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16 de Fevereiro, 2022 João Monteiro

Deus aceita esmolas também por Multibanco

O santuário de Fátima instalou terminais de pagamento Multibanco para receber donativos e esmolas, segundo noticiaram a revista Sábado e outras publicações (ver aqui). O terminal permite colocar o valor do donativo e fazer a transferências por contactless através do cartão e smartphone.

A diocese justifica que esta medida pretende “servir melhor os peregrinos”, nós consideramos que serve melhor os interesses e os cofres da Igreja. Isto é daquelas manipulações básicas em que alguém faz algo em interesse próprio, mas justifica que é para benefício de terceiros, para ter melhor aceitação.

Talvez a Igreja devesse seguir o conselho que Jesus, alegadamente, deu ao jovem que lhe perguntou o que mais poderia fazer: «Jesus disse a ele: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. Ao ouvir essa palavra, o jovem afastou-se pesaroso, pois era dono de muitas riquezas.» (Mat, 19: 21-22). Assim é também a Igreja, apregoa o voto de pobreza mas dona de muitas riquezas não está disposta a abdicar das mesmas. Hipocrisia.

Imagem do Reddit
12 de Fevereiro, 2022 Carlos Esperança

A laicidade e a liberdade religiosa


A laicidade é uma exigência da liberdade religiosa, condição para que todos possam ter a sua crença, descrença ou anti-crença. Todos somos ateus em relação aos deuses dos outros, e os ateus só o são em relação a mais um.

Numa sociedade democrática todos os crentes devem ver defendido o direito à fé que perfilham e aceitar iguais direitos aos fregueses de outra fé ou de nenhuma. O Estado só pode cumprir cabalmente a função que lhe cabe se for escrupuloso na neutralidade que deve assumir, se ao Estado estiver vedado o direito de exercer qualquer poder religioso e às Igrejas o exercício de qualquer poder político.

A França, tal como Portugal, depois do 25 de Abril, garante a liberdade religiosa como direito constitucional. Quem conhece a história sangrenta das lutas religiosas na Europa, sabe que a paz só foi possível com a separação do Estado e Igrejas e a garantia da neutralidade religiosa dos Estados. A sua longa história de violência religiosa levou a França a adotar o forte compromisso com a manutenção de um setor público totalmente secular.

A lei de 9 de dezembro de 1905, em vigor, que aboliu a Concordata napoleónica e repôs a herança iluminista, determina:

Artigo 1º – A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos;

Artigo 2º – A República não reconhece nem contrata nem subvenciona qualquer culto.

Em 1905, a neutralidade religiosa imposta contra a vontade da Igreja católica, revelou-se de grande utilidade quando, além dos protestantes, muito minoritários, a concorrência era insignificante.

Hoje, perante religiões hostis ao ethos civilizacional europeu, herança do Renascimento, Reforma e Iluminismo, a Europa só pode preservar o legado democrático da Revolução Francesa e conter o proselitismo belicista de crenças totalitárias que a ameaçam, com as exigências da laicidade, e tratar os desmandos religiosos como casos de polícia.

Não foi por acaso que Emmanuel Macron, a propósito do 5.º aniversário dos atentados contra o Charlie Hebdo, nos tradicionais votos à Imprensa, declarou a partir do Palácio do Eliseu: «É importante que o nosso país não ceda a esta lapidação e à ordem moral, e que continuemos a criticar todas as formas políticas e todas as religiões. Somos um país onde a liberdade de blasfémia existe e queremos continuar a sê-lo». *

Em Portugal o anacrónico delito ‘blasfémia’, de sabor medieval, ainda existe no Código Penal. O bom-senso dos juízes privilegia a liberdade de expressão, mas é tempo de o abolir.
* Courrier Internacional n.º 288, fevereiro de 2020, pág. 8.

29 de Janeiro, 2022 Carlos Esperança

O sangue de João Paulo II, a publicidade e a santidade

Em janeiro de 2014, os media anunciaram o roubo «de valor incalculável» de uma relíquia. A polícia italiana lançou uma formidável operação, com a ajuda de cães treinados, para encontrar o frasco roubado com sangue de João Paulo II, com uma cruz de uma igreja medieval.

Só havia, em todo o mundo, três frascos com sangue de João Paulo II, papa a canonizar em abril desse ano, momento em que a raridade da relíquia atingiria valores máximos. A imprensa foi omissa quanto ao treino dos cães que ajudaram a polícia, sem dizer se eram adestrados a descobrir frascos, sangue ou cruzes. Esperava-se que a relíquia, tão valiosa, fosse recuperada das mãos dos ladrões. Outros precisavam dela para as rotas do turismo pio junto de um amplo recipiente para o óbolo, sem correrem riscos.

Que morbidez é essa que fez sangrar um papa para alimentar o mercado das relíquias? Se a moleza da fé embota a razão, por que motivo não lhe tiraram uma dose maior para baixar o preço? Na bolsa da fé, como na de outros valores, a escassez está na base da subida dos preços, mas, tratando-se de um bem intangível, a canonização não foi alheia à valorização da relíquia.

João Paulo II teve como profissão e estado civil a santidade em vida. Quanto à bondade, dividem-se as opiniões. Em relação ao negócio sinto uma verdadeira repugnância, pela exploração de um órgão do morto e fico a pensar, no meu pensamento de incréu, quanto valerão as vísceras e outros órgãos se, à semelhança do sangue, lhos furtaram à sorrelfa para alimentarem a devoção necrófila dos que julgam que a visita a uma relíquia conduz o peregrino ao Paraíso.

É preciso acreditar muito na santidade e duvidar ainda mais da inteligência.

Apostila – Ignoro se o frasco de sangue foi recuperado.

8 de Janeiro, 2022 Carlos Esperança

Deus está em parte incerta

Deus, cansado dos disparates que fez, das maldades que praticou ou envergonhado dos preconceitos, emigrou para lugar incerto e, depois da invenção da escrita, nunca mais deu sinais de vida. A Revolução Francesa criou-lhe um habitat adverso, o sufrágio universal reduziu-o a bagatela, e, por não se ter inscrito nos cadernos eleitorais, passou a valer menos do que qualquer eleitor.

Os truques que fazia, as diversões com que embasbacava os primitivos, contrariando as leis da Física, os milagres que exibia para estupefazer os terráqueos, tudo isso foi sendo revelado pela ciência enquanto o progresso concebeu espaços de liberdade que um deus arrogante não suporta. Tal como o patrão que arruinou a fábrica, fugiu, alheio à sorte dos servidores, e nunca mais foi visto nem julgado.

Os empregados mais devotos, os clientes mais timoratos e os oportunistas mais afoitos continuaram a garantir a sua existência e a ameaçar com os castigos de que ele é capaz. Desejam fazer indigentes mentais, como os portugueses que esperam D. Sebastião, ou aliciar oportunistas com ilusões garantidas e ameaças assustadoras.

A excomunhão e a fatwa são duas armas carregadas de ódio; o Inferno é ainda o destino com que os clérigos aturdem os incréus; a penitência e a oração são as penas suaves, quando os meios mais expeditos são interditos; a lapidação, a fogueira, a decapitação, a amputação de membros, a deflagração bombista e outras formas de justiça, despachadas a mando do clero impetuoso, mantêm-se em vigor para deleite divino.

Deus sempre se imiscuiu nos processos eleitorais. Em países democráticos faz pender o prato para o lado pior, nos outros vai entravando as eleições com o argumento de que a lei divina não é passível de juízo humano. Há suspeitas de que Deus visitou os EUA, antes da eleição de Bush, passa largas épocas no Médio Oriente, percorre os países pobres de África e anda em campanha por algumas repúblicas da antiga URSS. Onde lhe cheirar a guerra, Deus não falta, para dilatar a fé.

O método destinado à multiplicação da espécie humana saiu-lhe mal – a reprodução por estaca. Usou um ramo ‘costela’ de um indivíduo para o duplicar. Os humanos acharam outro método mais fácil e deleitoso. Dizem os beatos que é obsceno, só aceitável para fazer filhos e não para folgar. Pensa-se que Deus tinha este método reservado para o fabrico de tratores mas os humanos apropriaram-se dele muito antes de os tratores terem sido inventados, sem ajuda divina.

29 de Dezembro, 2021 Carlos Esperança

A laicidade é a vacina contra as guerras religiosas – 1

Em França, o clero de várias religiões agita as vestes talares e envenena os media contra a laicidade.

Acusam o PR de radicalizar o laicismo, como se a neutralidade pudesse radicalizar-se. O laicismo radical é uma impossibilidade, espécie de abstenção violenta. A condescendência de Mácron é que é criticável, e tem sofrido ameaças islâmicas.

A laicidade desagrada às religiões que querem viver à sombra do Estado e interferir nas leis, e usam um artifício semântico para a contestarem. Dizem que aceitam a laicidade, mas são contra o laicismo, como se a primeira não fosse a mera aplicação da filosofia em que se baseia –, o laicismo.

A França, aliás, toda a Europa, está a ser fustigada pela evangelização de religiões que pretendem impor os seus credos e os seus modelos tradicionais, éticos, gastronómicos e jurídicos, das crenças que transportam. Exigem o comunitarismo para se defenderem do cosmopolitismo e combatem a laicidade para preservarem a identidade, tantas vezes as tradições que discriminam a mulher e impõem normas contra os Direitos Humanos.

Contrariamente às queixas do clero das várias religiões, a liberdade religiosa existe em França, sem discriminações. As provocações pias, com suspensão da circulação pública para as orações diárias, a exibição identitária, a misoginia comunitarista e o desacato às leis da República não merecem contemplação. Há ruas entupidas cinco vezes ao dia.

Continua a ser uma surpresa ver religiões que se odeiam unidas no combate à laicidade, na incapacidade de abdicarem do proselitismo e na determinação de imporem os seus dogmas e tradições à sociedade secular. Não suportam a indiferença do Estado.

Os crimes sectários com motivações religiosas são sempre atribuídos a minorias que se fanatizaram e nunca à obediência aos disparates do seu Deus. O combate pela laicidade é visto como doença, acusado de fobia, paradoxalmente mais por pessoas de esquerda do que de direita, estas intrinsecamente mais xenófobas.

E não se pense que a tara atinge apenas os monoteísmos, que os filhos de Abraão são os mais perversos nesta defesa assassina do seu Deus, criado para a explicação por defeito dos medos, ansiedade e ignorância do desconhecido.

A comunidade cristã da Índia sofreu este ano uma série de ataques durante o Natal, com estátuas de Jesus Cristo a serem destruídas, celebrações interrompidas e imagens do Pai Natal queimadas.
Os cristãos dizem não ser culpa do Governo, mas o Governo indiano mandou congelar contas das Missionárias da Caridade. Estranha coincidência, onde as castas permanecem, a desonra maior é o casamento de uma viúva e a violência contra os muçulmanos um hábito que recrudesceu com o nacionalismo hindu.

Os budistas, contemplativos, que se apiedam dos animais ínfimos, odeiam os Rohingya, minoria muçulmana apátrida de Mianmar, antiga Birmânia, alvos de genocídio, e levam a crueldade a limites impensáveis, através dos militares budistas que os monges apoiam.

George Sand, a notável escritora francesa que teve de se esconder sob um pseudónimo masculino, lançou um dia esta imprecação: «Há cinquenta anos que trago em mim uma maldição que hei de repetir até à hora derradeira, maldita, maldita, três vezes maldita seja a intromissão do padre na família». Cito de memória a frase, lida há sessenta anos, para a acompanhar na imprecação à ingerência das religiões nos aparelhos de Estado.

Só a laicidade nos pode salvar do proselitismo assassino das religiões. Não há liberdade religiosa sem democracia, nem democracias confessionais. A Europa só pode defender o seu ethos civilizacional da demência pia que a ameaça se for vigorosa na laicidade.

A violência religiosa crepita da Turquia ao Egito, do Iémen à Nigéria, do Afeganistão à Arábia Saudita, da Índia ao Uganda, por todo o mundo, enquanto os media dos países democráticos insistem que as religiões promovem a paz. Talvez nos cemitérios!

Lembremo-nos que somos todos infiéis em relação aos deuses dos outros. Os ateus só o são em relação a mais um, e eu não gosto de decapitações, chicotadas e lapidações, que extasiam os deuses dos selvagens devotos que as defendem e aplicam.

12 de Dezembro, 2021 Carlos Esperança

A Universidade de Coimbra e a missa da Imaculada

Por Carlos Esperança

A Universidade de Coimbra preza as tradições, e, à semelhança de novas universidades, é capaz de transformar em tradição um despautério do ano anterior. Sendo a escola onde os alunos se reveem, é natural que a queima das fitas se transforme, já no próximo ano, à semelhança do atual, na gloriosa tradição da transmissão Covid, como acontece com a divertida tradição do roubo e vandalização dos carros de compras dos supermercados.


Há, no entanto, uma tradição instituída pelos últimos reitores, Magníficos por profissão, que afronta o Estado laico, convidarem professores, alunos e funcionários para a missa. O reitor não é o almuadem romano cujas funções o transformem em sacristão, capaz de conduzir a caldeirinha e o hissope atrás do capelão.

O Magnífico Reitor pode, como crente, deliciar-se com a missa e a hóstia diariamente, mas nunca invocando as funções que exerce e que honrados docentes contestam. Aliás, o Professor Vital Moreira já sugeriu a criação da associação de professores católicos que, essa sim, teria legitimidade para convidar professores, alunos e funcionários para os atos pios que entendesse, da missa ao mês de Maria, das novenas ao terço diário.

O que o Magnífico Reitor não pode, nessa qualidade, cuja neutralidade religiosa é uma questão de decência, civismo e legalidade, é convidar quem quer que seja, para atos de culto de uma religião do foro íntimo de cada cidadão.

O Reitor entende que na [sua] Universidade, onde a tradição e os dinheiros públicos mantêm um capelão, deve ser ele e o capelão a convidarem os professores, alunos e funcionários, para a missa de homenagem à padroeira da Universidade – a Imaculada Conceição –, que terá lugar a 8 de dezembro, pelas 12H00, na capela de S. Miguel.

Que o capelão, no exercício das funções, convide os créus a assistir a uma cerimónia da sua religião, compreende-se. Permite, aliás, ver a magnífica capela, uma relíquia da arte sacra, e, no caso dos devotos, venerarem um dos numerosos avatares da mãe de Jesus que o Papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, tornou dogmaticamente concebida sem Pecado Original, uma velha crença do século XVI, adotada pela UC em 1646.

É inaceitável que a mais alta entidade de uma Universidade se comporte como o diretor de uma escola confessional ou o mullah de uma madraça. Quem preside ao areópago da Ciência e das Humanidades não pode estimular as coisas pias, sobretudo num país laico onde a separação das Igrejas e do Estado é constitucionalmente obrigatória.

Foi esta mentalidade que levou uma beata professora, quando vice-reitora, a propor a recriação da Faculdade de Teologia, em Coimbra, o que não conseguiu porque o bom senso e a formação cívica do corpo docente a inviabilizaram.

Uma Faculdade de Teologia teria certamente licenciaturas em islamismo, cristianismo e judaísmo, bacharelatos em hinduísmo, xintoísmo e budismo, graduações em lançamento de búzios, mestrados em tarô e bruxaria, e doutoramentos em esoterismo.

O Reitor traiu a ética. A Universidade devia ser o último reduto na defesa da laicidade e não a vanguarda do convite à genuflexão pia, à prática litúrgica e à devoção.

28 de Novembro, 2021 Administrador

Nova imagem completa

Com o logótipo final do Diário de uns Ateus, fica terminada a renovação da imagem da presença da AAP – Associação Ateísta Portuguesa nos meios digitais. Tal como aconteceu no último anúncio nas nossas redes sociais, tal não poderia deixar de ser a um domingo… 🙏 🙏 🙏 🙏 🙏

Ainda faltam acertar alguns detalhes, mas o trabalho principal está feito! Esperamos que seja do vosso agrado.

A AAP agradece à OctetStream pela migração, alojamento e programação dos seus sítios e ainda à Acidesign pelo aconselhamento técnico no desenho geral de todos os elementos.

19 de Novembro, 2021 João Monteiro

Livro: “Roma, temos um problema”

A propósito do texto publicado ontem aqui no blogue, e dada a atualidade do tema, parece-nos pertinente sugerir a leitura do livro “Roma, temos um problema”, sobre a história dos abusos sexuais de menores (e não só) no seio da Igreja e como a instituição lidou com esses acontecimentos ao longo do tempo. O livro foi recentemente publicado pela editora Tinta da China.

A SIC Notícias abordou esse tema no seu website, e a reportagem pode ser lida aqui.

18 de Novembro, 2021 João Monteiro

O abuso sexual de menores e a Igreja Católica

O abuso sexual de menores é um problema prevalente na sociedade e que merece o maior repúdio por parte dos cidadãos, porque afeta crianças (deixando sequelas físicas e psicológicas) e porque é perpetrado por pessoas próximas e da confiança daquelas (familiares, vizinhos e padres, por exemplo). Antes de avançar, clarifiquemos os termos: o abuso sexual de menores é o ato que se deve condenar e que está tipificado como crime; a pedofilia é considerada uma parafilia e não é crime (porque nem todos os pedófilos cometem abuso sexual de menores).

Abusos sexuais em vários países europeus

A Igreja, enquanto instituição, há muito que se debate com este problema, embora só recentemente, e relutantemente, tenha assumido a existência de casos de abusos no seu seio – apesar deste passo, a instituição continua a esconder, a negar e a desvalorizar as denúncias que amiúde vêm a público.

Na Irlanda, “desde 2002, vários relatórios e investigações evidenciaram mais de 15 mil casos de abuso sexual cometidos entre as décadas de 1960 e 90, (…) mas as desculpas do Papa Francisco só chegaram em 2018”, refere uma notícia da Euronews. A Igreja Católica na Alemanha solicitou um relatório independente que concluiu que “314 menores sofreram violência sexual por parte de 202 membros do clero e leigos entre 1975 e 2018 na diocese alemã de Colónia”, refere o Diário de Notícias.

Numa revisão recente ao seu Código de Direito Canónico, a Igreja Católica passou a enquadrar o crime de abuso sexual de menores no capítulo dos delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade do homem.

O caso recente da França

Com isto, chegamos às notícias da atualidade. Na sequência do escândalo dos abusos sexuais praticados pelo Padre Bernard Preynat, em Lyon, que levou à demissão do arcebispo dessa cidade, o cardeal Philippe Barbarin, foi criada a Comissão independente sobre o Abuso Sexual na Igreja Francesa, presidida por Jean-Marc Sauvé, para analisar o que se passou nesse país. Ao longo de dois anos e meio de trabalho, a referida comissão analisou arquivos (igreja católica, polícia, justiça e imprensa) e testemunhos de pessoas, tendo finalizado o trabalho com um relatório com cerca de 2500 páginas, em que dá uma visão quantificativa do fenómeno e apresenta 45 soluções. As conclusões do relatório são demolidoras: nos últimos 70 anos, isto é, de 1950 até ao presente, terão existido 115.000 padres ou religiosos em França, dos quais cerca de 3000 terão sido abusadores de crianças – uma estimativa por baixo. No mesmo período de tempo, mais de 330 mil crianças terão sido abusadas.

E em Portugal?

Em Portugal as autoridades eclesiásticas têm fechado os olhos, afirmando não ter dados estatísticos ou dando a entender que, a haver casos em Portugal, eles seriam residuais, como noticiou o jornal Público em Maio deste ano. Em outubro, no seguimento da apresentação do relatório francês, o jornal Público voltou a contactar alguns padres e a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), entidade que afiançou que se estaria a preparar a organização de uma comissão para analisar os casos em território nacional e elaborar também um mapa estatístico da distribuição de casos. Ao jornal Expresso, a CEP disse também estar a planear organizar ações de formação e a elaboração de um manual de boas práticas.

A história das denúncias de abusos sexuais por membros da Igreja nas últimas décadas mostra que os mesmos só foram levados a sério após denúncias pelos meios de comunicação social e por pressão da sociedade. Perante a passividade do clero português em dar passos resolutos, noticiou o jornal Público que católicos pedem investigação aos abusos sexuais pelo clero português nos últimos 50 anos.

Por incrível que pareça, e certamente pela primeira vez, vejo-me a concordar com o padre conservador Gonçalo Portocarrero de Almada (imagine-se!!) quando ele afirma que “é absolutamente necessário que se conheça toda a verdade e que a Igreja seja exemplar no exercício da justiça e da caridade para com as crianças, que são as principais vítimas deste terrível flagelo (…) Também sempre disse que os abusadores e encobridores, sejam clérigos ou leigos, bem como os que foram cúmplices destes crimes, por conivência ou omissão, devem sofrer todas as consequências legais e morais desses seus actos. Que a CEP siga estas palavras.

Conclusão

A Igreja pode e deve organizar as comissões que bem entender dentro do âmbito do seu funcionamento institucional. Porém, para haver uma comissão verdadeiramente independente, a mesma não deve ter membros do clero que possam condicionar ou influenciar o resultado das averiguações. Além disso, estamos a falar de uma situação grave, e até de índole criminal, que é o abuso sexual de menores, pelo que a investigação a estes potenciais crimes deve envolver as autoridades oficiais, nomeadamente a investigação por parte da polícia judiciária e do ministério público.

Fonte: Pixabay

Fontes:

Depois do silêncio”. Como a Irlanda se reergue dos casos de pedofilia – Euronews 2-12-2020

Mais de 300 crianças abusadas sexualmente por membros do clero na Alemanha. “A maior crise que a Igreja já viveu” – Diário de Notícias 18-3-2021

Abusos sexuais na Igreja portuguesa: um ano depois, 4 queixas e apenas uma investigação aberta – Público 29-5-2021

Papa determina que pedofilia é crime “contra a dignidade” – Euronews 1-6-2021

Cerca de três mil pedófilos na Igreja Católica francesa desde 1950 – Diário de Notícias 3-10-2021

330 mil crianças foram vítimas de pedofilia na Igreja Católica francesa – Euronews 5-10-2021

Plus de 300 000 victimes en 70 ans: les chiffres chocs de la pédophilie dans l’Eglise – L’Express 5-10-2021

Igreja Católica portuguesa admite investigação de casos de pedofilia desde que não seja limitada ao clero – Público 9-10-2021

Pedofilia na Igreja: bispos avançam com grupo coordenador nacional das comissões diocesanas de proteção de menores – Expresso 12-10-2021

Católicos pedem investigação aos abusos sexuais cometidos pelo clero português nos últimos 50 anos – Público 8-11-2021

Pedofilia na Igreja em Portugal: só a verdade nos faz livres – Observador 16-10-2021

16 de Novembro, 2021 Carlos Esperança

A democracia e a laicidade

Independentemente do apuramento das razões que estiveram na origem do atentado que, no dia 15, se frustrou em Liverpool, Reino Unido, e se limitou a trucidar o terrorista que seguia no táxi, enquanto o condutor lhe fechou as portas e fugiu do veículo, há fundadas suspeitas de que o alvo do facínora fosse a catedral.

Penso que a luta contra o racismo não se faz com a omissão da etnia, origem ou religião do criminoso, sobretudo se a última está na origem da crueldade de quem julga ter uma eternidade de delícias à custa da própria imolação e do sofrimento dos infiéis.

Ignorar o regresso das guerras religiosas será politicamente correto, mas é suicida. Não importa se este foi mais um caso de fanatismo religioso pois não faltam casos recentes e preocupações quotidianas com imposição de preconceitos e exigências pias que minam a civilização e a democracia.

Há pessoas para quem falar de laicismo é heresia, como se pudesse combater-se a deriva criminosa de determinada crença sem que o Estado democrático tenha a determinação de impor a separação às Igrejas e combater as crenças que apelem à violência. Não há democracia sem que os cidadãos sejam livres de ter qualquer crença, descrença ou anti-crença. É tão legítimo crer que Deus criou o Homem como ter sido este a criar aquele.

Há, aliás, um direito que os intolerantes não respeitam, o de descreditar, ridicularizar e combater, pela palavra, desenho ou gesto, qualquer religião ou o ateísmo. Preferem as bombas. Sagrada é a Declaração Universal dos Direito Humanos, e ímpia a sua recusa.

A Europa do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução Francesa não pode ajoelhar-se perante crenças que, no passado, a ensanguentaram e, no presente, a põem a rastejar, com reiteradas cedências e uma atmosfera cada vez mais carregada de medo.

Temos de nos interrogar sobre a licitude da resistência ao quadro civilizacional europeu, das exigências que humilhem um dos sexos, neguem a igualdade de direitos perante a lei, a supremacia da democracia sobre o tribalismo, a liberdade sobre o comunitarismo.

As regras de higiene, as vacinas e a alfabetização não se discutem, impõem-se quando o interesse coletivo, democraticamente sufragado, as legitimam. A vontade dos deuses, há tantos, não pode sobrepor-se à dos homens.

Não podemos viver sob uma atmosfera de medo ou permitir que a pretensa lei de Deus se sobreponha às leis que a democracia liberal aperfeiçoou, depois de várias guerras, de muito sangue e demasiadas iniquidades.

O totalitarismo religioso não é mais benigno do que o laico, e é bem mais difícil de ser erradicado, mas a opinião pública não pode amolecer sob o peso de alegadas tradições e costumes tribais.

Já nos bastam os livros sacralizados das ideias dos patriarcas tribais da Idade do Bronze, e que urge desmascarar.