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7 de Janeiro, 2005 Mariana de Oliveira

O peditório

Como já tinha sucedido em 2003, apareceu, esta semana, na caixa de correio de minha casa – e, parece, a todos os habitantes da freguesia, incluindo o Miguel Cardina – uma interessante missiva enviada pela paróquia de Santa Clara que reza o seguinte:

«Caro Paroquiano(a):

No início de mais um ano, venho lembrar o Contributo Paroquial (Côngrua). A nossa comunidade cristã tem uma dimensão económica que deve ser assumida por todos os paroquianos.

Segundo as orientações da Conferência Episcopal Portuguesa, cada família deve contribuir anualmente com o equivalente a um dia de trabalho, para as despesas gerais da Paróquia: culto, obras de construção ou restauro e conservação dos imóveis, sustentação do clero, evangelização, caridade e apostolado (…)»

[A seguir apresentam-se os prazos para a contribuição, agradecimentos a todas as famílias que contribuiram anteriormentee muitas bênçãos de Deus]

O que mais me encuca neste prospecto não é o peditório em si – vergonhoso por provir de uma sucursal de uma instituição que está longe de viver com dificuldades económicas -, mas a forma como é feito. De facto, o senhor pároco de Santa Clara presume que todas as famílias desta freguesia professam a religião católica apostólica romana e que, assim, são obrigadas a contribuir para as «despesas gerais» de «culto, obras de construção ou restauro e conservação dos imóveis, sustentação do clero, evangelização, caridade e apostolado». É esta prepotência que me irrita solenemente!

Gostava de saber uma coisa: será que a paróquia colocou a mesma carta nas caixas de correio dos locais de culto concorrentes existentes em Santa Clara, na rua Pinto de Abreu e na rua Milagre das Rosas (mais uma designação para adicionar à toponímia religiosa da cidade)? E, como sugeriu o Ricardo Alves, porque não pedir ao senhor pároco uma contribuição para a Associação Ateísta Portuguesa?

7 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

A fé tem cura

«Por um lado, as pessoas que vão à missa no Domingo [na diocese de Lisboa] são cerca de 13%. Por outro, [de acordo com uma sondagem] 33% declaram-se católicos praticantes.»

«O número dos praticantes [em Portugal] é dos mais significativos do Ocidente.»


(Declarações do Patriarca Policarpo, em entrevista à Visão, 06-01-04)

Na ICAR a fé diminui mas o poder aumenta.
6 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Momento de lucidez

«Isto leva-me a duvidar da existência de Deus»

(ROWAN WILLIAMS, arcebispo de Cantuária, sobre a catástrofe nos países do Índico, Visão, 06-01-04)


5 de Janeiro, 2005 jvasco

O paradoxo do livre arbítrio

Existem dois tipos de crentes: os que acreditam no livre arbítrio, e aqueles que não acreditam.

Os segundos são uma minoria que se depara com um problema teológico básico. Se tudo acontece “porque Deus assim quis”, então as pessoas pecam “porque Deus assim quis”. Isso é uma evidente contradição com a ideia de que um Deus “infinitamente justo” as condenará ao Inferno se pecarem.

Mas praticamente todos os crentes que conheço acreditam no livre arbítrio.

No entanto, esta crença está em profunda contradição com a de um Deus criador, omnipotente e omnisciente.

Uma vez que a maioria dos crentes acredita nestas quatro coisas (livre arbítrio, omnipotência divina, omnisciência divina, criação divina) interessa mostrar onde está a contradição entre elas.

Para o fazer vou dar um exemplo através de uma interpretação literal do episódio da criação relatado no Génesis. Depois vou fazer a analogia entre este raciocínio e a forma como os crentes acreditam que Deus criou o Universo.

Deus criou o Paraíso e criou Adão, com livre arbítrio.

Perante a tentação da serpente, Adão é posto à prova, perante uma decisão: a de comer ou não comer a maçã.

A questão que aqui se coloca é que a decisão de Adão depende de quem ele é, e Deus já a pode ter previsto.

Se Adão é como é, ele vai optar por comer a maçã, e Deus já o sabia.

Se Adão fosse diferente, ele poderia optar por não comer.

Mas foi Deus que criou Adão. Foi Deus que, ao decidir com que personalidade queria criar Adão, decidiu qual das opções Adão tomaria.

No momento em que Deus criou Adão, ele poderia escolher diferentes personalidades para Adão, mas a cada uma delas saberia (devido à sua omnisciência) que decisão perante a maçã, Adão tomaria.

No momento em que Deus decidiu a personalidade que daria a Adão, Deus fez a escolha que Adão faria.

Desta forma, Adão apenas fez aquilo que Deus quis.

E tendo em conta que tudo aquilo que se passou foi consequência da criação, foi Deus que decidiu tudo.

Ele sabia que criar o Universo de uma determinada forma implicaria tudo aquilo que se passou, e, assim sendo, foi tudo decisão dele.

Se esquecermos o episódio do Génesis, que é tomado por muitos crentes como uma mera metáfora (e porque aquilo que estou a dizer se aplica a qualquer religião que acredite nos quatro pontos referidos e não apenas ao Cristianismo), o raciocínio exposto pode manter-se.

Deus criou o Universo, e ao fazê-lo estabeleceu condições iniciais que depois evoluiram.

A evolução consequente pode ter sido determinista ou indeterminista.

Se foi determinista, Deus, ao criar o Universo que criou, foi o único responsável e culpado por tudo o que se passou.

Se foi indeterminista, temos um espaço para o acaso, mas se admitirmos a omnipotência de Deus, o acaso também será da sua responsabilidade, mesmo que por inacção.

Assim sendo, não faz sentido acreditar no livre arbítrio E num Deus criador

omnisciente e omnipotente.

Por fim, devo dizer que eu ACREDITO no livre arbítrio.

Isto porque não tenho nenhum Deus criador omnipotente para culpar pelos meus actos: apenas a pessoa que sou (que ninguém escolheu), o acaso (em relação ao qual não posso responsabilizar ninguém, sequer por omissão), e as leis físicas (novamente, ninguém as escolheu).

5 de Janeiro, 2005 André Esteves

Fait Divers dos Últimos dias

Pastor da Juventude acusado de violação de menores

Em Douglas, Arizona um Pastor foi acusado de violar um menor de 6 anos, havendo também suspeitas de abusos de pelo menos três outros menores em outros estados. Aqui, as palavras pastor e rebanho ganham outro sentido… Carne fresca! Carne fresca!

A Notícia

Padre condenado de violação de três menores, misturava lascívia com caridade

Padre condenado por violação, tinha queixas anteriores de comportamento lúbrico com os sem-abrigo desfalecidos que levava para casa, na prática da caridade…

A Notícia

Seita Aleph, ex-Verdade Suprema elimina duches de água quente como método de meditação depois de morte de cultista

Uma das técnicas de meditação da seita Aum consistia em estar horas seguidas debaixo de um chuveiro de água quente a 50 graus. Um dos membros, «por mero acaso», um dos responsáveis pelo raid de gás Sarin no metropolitano de Tóquio, morreu afogado durante uma «meditação», numa das casas da seita. Mais um pretenso buda que entrou no nirvana graças ao excesso de duche escocês.

A Notícia

Enfermeiro que fazia circuncisões linchado por clientes

Continua a época das circuncisões na África do Sul. Um grupo de jovens recém-circuncidados não gostou do serviço pós-corte e demonstrou o seu sentimento de consumidor ofendido ao fornecedor de serviços.

A Notícia

Igreja homofóbica agradece a Deus pelo tsunami do Índico

A famosa igreja de Westborough, que gere o site www.godhatesfags.com (Deus odeia os maricas.com), espalhou folhetos a agradecer a Deus pelo Tsunami ter morto pelo menos 1000 suecos, que classificam de homo-fascistas. Deus visava os suecos. O resto dos mortos são pormenores. Também com os conhecimentos que os americanos têm de geografia…

A Notícia

Clérigo Egípcio suspeito de pertencer à Al-Quaeda não vai a tribunal por ter as unhas dos pés demasiado grandes

O clérigo egípcio a quem foi retirada a cidadania inglesa, suspeito de pertencer à Al-Quaeda recusa-se a ir ao tribunal por razões médicas: tem as unhas dos pés demasiado compridas. Tanto que tem de andar na prisão descalço. É para isto que servem as mulheres muçulmanas: Cortar as unhas.

A Notícia

5 de Janeiro, 2005 André Esteves

A ciência salva

Como é que os britânicos conseguem ser tão claros?

Será a óbvia inutilidade da Igreja de Inglaterra?

Carta ao The Guardian, dia 30 de Dezembro de 2004

«O Bispo de Lincoln (cartas ao The Guardian, Dezembro 29) pede para não ser incomodado pelas pessoas religiosas que tentam compreender a vontade de Deus,no tsunami no Índico. Se calhar ele devia. As explicações religiosas para tais tragédias variam do louco (é o pagamento que recebemos pelo pecado original) ao vicioso (os desastres são enviados para testar a nossa fé) aos violentos (depois do terramoto de Lisboa, os hereges foram enforcados por terem provocado a ira de Deus). Eu preferiria não ser incomodado pelas pessoas religiosas que desistem de tentarem de explicar e que, no entanto, mantêm-se religiosas.

No mesmo conjunto de cartas, Dan Rickman, afirma «a ciência dá-nos uma explicação para o mecanismo de um tsunami mas não nos pode dizer porquê ele ocorreu, tão mais que a religião».

Aqui. Numa só frase, temos a mente religiosa nos exibida em toda a sua absurdidade. Em que sentido da palavra «Porquê», será que a tectónica das placas não nos dá uma resposta?

Não só a ciência sabe porque é que o tsunami ocorreu, como nos pode dar horas preciosas de aviso. Se uma pequena fracção das isenções de impostos dadas a igrejas, mesquitas e sinagogas tivesse sido aplicado em sistemas de aviso precoce, dezenas de milhares de pessoas, agora mortas, poderiam ter sido colocadas em segurança.

Deixemo-nos de estar ajoelhados, paremos de tremer perante fantasmas e pais no céu virtuais. Enfrentem a realidade, e ajudem a ciência a fazer alguma coisa construtiva sobre o sofrimento humano.»

Richard Dawkins

Oxford

5 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Mártires da ICAR

As Igrejas pelam-se por mártires. Os santos têm baixa cotação e poucas se dedicam à criação e exploração. A ICAR entrou na era industrial com JP2, um caso de superstição obsessiva e doentia fixação em cadáveres, a quem atribui virtudes passadas e poderes perenes. Para fabricar um santo basta inventar dois milagres e cobrar os pesados emolumentos do processo canónico. Para produzir mártires urge encontrar algozes adequados à transformação das vítimas em mito.

Os mártires podem ser dementes que procuram o Paraíso ou infelizes que estão à hora certa no lugar errado com parasitas de Deus à espera de explorarem a desgraça. Os suicidas islâmicos estão no primeiro caso, os missionários que caíram entre canibais fazem parte do segundo. Estes, em vez de serem amados pela eucaristia que levavam eram apreciados por si próprios, como manjar divino, em ávida antropofagia.

O nacionalismo e a fé andam de mãos dadas. A vontade divina coincide muitas vezes com a do príncipe e este é habitualmente um agente predestinado. A glória terrena facilita-lhe a bem-aventurança eterna. A rainha Santa Isabel fez aquele milagre das rosas, um milagre de que uma tia avó, húngara, certamente lhe enviara a receita para Aragão. Além do nome, herdou-lhe, com o truque, a santidade.

Nuno Álvares Pereira andou aí, depois de muitas humilhações nas provas para santo, a ser ultrapassado pelas bentinha de Balasar, os pastorinhos de Fátima e outros pios cadáveres com milagres comprovados e devoções firmadas. Faltou-lhe o martírio que infligiu aos castelhanos e a coragem da Cúria Romana para enfrentar Espanha. Agora que já poucos acreditam em milagres encomendaram-lhe um para dinamizarem a estatuária e colocarem nas igrejas uma peanha mais.

Destinados à santidade, o Vaticano, bairro que também usa a alcunha de Santa Sé, acaba de publicar a lista dos empregados mártires em 2004: 12 sacerdotes, 1 missionário, 1 religiosa e 3 leigos. As mortes são de lamentar mas o seu aproveitamento para fins de propaganda é uma macabra operação de marketing de que a ICAR se aproveita. O Cardeal Crescenzio Sepe, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, recorda este «generoso tributo de sangue de muitos irmãos e irmãs para o crescimento da Igreja no mundo».

Morrer ao serviço de Deus é garantir o Paraíso – prometem os padres com a mesma convicção com que na praça nos garantem a excelência da hortaliça e no talho a saúde do animal de que nos cortam os bifes.

4 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

O Diário Ateísta e os seus críticos

Face ao artigo «Ainda a respeito do Diário Ateísta» de Filipe Alves, publicado na Terra da Alegria, blogue que integra o segmento da Teosfera do DA, dado que me refere expressamente repetidas vezes, apraz-me esclarecer e comentar algumas afirmações, de forma sucinta:

1 – O nome, Carlos Esperança, corresponde efectivamente ao «blogger» cuja foto, idade e morada aparecem clicando no nome que se encontra na lista de colaboradores do DA e é o mesmo que deu a entrevista à Agência Lusa sobre a criação da Associação Ateísta Portuguesa de que é activista.

2 – O Diário Ateísta (DA) existe baseado na liberdade de expressão, direito recente em Portugal, aparecido há 30 anos sobre os escombros de uma ditadura cuja longevidade a cumplicidade da ICAR prolongou. Convém referir que o ensino da religião católica era obrigatório nas escolas do Estado e a sua prática severamente exigida e fiscalizada pelos Directores das Escolas do Magistério aos futuros professores.

3 – Na opinião de Filipe Alves, o DA integra pessoas «moderadas e bem educadas», donde parece excluir-me, mas, na sua diversidade, o DA não inclui ninguém que não aceite a «Declaração Universal dos Direitos Humanos», frequentemente postergada por todas as religiões, como um conjunto de princípios que é dever observar.

4 – Não tenho legitimidade para falar em nome do DA, mas, na qualidade de ateu praticante e militante, garanto que me empenho para que os homens e mulheres de todo o mundo possam abraçar qualquer religião, tenham a permissão de mudar e o direito de não professarem qualquer uma.

5 – A violência que atribuo às religiões baseia-se na perseguição e penas infligidas aos que as abandonam ou que as não praticam de acordo com a vontade do clero. A apostasia e a blasfémia são «crimes» exclusivamente de natureza religiosa que todos os credos se esforçam por criminalizar e que só a vitória da laicidade subtraiu ao braço da lei. Mas, de violência, estão a Tora, a Bíblia e o Alcorão cheios.

6 – Não pretendo «converter» ninguém ao ateísmo. O proselitismo é uma tara exclusiva da evangelização a que as religiões se dedicam. Chegam ao ponto de baptizar crianças recém-nascidas sem o mínimo respeito pela autodeterminação religiosa das pessoas, entrando em concorrência pela hegemonia, sem hesitarem no recurso à guerra. Não falo da Idade Média, falo do milénio que há pouco começou, da Europa, do catolicismo, do islão, do protestantismo e da Igreja Ortodoxa.

7 – Dizer que não há publicações católicas fundamentalistas é ignorar centenas de publicações paroquiais que pululam pelo país e cuja leitura faz corar de vergonha qualquer crente urbano ou alfabetizado. Falo de publicações actuais e não no diário «Novidades», órgão do patriarcado de Lisboa que desapareceu após o 25 de Abril. Podia ainda referir as posições do poderoso cardeal Joseph Ratzinger da cúria romana.

8 – Reconheço que também há crentes tolerantes mas, apesar da linguagem vigorosa que uso, fui incapaz de referir às autoridades democráticas o padre da Covilhã que em 1961 me denunciou à PIDE e era incapaz de ficar indiferente à prisão ou ao assassinato de um crente. Ao contrário, a Igreja portuguesa silenciou crimes desses, cometidos durante a ditadura, com a excepção honrosa de um único bispo, António Ferreira Gomes, que pagou com o exílio a honradez.

9 – A tolerância existe mais nas atitudes do que nas palavras. Pode considerar-se tolerante uma igreja que exige uma concordata que reserva para si privilégios que nega às outras religiões? Que pretende servir-se das escolas públicas para se promover? Que reservou direitos para a sua Universidade que nenhuma outra, particular, possui?

10 – Acerca de Deus, sobre quem os crentes fazem recair a suspeita de ter criado o mundo, não há o mais leve indício da sua existência nem o mais insignificante esforço da sua parte para provar que, depois disso, tenha feito o que quer que seja. Assim, não é possível provar a sua não existência mas cabe-lhe a ele fazer prova de vida.

Correcção – «A religião quer-se como o sal na comida, nem de mais nem de menos» são palavras de António Alves Martins, bispo de Viseu no reinado de D. Luís, palavras frequentemente apagadas da sua estátua, durante a ditadura salazarista, e de novo repostas clandestinamente por anónimos. Para mim, a religião está como o sal para os hipertensos – a mais pequena dose é prejudicial, mas o bispo acreditava em Deus. Ninguém é perfeito.

3 de Janeiro, 2005 fburnay

Ética ateísta

Conhece, quem é obrigado ao silêncio, o poder de quem cala. Pior é que dizer mentiras não deixar alguém falar. Pior ainda é advogar o direito ao abuso para combater o abuso do direito. E aquele que pensar que nada há de mais abjecto do que obrigar os outros a ficar calados porque o nosso discurso ofende mesmo sem ser insulto, desengane-se: pior que tudo isto é castrar o valor da nossa opinião porque aquilo que ofende não se prende apenas naquilo que dizemos mas naquilo que pensamos. Não estou a falar de sociedades teocráticas, não estou a falar de cruzados, não estou a falar de ditaduras nem de déspotas sem escrúpulos. Estou a falar de pessoas comuns. Porque, ateus ou não, podemos ser todos Galileus.

O meu direito a ser ateu é e sempre foi garantido entre aqueles que conheço. Já as razões pelas quais eu sou ateu, essas, são por vezes obrigadas a ficar escondidas dos ouvidos de muitos porque são intoleráveis. O facto de eu achar que os outros, e não eu, estão enganados, não é para eles uma opinião que importa debater para perceber quem é que está errado – é arrogância que não merece ser ouvida. Aquilo a que chamamos verdade, quer a conheçamos, quer não, chega a ser para alguns uma questão de perspectiva! E, sendo para essas pessoas uma questão de perspectiva, eu estou tão errado para os outros como os outros o estão para mim, de facto. É deste tipo de pessoas que os tiranos gostam.

Que haja instituições – não interessa quais – que façam o que eu descrevi, não me causa espanto. Mas ver falar aqueles de quem gosto, sem que se apercebam, a língua dos obtusos e dos violadores de direitos humanos é simplesmente assustador. E o hediondo disto tudo é que há quem não faça a menor ideia das implicações daquilo que diz. Pode parecer exagerado mas de facto todas essas coisas, que quando explícitas causam revolta, estão também presentes na ingenuidade do cidadão comum: do polícia ao juíz, do condutor ao peão, do aluno ao professor, da criança ao adulto. É a ingenuidade que boicota a cidadania, que distorce a justiça, que se arroga ao direito de calar quem acha que deve, que relativiza o absoluto e que absolutiza o relativo, que dita o que é bom ou mau, tudo isto na maior das plenitudes de espírito e paz interior. Ela está nas cabeças dos crentes que seguem os seus líderes sem os questionar, está na boca daqueles que se manifestam nas câmaras da Assembleia da República, está nas manchetes distorcidas dos jornais, está nas aulas de professores despreocupados, está na condescendência dos intelectuais, está no “simples” acto de quem bebe e conduz!

É por isso que acho que o Ateísmo possui uma componente ética. Porque sei que, apesar da natureza humana poder ser tudo menos aquilo que eventualmente desejaríamos, se pode procurar o fulcro que torna humana a sociedade. Podemos, todos juntos, construir uma sociedade melhor. Isso é aquilo que todos queremos, não é relativo. A noção daquilo que faz da sociedade melhor, isso sim, importa debater e nunca impôr. Isto tem tudo a ver com Ateísmo. Ateísmo não de ser simplesmente ateu mas de ser ateísta, que é o que eu sou. O Ateísmo que, na sua posição descrente e laica garante um lugar para todos aqueles que amam o seu deus. Um Ateísmo que defende valores de cidadania não pode ser uma ideologia sem valores. Aqueles que acusam o Ateísmo de defender ideais que, na sua elaboração, têm a mesma estrutura que os valores dogmáticos das religiões, estão enganados. O Ateísmo, na sua elaboração ideológica, admite sempre o seu próprio questionamento e nunca impõe dogma nenhum. Não admira que por isso seja tão consonante com a Ciência, com a Democracia e com a Cidadania em particular. Não é de estranhar que surja mais naturalmente no seio de comunidades críticas, dialogantes e sem complexos. Da diferença entre desejo e fé, entre esperança ingénua e convicção crítica é que nasce o báculo da Democracia – não de ouro na mão de um mas por direito, na mão de todos.

3 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

No Sri Lanka só a fé ficou incólume

Há catástrofes cuja dimensão semeia a desolação e o pânico. A dor extrema conduz à inacção ou ao desespero. Não há meio termo. A revolta, a angústia e o medo espalham-se no ar que cheira a morte e transporta pesadelos sombrios.

A televisão mostra-nos milhares de cadáveres juncando o chão, mortos que urge remover depressa para evitar que as epidemias lhes juntem outros. A morte, na sua obscena dimensão, deixa de interessar. São os vivos, espoliados de tudo, sem família, sem abrigo, sem água potável, sem alimentos, sem presente nem futuro, corpos desnudados, fantasmas vagueando sem destino, a respirar o ar que cheira a morte, são esses vivos a quem a tragédia bateu à porta que esperam solidariedade e a rapidez do nosso apoio.

As praias do Índico, que há dias regurgitavam de vida num ambiente idílico, são hoje cemitérios que rodeiam um continente mais pobre, desesperado e lúgubre. Mas sempre que o cheiro dos cadáveres se adensa logo as aves de repina se aproximam.

No Sri-Lanka, onde a agitação da terra e a fúria do mar se conjugaram para arrasar um país e dizimar a população, estátuas de Buda, de cimento e gesso, sobraram intactas, quando, à sua volta, tudo ficou destruído. Até um templo resistiu ileso.

Tanto bastou para que a tragédia fosse confiscada em benefício da religião. «As pessoas não vivem de acordo com as virtudes religiosas. Por isso, a natureza dá-lhes alguns castigos porque não seguem o caminho de Buda. As pessoas têm de aprender a lição», diz Sumana, um monge budista. – lê-se no «Público» de hoje. Não foi apenas o templo e alguns budas que resistiram ilesos – a crueldade, a ignorância e a chantagem reforçaram os alicerces.

No Sri-Lanka, como no resto do mundo, os abutres estão sedentos de carne putrefacta. A morte é o alimento predilecto das religiões e o medo o argumento para a conversão e submissão ao poder do clero. Perante a sinistra interpretação eclesiástica só a erradicação do fantasma de Deus pode fazer algo pela libertação da humanidade.

Apostila – Uma menina inglesa, de dez anos, com os conhecimentos científicos adquiridos na aula de geografia, apercebeu-se da iminência da catástrofe e conseguiu que uma centena de pessoas fugisse da praia. Salvou mais gente a sabedoria de uma criança do que a fé de todos os adultos.