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27 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Era uma vez…

«Era uma vez uma cidadezinha francesa onde os moradores viviam em tranquilidade. Quem vivia nessa cidadezinha sabia o que se esperava de si, conhecia o seu lugar no esquema das coisas e, se por acaso se esquecesse, alguém lho lembraria. Assim, nos bons e nos maus momentos, na alegria e na tristeza, os moradores mantinham as suas tradições.»

Assim começa o delicioso filme Chocolate de Lass Hallström, uma adaptação do (mais substancial) romance de Joanne Harris. Um filme aparentemente inócuo e até insípido, não obstante o omnipresente tema do filme, aqui símbolo de tudo o que nos dá prazer e felicidade. De facto um filme metaforicamente muito inteligente, magistralmente interpretado por Juliette Binoche, um conseguido retrato da hipocrisia e do falso moralismo tão frequentemente alvos de críticas aqui neste blog. Simultaneamente uma lição de tolerância, pueril como o conto de fadas que tenta emular… realçado subtilmente pela excelente imagem de Roger Pratt e pela trilha sonora de Rachel Portman, que repete o feito alcançado em Regras da Vida (também dirigido por Hallström)!

A incluir no roteiro dos filmes recomendados pelo blog dos ateus. Dar-lhe-ia cinco estrelas não fora o final demasiado «e todos viveram felizes para sempre»…

27 de Outubro, 2004 Carlos Esperança

Europa laica

O Parlamento Europeu, eleito directamente por sufrágio universal dos países que compõem a União, deu hoje uma prova de independência perante um pequeno Estado que não é democrático nem faz parte da União – o Vaticano. Ao recusar um talibã da ICAR, com ideias sobre a família e a homossexualidade comuns ao Vaticano e aos Estados muçulmanos, o Parlamento defendeu o seu carácter laico e a independência face às religiões.

José Manuel Barroso, depois de ter assinado em Portugal a Concordata (uma vergonha nacional amplamente apoiada na Assembleia da República), depois de ter perdido a referência religiosa na Constituição Europeia pela qual se bateu com o denodo com que os crentes pretendem salvar a alma, tentou até ao fim a manutenção do comissário Rocco Buttiglione, o Ai Jesus de João Paulo II e de Berlusconi.

Só depois de perceber que o Parlamento Europeu rejeitaria a equipa de 24 comissários, enquanto o legado pontifício para as questões da família a integrasse, Barroso recuou, adiando a votação para poder preparar uma nova comissão.

A intransigência de José Manuel Barroso (entrada de durão, saída de sendeiro) deixou-o mais frágil e a Europa perdeu com isso. A única coisa boa foi a derrota do Vaticano, que tinha investido na manutenção do seu homem de mão, a quem resta agora fazer um exame de consciência antes de elevar aos altares o mártir Rocco Buttiglione.

27 de Outubro, 2004 Ricardo Alves

Os católicos são uma minoria

Os clericais argumentam com frequência que os católicos serão uma maioria sociológica esmagadora em Portugal, e que portanto teremos que aceitar a Concordata e o seu tratamento privilegiado para as instituições e práticas católicas, a postura reverente e acrítica dos media perante a superstição, e até as limitações aos direitos individuais defendidas pela doutrina católica e propugnadas por ilustres políticos conservadores e pelos Césares das Neves e Mários Pintos da nossa imprensa. Acontece que este raciocínio é politicamente inaceitável e que se baseia numa premissa sociológica errada.

É uma questão de princípio que os direitos individuais, a promoção da ciência e do espírito crítico e a igualdade dos cidadãos estejam acima das maiorias conjunturais. Fazem parte dos princípios básicos que devem enformar uma República laica. Mesmo que a convicção católica fosse maioritária, tal não deveria implicar direitos diferentes para a ICAR ou a preponderância da sua doutrina.

Além disso, a importância do catolicismo no comportamento da população portuguesa anda muito exagerada. Efectivamente, 84% dos residentes em Portugal declararam-se católicos nos Censos de 2001. No entanto, dois dias antes do momento desse censo (científico e rigoroso) do INE, a ICAR procedeu a uma contagem de cabeças nas missas. Apesar de bem preparada (através de uma campanha que incluiu cartazes) e apesar de não haver grandes dúvidas de que, do padre de paróquia ao Policarpo, todos têm interesse em inflacionar os números, a ICAR não reclamou mais do que 1933677 católicos praticantes (18.7% da população total) e 1065036 comungantes (10.3% da população total). Conclui-se portanto que, no máximo, um português em cada cinco será católico praticante, e um em cada dez será comungante. Eu sempre ouvi dizer que não há católicos não praticantes. E que sem o ritual teofágico (quase) não há prova de crença…

Convém acrescentar que uma em cada quatro crianças nasce hoje fora do casamento, que dois casamentos em cada cinco são efectuados apenas pelo registo civil e que há um divórcio por cada dois casamentos. Segundo a doutrina da ICAR, só se pode ter relações sexuais dentro do «matrimónio» (já sem falar em ter filhos!) e o casamento é um compromisso perante «Deus» e para toda a vida. Conforme se vê, cada vez menos portugueses seguem estes preceitos da ICAR.
27 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Direito ao contraditório

Diz o piedoso e temente a Deus Timóteo que o ateísmo é incompatível com a paz, a justiça e os direitos do homem já que estes são valores cristãos, acrescentando que qualquer ímpio que os defenda é necessariamente um crente inconsciente da benesse da fé.

Curiosamente não parece ser essa a opinião oficial da Igreja, inclusive a mais recente. Abordando neste primeiro post apenas os direitos humanos expresso desde já a minha preocupação pelo óbvio desvio dogmático apresentado pelo Timóteo. Temendo as consequências para a salvação da alma de tão ardoroso defensor e propagador da fé remeto-o aos ensinamentos da santa Igreja de Roma, alguns pronunciados com a inegável infalibilidade papal!

Dizia o Cardeal Renato Raffaele Martino aos 18 de Março de 2004 que «O itinerário histórico da tradição cristã dos direitos humanos não foi um itinerário pacífico.» Com este eufemismo quer o santo prelado referir-se às excomunhões sortidas dos seus proponentes, por exemplo, pela Bula In Eminente de Clemente XII, em 1738, 38 anos antes da Independência dos Estados Unidos e quando as ideias demoníacas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade começaram a infectar perigosamente a Europa.

«Com efeito, foram manifestadas por parte do Magistério da Igreja muitas reservas e condenações face ao afirmar-se dos direitos do homem após a Revolução francesa; mas estas reservas, repetidamente manifestadas por Pontífices, especialmente no século XIX, deviam-se ao facto de que tais direitos eram propostos e afirmados contra a liberdade da Igreja, numa perspectiva inspirada pelo liberalismo e pelo laicismo.» Este repetidamente devia de facto ser exaustiva e constantemente, nomeadamente pelo beato Pio IX, nas suas múltiplas encíclicas devotadas ao assunto, como as encíclicas Quanta Cura, Qui pluribus e Singulari quidem, o Syllabus errorum ou a alocução Maxima quidem, certamente desconhecidas pelo Timóteo.

Mas se quiser reflectir sobre infalibilidades mais actuais, relembro-lhe as palavras do Papa João Paulo II, que se queixou da «Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia», enaltecendo por oposição a união europeia de Carlos Magno já que «De facto a Europa, que não constituía uma unidade definitiva sob o ponto de vista geográfico, unicamente através da aceitação da fé cristã se tornou um continente, que ao longo dos séculos conseguiu difundir aqueles seus valores em quase todas as outras partes da terra, para o bem da humanidade», ou seja, exaltando os valores cristãos da Idade Média. Nos quais mesmo o mais ardoroso arroubo de fé consegue imaginar sequer uma caricatura de direitos humanos (para não falar em justiça e paz). O que seria expectável, já que o direito divino, o direito revelado nas sagradas Escrituras, nem uma única vez menciona quaisquer direitos dos execráveis homens (Cardeal Ratzinger dixit).

Ou seja, segundo a crítica de João Paulo II, a nova Carta Europeia assenta no ateísmo, decorrente da inexistência de sequer uma referência a Deus. Princípios ateístas que regeram todas as Declarações dos Direitos do Homem e congéneres, desde a Revolução Francesa (1789) até hoje, incluindo a da ONU (1948) bem como a da União Europeia actual. Portanto, a crítica de Sua Santidade atinge, implicitamente, todas as Declarações anteriores. Que concentram os «considerandos» na negação implícita da existência de Deus, Uno, Eterno e Triuno, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, conforme definido e resumido no primeiro artigo do Credo.

Assim, a Declaração dos Direitos do Homem e seus rebentos, seguindo os traços da sua antecessora de 1789, eliminando Deus, substituiu as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e a Caridade, pelo ideal ateu da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Recordemos ainda que para um cristão a vida na Terra, manchada indelevelmente pelo pecado original, deve ser um «vale de lágrimas», como recitam os créus na Salve Rainha e a paz sinónimo da vontade de Deus tal como afirmada por Gregório Nazianzeno «A vontade de Deus é a nossa paz»! Isto é, a pretensão de estabelecer um paraíso na Terra, assegurando a paz, a liberdade, a igualdade, a fraternidade, é uma heresia pelagiana alimentada no humanismo renascentista e no iluminismo ateísta, que pretende substituir Deus pelo homem!

27 de Outubro, 2004 Carlos Esperança

O Banco do Vaticano

Há em Roma um bairro de 44 hectares, recheado de monsenhores, cónegos, bispos e cardeais, com inúmeras freiras a fazerem o trabalho doméstico de tais dignitários, convencidas de que estão ao serviço de Deus. As vestes coloridas que acompanham a curvatura dos ventres dão um ar garrido ao bairro. O Papa é o patrão daquela malta, que passa revista às igrejas e se mostra aos inúmeros peregrinos que ali vão com o mesmo encantamento com que em crianças demandavam o circo.

O que nem todos sabem é que o Vaticano tem um poderoso Banco que sustenta a fé e alimenta o poder da Cúria romana. O dinheiro é o alimento espiritual do clero. Ao Papa é indiferente que as pessoas da Santíssima Trindade sejam três ou trezentas, mas não é insensível às cotações da Bolsa, ao preço do petróleo ou à subida dos juros.

Sabe-se que o Deus lá do sítio gosta de dinheiro, razão dos frequentes apelos do clero aos fregueses para que paguem a sustentação do culto e a divulgação da fé.

Mas o que poucos sabem é que o Vaticano faz parte das dez maiores praças financeiras de branqueamento de capitais. Calcula-se que seja o destino principal do equivalente a 55 mil milhões de dólares americanos de dinheiro sujo italiano. O Banco do Vaticano é um dos principais paraísos fiscais para o branqueamento do dinheiro sujo, muito à frente das Bahamas, Suíça e Liechtenstein, o que não admira pois o Paraíso é mesmo o seu principal negócio.

Talvez não fosse acaso o facto de ao Papa João Paulo I, poucos dias após ter anunciado um inquérito ao Banco, ter sido Deus servido de o chamar à sua divina presença.

Sabe-se como o Banco do Vaticano defende o ouro confiscado aos judeus, vítimas do holocausto, opondo-se a qualquer investigação que desmascare a sua conivência como receptador internacional de alto gabarito. É mais firme o Banco na defesa do dinheiro do que os padres na defesa da virgindade de Maria.

26 de Outubro, 2004 André Esteves

Faça Buu a Buttiglione

Se não concorda com a pasta que o comissário italiano indigitado recebeu das mãos de Durão Barroso, talvez lhe interesse assinar a seguinte petição:

Não a Buttiglione, Sim à igualdade de direitos!

O prazo é até amanhã à tarde, quando se irá proceder à votação da comissão no Parlamento Europeu.

Mexa-se!

26 de Outubro, 2004 jvasco

Foi em Maio, na Índia

Já se passaram alguns meses desde que a democracia mais populosa do mundo foi a votos. O partido de Sónia Gandhi (Congresso Nacional Indiano) ganhou as eleições com uma vitória expressiva. Sónia Gandhi renunciou ao cargo de primeira-ministra e Manmohan Singh assumiu o governo.

Porque é que relembro estes factos num blogue ateísta? Porque esta vitória foi importante para a causa do laicismo; da tolerância religiosa; para diminuir o risco de uma guerra que poderia chegar ao confronto nuclear, baseada em grande medida em motivos religiosos; para evitar que o sistema de castas (abordado neste artigo) continue a manter vivos os mecanismos de discriminação e intolerância; para que a superstição não continue a criar situações desumanas e intoleráveis.

É importante que não nos esqueçamos de que não são apenas as superstições cristãs e islâmicas que têm o seu lado obscurantista.

26 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Ainda o caso Buttiglione

Querer transformar o episódio Buttiglione numa disputa sobre liberdade de pensamento é um sofisma mal disfarçado. Porque Buttiglione já provou que o seu fundamentalismo católico não se restringe ao campo filosófico e que a sua vontade de legislar sobre «pecados» é bem real.

Como é indicado no artigo uma Ópera Bufa Italiana, no jornal The Economist, de que transcrevo, traduzo e comento (a negrito) um pequeno excerto.

«No entanto, quando Mr. Buttiglione reclama que está a ser perseguido pelos seus pensamentos e não pelas suas acções, está a ser desonesto. Ele é membro vitalício de uma organização conservadora, Comunhão e Libertação, conhecida por tentar trazer os valores religiosos para a vida política (obviamente contra a laicidade consagrada nos Estados Europeus). Depois de ter sido nomeado Ministro dos Assuntos Europeus em 2002, Mr Buttiglione causou admiração nos seus colegas com uma série de exigências que iam muito para além das suas competências. Em poucos dias solicitou a proibição legal da inseminação artificial, solicitou o financiamento estatal para estabelecimentos de ensino privados (católicos, claro) e o pagamento de verbas a mulheres que rejeitassem o aborto (e tornar mandatória terapia familiar nos casos em que o suborno não resultasse, tudo isto, claro, depois de tentar alterar, unfrutiferamente, a lei do aborto italiana

Ou seja, Buttiglione já deu provas suficientes de que, contrariamente ao que os seus indignados defensores bramem, vai fazer o possível e o impossível para transpor para o corpo da lei os dogmas anacrónicos da Igreja de Roma. Para obviar à evidente inadequação do piedoso senhor nas áreas direitos fundamentais, antidiscriminação e igualdade de oportunidades, Durão Barroso pretende retirar-lhe essas competências e transferi-las para um grupo de comissários presidido pelo nosso ex-primeiro ministro. Isto se amanhã o Parlamento Europeu não decidir democraticamente vetar uma Comissão Europeia que inclui numa pasta tão fundamental alguém com o perfil de Buttiglione.

26 de Outubro, 2004 Carlos Esperança

Santo Pereira (2)

A Mariana Pereira da Costa não deixou passar em claro as circunstâncias que levaram à abertura do processo de canonização do «Santo Pereira». Todavia, perante a onda de entusiasmo que varre a Pátria, vou retomar o assunto.

Não havia necessidade de adjudicar qualquer milagre ao beato D. Nuno, para ser elevado a santo, pois «Urbano II fez uma excepção para quem há mais de 200 anos era prestado culto e reconhecido, pelo povo, a santidade», excepção que D. José Policarpo, bispo e cardeal-patriarca de Lisboa, tinha já confirmado aplicar-se-lhe. Nuno Álvares Pereira renunciou, porém, à prerrogativa que o dispensava do milagre, para não ser acusado de favoritismo. Recusou a passagem administrativa. Iniciou-se no ramo dos milagres e logo logrou a cura do olho esquerdo de uma mulher de Ourém que o havia danificado com azeite fervente.

Assim, o intrépido guerreiro revelou-se um poderosos antídoto contra as queimaduras e vai passar por mérito próprio no exame de admissão à santidade, com provas de mérito irrefutáveis e a mesma indómita vontade de subir ao altares que o levou a desbaratar castelhanos em Aljubarrota.

Cadáver há 573 anos, em excelente estado de beatitude, só agora conseguiu a santidade para maior glória da Pátria, vaidade do clero e euforia dos créus. Durante séculos foi o terror das crianças de Castela que recusavam a sopa, agora passa a ser o orgulho dos portugueses e uma cunha sempre à mão para apanhar um bilhete de ida para o Céu na Agência de Turismo Celeste da ICAR.

Surpreende que os papas anteriores tenham apagado o beato Pereira, que as sucessivas levas de bispos e cardeais tenham esquecido um santo desta dimensão, que desde 1431 os devotos o tenham ignorado nas novenas e que os milhares de soldadores a quem caiu um pingo de solda num olho tenham recorrido àquelas horríveis obscenidades, em vez de dizerem «valha-me Santo Pereira», e recuperado a visão em vez de perderem a alma.

Foi preciso o olho clínico de JP II, para diagnosticar milagres e descobrir taumaturgos, para criar este grande santo. Teve várias nomeações no passado mas foi sempre preterido pela bajulação dos papas a Espanha e escrúpulos por alguns milhares de mortos e estropiados em Aljubarrota – minudências que lhe atrasaram a promoção.