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6 de Dezembro, 2004 Ricardo Alves

Outro milagre da ciência

A excisão do clitóris é uma prática hedionda, legitimada por determinadas culturas islâmicas africanas. Apenas uma indiferença de origem racista explica que os poderes públicos tolerem a realização desta e doutras mutilações genitais em bairros degradados às portas de Lisboa. A ideia de que os pais não são proprietários dos filhos, e de que portanto não podem retalhar os órgãos sexuais dos filhos a seu bel-prazer, ou ainda não se generalizou, ou detém-se numa (imaginária) «fronteira étnica».

Felizmente, estão em desenvolvimento técnicas médicas que permitem a recuperação do clitóris (ver notícia na «Pública» de Domingo). Como é sabido, grande parte do clitóris encontra-se escondido debaixo da pele, e a excisão geralmente afecta apenas a parte visível. A operação de «reparação» consiste em «puxar para cima» parte do clitóris. Três em cada quatro mulheres declaram que recuperam a sensibilidade.

Para quem duvidasse, esta é mais uma prova de que os únicos «milagres» são científicos, e de que até alguns crimes de fundamentalistas islâmicos podem ser reparados. Parabéns, portanto, ao médico francês Pierre Foldès, que não por acaso tem recebido ameaças de morte vindas de fanáticos religiosos.

6 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Sim à eutanásia

A morte é, como diz José Saramago, uma injustiça, inevitável, todavia, quando se cumpre o ciclo biológico ou acidentalmente se interrompe. Não raro, o fim é acompanhado por sofrimento indizível, pela degradação que ultrapassa todos os limites, por um desejo irreprimível de abreviar a angústia, a dor e a agonia. E sem a mais remota hipótese de se tornar reversível. É nestas circunstâncias que a morte por compaixão, a morte doce, precisa de um quadro legal que, evitando o crime, proteja a vontade reiterada do paciente.

É aqui que, mais uma vez, as Igrejas querem impor normas de conduta universais que apenas deviam obrigar os crentes. E, como de costume, com a mesma desonestidade intelectual com que a ICAR encara o aborto, a hipocrisia é o seu forte.

Claro que se desligam as máquinas nos hospitais, claro que a figura do «abafador», referida por Miguel Torga, é ancestral, claro que há sempre um médico sensato que ordena que cessem as manobras de reanimação, claro que há um momento em que o próprio e os que mais o amam pedem a morte que liberte, recusam os artifícios que prolongam o sofrimento. Mas a ICAR finge ignorância.

Há já vários países que encararam o problema e produziram legislação equilibrada. A Suíça é um deles, onde na última quarta-feira uma britânica com uma doença incurável morreu com ajuda médica em Zurique, depois de ter travado uma batalha legal em Inglaterra para se deslocar à Suíça, onde a lei permite a eutanásia.

É urgente que Portugal produza legislação que permita a morte com dignidade quando toda a esperança se apagou e o próprio recusa a vida.

5 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

O Papa e a Imaculada

À falta de outra ocupação, vários teólogos católicos estão reunidos, de 4 a 7 de Dezembro, na Universidade Pontifícia Lateranense no XXI Congresso Mariológico Mariano Internacional, organizado pela Academia Pontifícia Mariana Internacional.

O tema e os termos são bizarros para incréus: «Maria de Nazaré acolhe o Filho de Deus na história», mas a ICAR confiou a orientação destas discussões ao Cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, que preside ao Congresso em nome do Papa.

Há nesta maratona teológica dois objectivos, pelo menos, que constituem uma obsessão de JP2:

– Reafirmar a virgindade de Maria (uma mentira muitas vezes repetida…)

– Reabilitar o Papa Pio IX (autor do dogma da virgindade de Maria).

Pio IX, o último papa detentor de poder temporal, mandou fuzilar patriotas garibaldinos, construir os muros do gueto de Roma em 1850 e encorajou os padres a baptizarem em segredo crianças judias retiradas aos pais; condenou a separação da Igreja do Estado, excomungou os que se opuseram ao poder temporal dos papas, os liberais, os maçons, os socialistas e os comunistas. Enfim, foi um santíssimo patife – mesmo para um papa católico.

Pio IX era um anti-semita primário que chamava cães aos judeus e deixou marcas culturais que tiveram o seu epílogo no holocausto perpetrado por nazis e fascistas em que pereceram seis milhões de judeus.

João Paulo II, quiçá sensibilizado com a encíclica Sillabus errorum onde Pio IX afirma que a Igreja é «inconciliável com o progresso e a civilização», cismou na sua reabilitação. Começou por lhe confiar um milagre e fê-lo curar, sem intervenção cirúrgica, uma carmelita que fracturara uma rótula, a troco de duas novenas que a freira lhe dedicou. Depois, em face do prodígio, decidiu beatificá-lo. Já se fala na encomenda doutro milagre para ser canonizado. Mais um santo à altura da ICAR.

4 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

Apologia da abstinência

O padre Feytor Pinto, presidente da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde, durante o 18º Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, afirmou que «a Igreja não está suficientemente atenta ao problema da sexualidade e afectividade humana” e observou que existe algum «desconforto» nos sectores católicos em abordar estes temas. Não é preciso ser um conhecedor profundo da axiologia da Igreja Católica para concluir que não se trata apenas de «desconforto», mas sim de completa condenação de tudo o que esteja com uma sexualidade e afectividade carnais.

De acordo com o padre, este alheamento da ICAR levou a que os principais promotores de campanhas de luta contra a sida sejam organizações não-governamentais que defendam o uso do preservativo como única forma de combater o contágio pelo VIH.

«O drama é que quando as pessoas ouvem falar em sexo seguro pensam apenas na protecção exterior, com o uso do preservativo» e preferem «ignorar a necessidade de mudança dos comportamentos», declarou Feytor Pinto. «Em vez de contrariar os comportamentos, tenta-se eliminar as suas consequências», frisou, lastimando que os organismos de prevenção da sida não falem em abstinência sexual, monogamia ou fidelidade, preferindo não olhar à «prostituição dos valores» em que as relações vivem. Feytor Pinto não fez mais do que seguir as orientações do Vaticano, segundo as quais a epidemica é resultado de uma «imunodeficiência de valores morais e espirituais» e que esta doença não é mais do que uma «patologia do espírito» que deve ser combatida com o «ensino do respeito pela valores sagrados da vida e uma correcta prática sexual»

Nada de novo, então, se passa no seio da Igreja quanto ao combate contra a sida. Para a ICAR a única maneira de combater o vírus é ignorar a necessidade inerente ao ser humano de se relacionar sexualmente com o próximo, independentemente de procurar ou não um compromisso a longo prazo. A defesa da abstinência é contra-natura e é hipócrita.

É de uma irresponsabilidade brutal, assassina até, a posição da ICAR sobre a luta contra o vírus da sida. Estima-se que, actualmente, 36,1 milhões de pessoas estejam contagiadas. Em 2000, foram infectadas cerca de 5,3 milhões de pessoas, sendo 600 000 crianças.

Desde que a epidemia é conhecida, o vírus matou 21,8 milhões de pessoas.


Em 2003 3 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas com o VIH.

Calcula-se que 51% da população mundial infectada com VIH/SIDA (mais de 20 milhões) são mulheres e mais de 60% dos jovens seropositivos são mulheres.

Diariamente, ocorrem 16 000 novas infecções, 55% são mulheres.

E, perante estes dados, vemos uma das organizações que tem mais influência nas sociedades a propagandear que o preservativo não é um meio seguro para combater o contágio. Tudo em nome da manutenção de valores hipócritas que nem os próprios membros da hierarquia da ICAR seguem.

4 de Dezembro, 2004 Palmira Silva

O quadro negro do desenho inteligente

Apesar da razão e da ciência,
os maiores trunfos da humanidade,
condescende em ilusões e práticas mágicas
que reforçam o teu auto-engano,
e perder-te-às incondicionalmente!

Mefistófeles no Fausto de Goethe

Nas religiões em geral e no Catolicismo em particular, a dúvida deve ser evitada, enquanto a fé é nutrida e cultivada. A história de São Tomé é uma advertência contra a procura de confirmação experimental, de provas de «milagres» que contrariam as leis da natureza. É exaltada a fé sem restrições espúrias como sejam as evidências materiais e científicas.

Para defender a fé, o cristianismo destruiu bibliotecas, repositórios do conhecimento de civilizações «pagãs», queimou livros de ciências «profanas» em orgias de fé, deixando o mundo cristão mergulhado na ignorância, na superstição e no fanatismo. A Idade Média correspondeu a um período negro na História das civilizações Ocidentais, um período de obscurantismo, do qual o mundo cristão só saiu quando foi redescoberta a Cultura Greco-Romana. Uma Ciência, uma Arte e uma Filosofia novas começaram a despontar, sob os olhos aterrorizados da Religião que temia perder o seu domínio despótico e tirano, mantido pela força da espada, fogueira ou afins, durante séculos.

A disputa do cristianismo contra a Ciência pela posse da verdade é assim História antiga. No Ocidente, o embate mais mediático e conhecido foi o caso Galileu. Essa batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou Galileu a renegar as suas teses para não sofrer o destino de Giordano Bruno: ser imolado pelo fogo em nome da pureza e verdade da fé. Mas o futuro dessa disputa seria diferente: pouco a pouco, a religião perdeu a autoridade para explicar o mundo. Quando, no século XIX, Darwin lançou a sua teoria sobre a evolução das espécies, contra a criação divina, o fosso entre ciência e religião já era intransponível.

No post «Os Dinossauros de Deus» abordei o princípio antrópico. Este é devotado ao «Desenho Inteligente», DI, mais uma suposta arma final apresentada pelos crentes numa batalha que foi perdida no século XVII: a batalha para descrever a Natureza com base nas Escrituras ou em termos de causas finais (princípio teleológico) e causas eficientes.

Um dos fundadores do movimento DI foi o professor de direito da Universidade de Berkeley, Philip E. Johnson, autor do livro «Darwin on Trial», que se descreve como um cristão conservador criacionista, que acredita que o evolucionismo é incompatível com a crença num Deus omnipotente, criador do céu e da Terra e do Homem à sua imagem. Ou seja, o distinto jurista cunha a Evolução como uma filosofia (fundamentalista) ateísta e naturalista, e afirma que «Ser um cientista não é necessariamente uma vantagem, quando lidamos com um tópico tão abrangente como a evolução, que se entrelaça com muitas disciplinas científicas e também envolve os toques da filosofia.», ou seja, um juiz será, também necessariamente, o mais capacitado para opinar (negativamente) sobre evolução que um cientista! E estes deveriam esperar por autorização «superior» das instâncias religiosas antes de ousarem explicar algo que seja já alvo de uma explicação religiosa.

Claro que esta tentativa de afirmar os cientistas incapazes de descrever a Natureza, pelo facto de descartarem causas sobrenaturais e de desígnio insondável na explicação de fenómenos problemáticos para as religiões, não é muito convincente e assim o passo seguinte na defesa de um «arquitecto supremo» foi a arregimentação de cientistas para a causa.

Os dois cientistas mais activos no DI são Michael Behe, autor de «Darwin’s Black Box» (A Caixa Preta de Darwin), e William Dembski, autor de «Intelligent Design: The Bridge between Science and Theology» (Desenho Inteligente: A Ponte entre a Ciência e a Teologia). Dembski e Behe são membros do Discovery Institute, um instituto de «pesquisas» de Seattle patrocinado por fundações cristãs.

William Dembski é um matemático que alega poder provar que a vida e o universo não poderiam ter acontecido por acaso e por processos naturais e, como tal, são o resultado do projecto inteligente de Deus. Também afirma que «a solidez conceptual de uma teoria científica não pode sustentar-se distanciada de Cristo» o que ilustra a motivação (e solidez) das suas teses.

Já Michael Behe restringe-se aos “sistemas irredutivelmente complexos,” sistemas que não poderiam funcionar caso faltasse apenas uma das várias partes. “Sistemas irredutivelmente complexos… não podem evoluir de uma maneira Darwiniana,” afirma, porque a selecção natural opera na forma de pequenas mutações. Logo, para este autor, o desenho inteligente deve ser responsável por esses sistemas irredutivelmente complexos. Na realidade, alguns dos supostos sistemas complexos que Behe utiliza como argumento, por exemplo o flagellum bacteriano, já foram explicados, ou seja, o seu principal argumento é baseado não só na sua ignorância do trabalho de outros investigadores como na assunção que a Natureza é limitada pela imaginação de Behe.

As supostas «descobertas» destes cientistas não foram publicadas em qualquer revista ou editora científicas, apresentadas à comunidade científica ou sujeitas ao julgamento dos pares. Pelo contrário, a refutação das ideias disparatadas de Behe por um evolucionista (por acaso mencionado no livro de Behe como uma «testemunha» de defesa ) mereceu um artigo na Nature (apenas acessível a subscritores). E respostas de cientistas conhecidos e respeitados na comunidade científica, como Peter W. Atkins ou H. Allen Orr que recomendo. Assim como o artigo de Richard Dawkins sobre a indevida imiscuição da religião na ciência.

O conflito entre a visão mecanicista da Natureza e a visão teleológica que se delineou a partir do século XVI resolveu-se per se. A ciência afirmou-se e progrediu em parte porque os cientistas tentaram descrever os fenómenos naturais sem recurso a um propósito final. O Deus de Leibniz, cuja existência é perfeitamente demonstrável, que contém em si todas as verdades eternas e necessárias, tornou-se assim uma hipótese desnecessária para a ciência.

3 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

A escola deve ser laica

A obsessão das Igrejas pelo ensino não é mais do que a tentativa de recuperação de uma arma política para controlar as consciências, promover o proselitismo e exercer o poder. A ICAR conseguiu em Portugal uma preponderância que compromete a laicidade. A mais escandalosa concessão, na escalada meticulosa e metodicamente preparada, é a Universidade Católica, com direitos e regalias de que mais nenhuma universidade privada goza. São excessivos os estabelecimentos dominados pela ICAR, desde o ensino pré-escolar ao superior, sem descurar os numerosos lares que lhe servem de apoio. O poder religioso só tem sido limitado pelas dificuldades de recrutamento do clero, compensado por uma legião de prosélitos dispostos a servir a ICAR.

A tradição ancestral do monopólio das igrejas nacionais na educação pública rompeu-se com a separação da Escola e da Igreja, que se iniciou em finais do séc. XVIII e se prolongou até aos princípios do séc. XX, umas vezes de modo gradual, outras de forma violenta. Foi este percurso histórico que quebrou o monopólio religioso que as igrejas em geral, e a ICAR em particular, se esforçam por recuperar, sem esquecer o carácter patológico das madraças islâmicas.

A ideia da separação entre a Igreja e o Estado está intimamente ligada à história política europeia e não é, segundo hoje se propala, uma singularidade francesa. Começou na Inglaterra de John Locke, com a Carta sobre a Tolerância (1689) onde se pedia já que a Igreja fosse completamente separada do poder político, pedido formulado em latim (Epistola de Tolerantia no seu nome original latino) para que as barreiras linguísticas não limitassem a difusão da pretensão através de toda a cristandade. Antes, já John Locke empreendera a refutação do direito divino dos reis e do absolutismo régio.

A convicção de que a descrença conduzia à depravação do indivíduo e à ruína social era o argumento para legitimar a educação confessional, torná-la obrigatória e justificar a discriminação e perseguição dos que enjeitavam a autoridade eclesiástica. O progresso da humanidade está ligado à emancipação da tutela religiosa. A progressiva secularização do ensino e da assistência estão na base das modernas sociedades democráticas. É por isso que a ICAR trava uma luta desenfreada contra o laicismo com pressões intoleráveis sobre os governos dos países onde se instalou.

A separação da Igreja e do Estado, em França, comemora no próximo ano um século. Da Espanha à América latina os povos pretendem romper as grilhetas impostas pela ICAR. Cabe aos livres-pensadores ser solidários nessa luta de emancipação e combater a vocação totalitária que parece ter recidivado no cristianismo (não apenas na ICAR) por um estranho contágio da esquizofrenia islâmica.

Não há países livres onde o ensino e a saúde são monopólio da Igreja. Não há democracia onde esta domina o Estado. Não há felicidade onde os padres controlam a sociedade.

2 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

Regresso ao passado

Cristãos, muçulmanos e judeus juntaram-se em Doha, no Qatar, na defesa da «família tradicional» e aprovaram um documento, a «Declaração de Doha», onde se sublinha que «a família é a célula natural e essencial da sociedade», exortando que os governantes «promulguem e apliquem políticas que reforcem a estabilidade do casamento». Não se sabe é qual é o conceito exacto de família tradicional. Será aquela em que a mulher passa do jugo do pai para o do marido? Em que a mulher está confinada às lides da casa? Em que a principal utilidade da mulher é ter filhos e servir de saco de pancada do marido? Em que os filhos estão submetidos à vontade do pai? Isso é que são valores tradicionais, nada dessas tretas de igualdade e de direitos.

A «Declaração de Doha» sublinha a importância de «atender às normas religiosas e morais que contribuem para a estabilidade cultural e o progresso social», progresso esse que não se tem notado nos últimos tempos e que tem andado disfarçado de retrocesso na defesa de direitos, liberdades e garantias.

O cardeal Alfonso López Trujillo, presidente do Conselho Pontifício para a Família e representante do Vaticano neste evento, e que proferiu uma conferência sobre «A complementaridade do homem e da mulher: aproveitar os talentos de mães e pais» (especialmente os talentos culinários e parideiros de mães), afirmou que a família é uma instituição anterior ao Estado, defendendo que «nenhum governo tem o direito de mudar a definição de família ou de matrimónio». Ou seja, os Estados soberanos, como na Idade Média, têm de se submenter a conceitos não-jurídicos de matrimónio fundados em concepções morais e religiosas que não servem a nenhum Estado que se quer de Direito.

Não se ficando por aí, Trujillo declarou que «em todas as culturas e religiões há uma verdade presente: a família está baseada no matrimónio, o único lugar válido e apropriado para o amor conjugal». Não recebem, assim, a bênção todas as relações para-familiares como as uniões de facto que, actualmente, os ordenamentos têm vindo a reconhecer como situações dignas de tutela jurídica.

Parece que o regresso a uma família tradicional implica o regresso da mulher a um papel subalterno de cozinheira e parideira, ao desaparecimento de uma noção contratualista de casamento , à proibição do divórcio e à restauração de costumes tão interessantes como a poligamia e a lapidação feminina.

2 de Dezembro, 2004 Palmira Silva

Ainda o princípio antrópico, II: a posição «cientificamente correcta»

«Na sua versão «forte» o Princípio Antrópico diz o seguinte: O Universo é tal que:

1) Necessariamente leva ao aparecimento da Vida e da Vida inteligente;

2) Uma vez surgida a Vida inteligente, esta prosseguirá a sua evolução sem nunca desaparecer.

Dito de outra maneira: a Vida inteligente é como que um feto do Universo (implantado talvez por Deus) que se irá desenvolvendo de forma harmoniosa… E não há aborto, voluntário ou não, possível.

À primeira vista, esta tese não parece muito convincente. De facto sabemos que muitas espécies têm desaparecido (os dinossauros constituindo o caso mais espectacular). Os humanos, esses estariam condenados a não desaparecer…

Por um lado, se a Humanidade – a nossa Humanidadezinha – continuar com os pés na Terra, certamente que desaparecerá. Isto porque o Sol, fonte de vida, da energia e da nega-Entropia, é, como todas as estrelas, uma estrela condenada. Condenada a gastar o seu (abençoado) combustível nuclear até à exaustão.

Por outro lado, a Humanidade construiu armas poderosas- bombas nucleares capazes de levar a uma autodestruição. Por que é que tal não aconteceu, em particular nos anos quentes da guerra fria? Será que Kennedy e Kruchov ou Reagan e Bresnev tinham uma protecção (divina) que travava os seus instintos destruidores?

Mais uma vez aparece a pescadinha a querer meter o rabo na boca. Será pelo facto de haver um princípio teleológico que a Humanidade existe, ou será exactamente o contrário: porque a Humanidade existe inventou-se um princípio teleológico?

Em conclusão: a posição «cientificamente correcta» – a posição cc – parece continuar a ser a de Monod e Weinberg: somos fruto do acaso e da necessidade, nada mais há para além disso.

Naturalmente que todos temos o direito – e talvez o dever -, como Einstein, de nos deslumbrarmos, encantarmos, comovermos com o milagre do Universo e da Vida.

Haverá mesmo, talvez, irredutibilidade das questões de Gauguin (donde viemos, onde estamos, para onde vamos) a um tratamento estritamente científico. A razão poderá ter a ver com a impossibilidade que temos de responder a questões mais globais que se colocam na teoria. A questão do Nós e o Cosmos poderá ser uma questão meta-científica no sentido do teorema de Gödel. Por palavras simples: não se pode explicar tudo. Não pode haver teoria explicativa completa!

Termino com uma citação de Max Planck, o Físico dos Quanta, do fim do século XIX e do começo do século XX:

«A Ciência não pode resolver o mistério final da Natureza. Isto porque, em última análise, nós próprios somos parte do mistério que tentamos resolver»

Eu penso que Gödel não teria dito melhor!»

2 de Dezembro, 2004 Palmira Silva

Ainda o princípio antrópico, I: pescadinha de rabo na boca

Há uns dias tive oportunidade de escrever aqui a minha opinião sobre o Circulus In Demonstrando ou verdade de La Palice que dá pelo nome princípio antrópico, apresentada como uma alternativa deísta ao evolucionismo «ateu». Uns dias depois, em conversa com o presidente do CENTRA, o Centro Multidisciplinar de Astrofísica do Instituto Superior Técnico, Jorge Dias de Deus, um paradigma nacional em divulgação científica, pedi-lhe uma contribuição para o Diário Ateísta sobre esse e outros temas.

O Jorge informou-me que já tinha dissertado sobre o assunto, nos longínquos finais do século XX, quando todos pensávamos que a religião não seria sequer um parâmetro equacionável na descrição do «ser» do Universo, quando o Jorge afirmava que «a Evolução é uma das noções que, após grandes reacções de fundamentalismos vários, mais fortemente se enraizou na tradição científica», muito menos teria a evolução catastrófica para o progresso da Humanidade a que o dealbar do século XXI assistiu.

Assim, enquanto todos esperamos futuras contribuições, deixou-me com uma palestra que apresentou em Julho de 1998, no âmbito de uma iniciativa de divulgação científica, os V Cursos Internacionais de Verão de Cascais.

Palestra que, por ser demasiado extensa para transcrição na íntegra, partilho parcialmente em duas partes com os leitores do Diário Ateísta.

«Há um princípio, Princípio Antrópico, que pretende demonstrar que o número de civilizações inteligentes é necessariamente maior ou igual a um e, para os defensores mais extremistas do princípio, o número é exactamente igual a um. Trata-se efectivamente de uma tentativa de recuperar um sentido para o Mundo, através de um princípio teleológico, correspondendo a uma actualização das ideias de Teilhard de Chardin.

O Princípio Antrópico, na sua versão «fraca» diz que:

1) as forças da Natureza Têm as intensidades e alcances que têm:

2) as massas, cargas e outras características das partículas têm os valores que têm;

3) o Universo tem a idade que tem, de modo a permitir a existência e evolução da Vida (com base no carbono).

Em relação ao Universo, já vimos que a sua idade (na ordem de 1010 anos) é compatível com a evolução (cerca de 109 anos para que se chegue, por Evolução, à Vida Inteligente). Se fosse mais velho haveria menos estrelas a funcionar (teriam já gasto o seu combustível nuclear) e a probabilidade de se encontrar um Sol e uma Terra baixaria enormemente. Se fosse muito mais novo não teria havido tempo para o aparecimento de um Sol e de uma Terra, e não teria havido tempo para a evolução.

Quanto às massas das partículas, se a massa do electrão fosse 200 vezes maior do que é (se fosse igual à massa do muão) o átomo seria 200 vezes mais pequeno e nós seríamos igualmente 200 vezes mais pequenos! De facto, a situação é mais dramática do que isso: com átomos 200 vezes mais pequenos os electrões (de carga negativa) ficam dentro do campo dos protões (de carga positiva) do núcleo, sendo por estes capturados com a produção de neutrões e neutrinos (de carga zero). Os núcleos acabariam por ser instáveis e, por exemplo, as estrelas ficariam neutras, incapazes de produzir luz, que é uma pré-condição essencial para a vida. Dito de outra maneira: não haveria Sol!

Mas haverá, sim ou não, algo de misterioso nestas – chamemos-lhe assim – coincidências? É difícil de dizer onde é que está a boca e onde é que está o rabo da pescadinha: mas realmente parece um problema de pescadinha de rabo na boca. Não viveremos, talvez, no «melhor dos Mundos», mas temos de viver num Mundo onde possamos viver. Ou então não viveríamos.

Portanto, o Princípio Antrópico, nesta versão fraca, só serve para chamar a atenção para a necessidade de consistência entre as características da Vida inteligente conhecida, e as características do Mundo exterior. Em certa medida, o Princípio é tautológico. Por outro lado, nesta versão, não é de modo algum inconsistente com a evolução e o darwinismo. Limita-se a dizer: se eu existo têm que existir pré-condições para a minha existência.»

(continua)