos crentes seja a possessão demoníaca, moléstia que não atinge agnósticos, ateus, céticos e outros livres-pensadores.

É o regresso ao autoritarismo romano que está em marcha. Denunciar os desvarios pios é uma obrigação de quem recusa o regresso à época das trevas.

Há mais de dois séculos, já Francisco Goya nos alertava para o mundo obscuro que os conventos e as sacristias preservavam tal como hoje o fazem, às escâncaras, as madraças e mesquitas.

28 de Junho, 2020 Carlos Esperança

Laicismo e laicidade

É frequente encontrar beatos embrutecidos pela fé, e crentes moldados pelas Igrejas, que dizem ser a favor da laicidade e contra o laicismo. Há quem o faça de boa fé e quem use um artifício semântico para iludir a discussão.

Normalmente, os que defendem a laicidade e condenam o laicismo são os que apoiam a laicidade quando são minoritários e reprovam um tratamento igual, para o que designam diferente, quando estão em maioria.

Laicismo é o nome de uma doutrina do séc. XVI que pretende para os leigos o direito de governar a Igreja, mas, hoje, diz-se da doutrina que tende a emancipar as instituições do seu carácter religioso. Foi esta a evolução semiológica da palavra.

O Laicismo defende a exclusão da influência religiosa no Estado, na cultura e na educação e tende a libertar as instituições estatais do carácter religioso. Expandiu-se na Revolução Francesa e deve-se-lhe a separação entre a Igreja e o Estado. O laicismo facilita a irreligiosidade, mesmo a anti-religiosidade, mas não é a causa nem impede às religiões os direitos de ensino e organização que confere às outras associações.

Laicidade é o modo concreto da tradução e aplicação prática desse preceito. O laicismo é, pois, a doutrina, e a laicidade o modo de a levar à prática.

A laicidade conduz à neutralidade do Estado e à obrigação de se declarar incompetente em questões religiosas. Cabe-lhe, isso sim, respeitar todas as crenças, descrenças e anti-crenças. O Estado não tem o direito de ser católico, protestante, budista ou ateu e, muito menos, de se pronunciar sobre ‘verdades da fé’. Todos somos ateus em relação ao deus dos outros, os ateus só o são em relação a mais um.

A religião não é um direito do Estado ou das suas instituições, é um direito individual.

Quem distingue o laicismo da laicidade é quem, habitualmente, confunde crenças com os crentes. Estes respeitam-se, aquelas seguem-se, desprezam-se ou combatem-se, fazem parte da disputa do mercado da fé. Um Estado que aceita criminalizar a heresia, a apostasia, a blasfémia ou o sacrilégio não é uma democracia, é a sucursal de uma qualquer madraça, como se as ‘verdades da fé’ de qualquer religião não fossem heresias para a concorrência, e a conversão não fosse pecado gravíssimo para a que se abjurou e um ato heroico para a que se abraçou.

Temos de nos habituar a respeitar todos os crentes e a pôr em dúvida todas as crenças. Só o código penal laico pode proteger os cidadãos, indiferente aos seus credos.

Não há novidades neste texto, mas é cada vez mais necessário distinguir os crentes das crenças, i.e, as vítimas dos seus preconceitos, porque vale mais cada um dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos do que todos os versículos herdados das tribos patriarcais da Idade do Bronze.

26 de Junho, 2020 Carlos Esperança

São Josemaria Escrivá – 45.º aniversário do seu passamento

Há 45 anos faleceu monsenhor Josemaria Escrivá, indefetível apoiante do genocida Francisco Franco e fundador do Opus Dei, apoiante dos negócios políticos de João Paulo II, que levaram à falência fraudulenta do banco Ambrosiano e à criação de centenas de santos em Espanha, todos mártires do mesmo lado da guerra civil.

Teve uma vida ao serviço de Deus e do fascismo, acompanhou as tropas sediciosas a Madrid, e os seus devotos, a quem indicou o caminho, levaram à falência os impérios Matesa e Rumasa, para maior glória da prelatura e benefício dos desígnios do Monsenhor.

Mal refeito da defunção, fez três milagres, mais um do que era necessário para a santidade. O primeiro foi no ramo da oncologia, a uma freira, prima de um ministro de Franco, que morreu curada. Está nos altares e deixou um exército de prosélitos, apto a enfrentar o Islamismo e a subsidiar o Vaticano, onde, depois de dois pontífices amigos, o Espírito Santo iluminou mal os cardeais do consistório e lhes negou o terceiro.

Fundador de uma das mais reacionárias seitas católicas, usava o cilício como prova de amor ao deus que defendeu o generalíssimo, a monarquia, o catolicismo e o garrote, em Espanha.

O 25 de Abril, em Portugal, abalou-o na fé e na saúde. As eleições livres de 1975 só o deixaram viver mais dois meses. Também Franco, ditador até ao último sacramento, morreria menos de 5 meses depois do ora santo, bem confessado, melhor comungado e excelentemente ungido e cerimoniado, com o povo de rastos e a cumprir de joelhos as suas últimas vontades, quanto ao regime de Espanha e ao destino do cadáver.

25 de Junho, 2020 Carlos Esperança

A Confissão

Por

ONOFRE VARELA

A minha primeira experiência numa igreja foi desastrosa. Frequentava a segunda classe da instrução primária e fui levado pelo professor, com os outros alunos, perfilados dois a dois, para a igreja de Rio Tinto. Lá dentro, nos dois cantos do altar, estavam dois padres sentados em cadeirões. Formaram-se duas filas e vi que quando o colega da frente chegava junto ao sacerdote, ajoelhava e acontecia uma troca de palavras imperceptíveis. Fiquei inquieto. Não sabia o que estava a acontecer ali, nem o que fazer quando chegasse a minha vez. Quando ela chegou, fiz o que vira fazer. Ajoelhei. O padre, com o queixo no peito, disse algo em tom tão baixo, que não percebi. Levantou a cabeça lentamente, olhou-me e repetiu o que teria dito, e dessa vez entendi: “Diz a confissão”. Não percebi o que era que ele queria que eu dissesse, e respondi com a boca seca pelo nervosismo já transformado em pânico: “Não sei!”. Nunca tinha experimentado aquilo, nem sabia o que haveria eu de confessar!… Senti-me abandonado no mundo e o dia até aí solarengo, transformou-se em tormenta. Salvou-me o que o padre disse logo a seguir: “Então vai para casa aprender, e quando souberes volta cá”.

Fez-se Sol na minha alma! Levantei-me rapidamente e saí dali. Nunca quis aprender a confissão e perdi a vontade de voltar a entrar numa igreja!… Aquela experiência repeliu-me. Soltou-me, em vez de me prender. Será que uma criança de oito anos sabe o que é a confissão católica?!… Se calhar, nem metade dos adultos que o fazem, o sabem, e provavelmente só o fazem por hábito adquirido em criança. Para existir uma confissão, no sentido de se obter um perdão, tem de, antecipadamente, existir um delito. E depois, a confissão do delito não o elimina… é necessário compensar a vítima que prejudicamos com a nossa acção delituosa. Essa função pertence aos tribunais, não à Igreja! A função da Igreja no acto da confissão está a outro nível. É uma espécie de lavagem da consciência, sem remediar o mal feito.

A confissão católica remete o perdão da nossa falta para a responsabilidade de Deus! Sinto-me perdoado pela divindade da minha crença, mas aquele que prejudiquei, continua prejudicado sem ser ressarcido dos danos que lhe causei!… Porém, eu fico na maior leveza de consciência porque Deus me perdoou!… Isto é indecente!… Pode funcionar psicologicamente, mas é de um egoísmo extremo, premiando o prevaricador e esquecendo a vítima! O crente só encontra satisfação no acto da confissão porque o seu sentimento de crente está programado para aceitar aquele acto dirigido a Deus através da intermediação de um sacerdote, ficando de consciência tranquilamente limpa da falha que confessou… mas sem indemnizar a vítima do acto que motivou a sua confissão! Se você, leitor, é religioso católico e consegue viver em paz depois da confissão a um sacerdote, óptimo… isso é muito bom para si!… Mas não se esqueça de falar com aquele, ou aquela, a quem prejudicou e por isso se confessou!… No mínimo, peça-lhe desculpa pelo seu erro e não o torne a praticar. Está combinado?… Fique feliz e tome lá um abraço.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

24 de Junho, 2020 Carlos Esperança

As religiões e o proselitismo

Nada tenho contra os crentes e tudo contra as crenças, sobretudo quando os fiéis querem impor aos outros a sua fé e, muito especialmente, se recorrem à violência.

O ateísmo também merece igual censura se for sectário e violento. As guerras santas são devastadoras e a Europa tem longa tradição nesse desvario. Por mais que a componente económica influencie os conflitos, é o ódio religioso que aparece como o mais violento detonador de guerras.

Que raio de deuses inventaram os homens que precisam de religiões como agências de promoção e instrumento de coação?

A laicidade é a vacina que interessa a crentes de todas as religiões não dominantes, no espaço em que se inserem, bem como a todos os não crentes, e não pode ser descurada.

É tão perverso um Estado ateu como um confessional. O Estado deve ser neutro e evitar intrometer-se na vida das associações cuja liberdade lhe cabe respeitar e defender. Só o código penal deve limitar a demência do proselitismo e a violência dos prosélitos.

Não posso deixar de recordar Voltaire no leito da morte, a quem, como era hábito, para terem o troféu «converteu-se na hora da morte», pretendiam que «negasse o Diabo», ao que respondeu com fina ironia: «Não é o momento apropriado para criar inimigos».

Mais sarcástico, Christopher Hitchens, influente escritor e jornalista britânico, autor do livro «Deus não é grande», quando soube que, na sequência do cancro que o consumia, se faziam apostas na NET sobre se se converteria antes de morrer, declarou: «se me converter é porque acho preferível que morra um crente do que um ateu».

22 de Junho, 2020 Carlos Esperança

Cuidadores de Almas – Cogitações de um ateu

Não sei como se sentem os protetores de embriões, óvulos e células correlativas, quando uma alma por erro de navegação ou capricho da natureza se infiltra num feto estacionado fora do parque, em sítio proibido.

Refiro-me às gravidezes ectópicas. Trata-se de asneira de Deus ou produto do acaso, mas, para quem tudo o que de bom sucede é obra de Deus, o mal é fruto do Diabo, deve ser um dilema que perturba o entendimento e consome os neurónios.

Para os pios, a ejaculação é um genocídio e o aborto uma alma que se desperdiça. Só assim se percebe a sanha com que os protetores das almas encaram o sexo e a irritação que lhes causa a reprodução medicamente assistida.

Há neste negócio espiritual obscuros interesses materiais e dilemas metafísicos.

Dos caminhos rurais abalaram as caixas de esmolas das alminhas do Purgatório e, lentamente, vão acabando as missas de sufrágio e os lucrativos trintários, dinheiro para antecipar a vaga no veículo celeste que liga(va) o Purgatório ao Paraíso.

As almas estão à guarda de Deus, que as manda em correio azul aos espermatozoides capazes de atingir os óvulos. Não sei se envia várias para a hipótese de falharem o alvo ou se apenas uma, para não irritar os padres.

Após a morte, a alma viaja para os destinos do costume: Purgatório, Inferno ou Paraíso, pois o Limbo, sem interesse comercial, foi extinto por Bento 16. Só não percebo a obsessão dos padres com a alma dos que se desinteressam do seu destino e desprezam o Paraíso.

Consumidos pelo proselitismo, deve ser a vocação totalitária que os alimenta.