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12 de Abril, 2005 jvasco

Vote no Hugo [repetição]

Não resisto.

Tenho bastantes ideias para escrever artigos, até mesmo de mais para o pouco tempo que tenho disponível para o fazer. No entanto, gosto muito de um texto que já cá tinha colocado, mas numa altura em que o nosso Diário tinha muito menos visitas e visibilidade.

É por isso que quero voltar a partilhar este texto de Jim Huber, adaptado por Tim Gorski.

VOTE NO HUGO

Hoje de manhã alguém bateu à minha porta. Era um casal bem vestido e arrumado. O homem falou primeiro, e disse

João: Olá! Eu sou João, e esta é a Maria.
Maria: Olá! Gostaríamos de convidá-lo a votar no Hugo connosco.
Eu: Como assim? O que é isso? Quem é Hugo, e porque é que vocês querem que eu vote nele? Nem é dia de eleição hoje.
João: Se votar no Hugo, ele dar-lhe-á um milhão de dólares, e se não, ele espanca-o.
Eu: Mas o que é isso? Extorsão da máfia?
João: Hugo é um multibilionário filantropo. Hugo construiu esta cidade. A cidade é dele. Ele pode fazer o que ele quiser, e ele quer dar-lhe um milhão de dólares, mas isso só é possível se você votar nele.
Eu: Mas isso não faz o menor sentido. Se o Hugo construiu a cidade, é dono dela e pode fazer o que quiser, então por que precisa ser eleito? E por que ele…
Maria: Quem é você para questionar o presente do Hugo? Você não quer o milhão de dólares? Não vale a pena por votar nele uma vez só?
Eu: Bom, talvez, se mesmo a sério, mas…
João: Então venha connosco votar no Hugo.
Eu: Vocês já votaram no Hugo?
Maria: Ah, claro, e…
Eu: E vocês já receberam o milhão de dólares?
João: Bom, na verdade não. Você só recebe o dinheiro depois de sair da cidade.
Eu: Então porque é que vocês não saem?
Maria: Você só sai quando o Hugo deixar, ou você não leva o dinheiro, e ele espanca-o.
Eu: Vocês conhecem alguém que tenha votado no Hugo, saído da cidade e ganho o dinheiro?
João: Minha mãe votou no Hugo por anos. Ela saiu da cidade ano passado, e tenho certeza de que ela ganhou o dinheiro.
Eu: Você não falou com ela depois disso?
João: Claro que não, o Hugo não deixa.
Eu: Então porque é que acha que ele vai dar-lhe o dinheiro se nunca falou com alguém que tivesse conseguido o dinheiro?
Maria: Bom, ele dá-lhe um pouco antes de você ir embora. Pode ser um aumento de salário, pode ser um pequeno prémio de lotaria, pode ser que você ache uma nota de cinquenta na rua.
Eu: E o que tem isso a ver com o Hugo?
João: O Hugo tem uns «contactos».
Eu: Sinto muito, mas isso parece-me muito estranho…
João: Mas é um milhão de dólares, você vai arriscar? E lembre-se, se você não votar no Hugo, ele espanca-o.
Eu: Talvez se eu pudesse ver o Hugo, falar com ele, ajustar os pormenores directamente com ele…
Maria: Ninguém vê o Hugo, ninguém fala com o Hugo.
Eu: Então como é que vocês votam nele?
João: Às vezes nós fechamos os olhos e votamos, pensando no Hugo. Às vezes votamos no Carlos, e ele conta ao Hugo.
Eu: Quem é o Carlos?
Maria: Um amigo nosso. Foi ele que nos ensinou a votar no Hugo. A gente só precisou de o levar a jantar algumas vezes.
Eu: E vocês simplesmente acreditaram no que ele disse, quando ele contou que existia um Hugo, e que o Hugo queria que vocês votassem nele, e que o Hugo daria uma recompensa?
João: Claro que não! Carlos trouxe uma carta que o Hugo lhe mandou anos atrás, explicando tudo. Tenho uma cópia aqui, veja você mesmo.

João entregou-me uma fotocópia de uma carta com o cabeçalho «Do punho de Carlos». Havia onze pontos ali:

1. Vote no Hugo e ele dar-lhe-á um milhão de dólares quando você sair da cidade.
2. Beba álcool com moderação.
3. Espanque quem não for como você.
4. Coma bem.
5. O próprio Hugo ditou esta lista.
6. A lua é feita de queijo verde.
7. Tudo que o Hugo diz está certo.
8. Lave as mãos depois de ir à casa de banho.
9. Não beba.
10. Só coma salsicha no pão, e sem condimentos.
11. Vote no Hugo, ou ele espanca-o.

Eu: Parece que isso foi escrito no bloco do Carlos.
Maria: Hugo não tinha papel.
Eu: Tenho um palpite que se fôssemos conferir, descobriríamos que essa letra é do Carlos.
João: Claro que é, o Hugo ditou.
Eu: Pensei que vocês tinham dito que ninguém vê o Hugo.
Maria: Agora não, mas tempos atrás ele falava com algumas pessoas.
Eu: Pensei que vocês tinham dito que ele era um filantropo. Como é que um filantropo bate nas pessoas só porque elas são diferentes?
Maria: É o desejo de Hugo, e o Hugo está sempre certo.
Eu: Como sabe?
Maria: O item 7 diz: «Tudo que o Hugo diz está certo». Para mim isso é suficiente.
Eu: Talvez o seu amigo Carlos tenha inventado isso tudo.
João: De jeito nenhum! O item 5 diz: «O próprio Hugo ditou esta carta». Além disso, o item 2 diz «beba álcool com moderação», o item 4 diz «coma bem», e o item 8 diz «lave as mãos depois de ir à casa de banho». Toda a gente sabe que isso está certo, então o resto deve ser verdade também.
Eu: Mas o item 9 diz «não beba», o que não bate com o item 2. E o item 6 diz que «a Lua é feita de queijo verde», o que está simplesmente errado.
João: Não há contradição entre 9 e 2, 9 só esclarece 2. E quanto ao 6, você nunca esteve na Lua, então não pode ter certeza.
Eu: A ciência já estabeleceu muito bem que a Lua é feita de rochas…
Maria: Mas eles não sabem se as rochas vieram da Terra ou do espaço, então poderiam muito bem ser queijo verde.
Eu: Não sou um perito, mas acho que a ideia é que dois ou mais corpos de bastante massa podem ter colidido durante a formação do sistema solar para criar o sistema Terra-Lua. Mas não saber exactamente como a Lua foi formada não tem nada a ver com ela ser feita de queijo.
João: Ah! Você acabou de admitir que os cientistas não podem ter certeza, mas nós sabemos que o Hugo está sempre certo!
Eu: Sabemos?
Maria: Claro, o item 5 diz isso.
Eu: Você está a dizer que o Hugo está sempre certo porque a lista diz, e a lista está certa porque o Hugo ditou, e sabemos que o Hugo ditou porque a lista diz. Isso é lógica circular, é a mesma coisa que dizer que «o Hugo está certo porque ele diz que está certo».
João: AGORA você entende! É tão bom ver alguém entender a forma de pensar do Hugo!
Eu: Mas… ah, deixem estar… E que história é essa com as salsichas?
João (enquanto Maria enrubesce): É um esclarecimento do item 4. Salsicha, só no pão, sem condimentos. É a maneira do Hugo. Qualquer coisa diferente disso é errado.
Eu: Mas então pode comer hamburguer sem pão? E bratwürst?
João: Espere aí, espere aí! Não vamos deixar as coisas mais complicadas do que elas são. É melhor deixar esses pormenores para os peritos profissionais no Hugo e suas regras.
Eu: E se não tiver pão?
João: Sem pão, nada de salsicha. Salsicha sem pão é errado.
Eu: Sem molho? Sem mostarda?
João (Gritando, enquanto Maria parece chocada): Não precisa falar assim! Condimentos de todos os tipos são errados!
Eu: Então uma pilha enorme de repolho azedo com umas salsichas picadas em cima, nem pensar?
Maria (enfiando os dedos nas orelhas): Eu não estou escutando!! La la la, la la, la la la.
João: Mas que nojento! Só um pervertido comeria isso…
Eu: Mas é bom! Eu como sempre!!
João (amparando Maria, que desmaia): Se eu soubesse que você era um desses, não teria desperdiçado meu tempo. Quando o Hugo o espancar, eu vou estar lá, contando meu dinheiro e rindo. Eu vou votar nele por você, seu comedor-de-salsicha-cortada-com-repolho!

E assim João arrastou Maria para o carro, e foram embora.

O original faz parte da página da igreja do pensamento livre, que gentilmente o cederam.

12 de Abril, 2005 fburnay

Física e Catolicismo?

Dei de caras com posters no IST que exibiam uma fotografia de Einstein com a seguinte frase: «A Realidade é um dado. Mas dado por quem?». Se se tratasse de um tema para um encontro de agnósticos, eu compreendia perfeitamente a indagação mascarada de citação. No entanto é curioso constatar que se trata de publicidade ao Happening 2005 do movimento Comunhão e Libertação que, entre outros locais, tem lugar no campus da Alameda esta semana. Frase algo idiota, diga-se, pretende certamente atingir as mentes quase-agnósticas e pouco críticas de alguns estudantes do instituto. Pressupôr-se-á então que a resposta seja «o Deus cristão, relatado na Bíblia, que todos devemos adorar conforme as indicações da Igreja Católica Apostólica Romana à qual pertence o membro que fundou o movimento Comunhão e Libertação»? É uma resposta forçada. Mas forçada por quem? Pela ICAR, naturalmente…
12 de Abril, 2005 Ricardo Alves

«O que pensa Alá da Europa?», por Chahdortt Djavann

No actual contexto internacional, poucas mulheres ex-muçulmanas têm a coragem de militar publicamente contra a opressão a que a religião islâmica condena as mulheres. Uma delas, já muitas vezes aqui referida no Diário Ateísta, é a ateia somali Ayaan Hirsi Ali (ler ali o resumo de uma entrevista recente). Outra, é a iraniana Chahdortt Djavann, da qual foi publicado recentemente o livro «O que pensa Alá da Europa?» (da mesma autora, já fora publicado «Abaixo os véus!»).
Neste seu último livro, Chahdortt Djavann contribui para o debate sobre a lei francesa que proíbe os símbolos religiosos ostensivos desmontando os argumentos pró-véu com desassombro e eficácia.
É impiedosa com os «intelectuais europeus» e os «sociólogos “compassivos”», que acusa de serem em parte ingénuos e em parte cúmplices. Obecados com a «identidade cultural» e o «multiculturalismo», estes intelectuais chegam a comparar o piercing e o umbigo ao léu ao uso do véu. Como nos diz, a diferença é que «nenhum regime obrigou à força de kalachnikov a totalidade das mulheres de um país a usar o umbigo ao léu (…) ao passo que o véu (…) é imposto a centenas de milhões de mulheres no mundo inteiro». Djavann recorda àqueles que afirmam que o véu é uma «expressão da liberdade individual», que o véu é «o emblema do sistema islamita», «o símbolo que permite toda a violência e toda a barbárie em relação às mulheres», que as transforma num «atractivo sexual» e «[num] bem exclusivamente reservado aos homens muçulmanos». A nossa autora acrescenta que as raparigas que aparecem na televisão a defender o seu véu como «uma escolha individual» são incapazes de condenar sem ambiguidades atentados às liberdades individuais como a lapidação de mulheres adúlteras. Só não percebe quem não quer: o véu não é só o véu, é o símbolo e a arma de todo um sistema de opressão social e sexual das mulheres.
A autora, que nunca se assume como ateia mas que o sugere ao escrever várias vezes «Alá, se existe (…)», é implacável na denúncia do Islão fundamentalista. Conforme explica, um sistema como o Islão, em que se é livre de entrar, mas em que a saída (a apostasia) é punida com a pena de morte, é um sistema totalitário. Chahdortt Djavann é portanto muito dura com uma religião e uma cultura que, afirma, só poderá evoluir se separar o pensamento filosófico do pensamento religioso. De particular interesse são as páginas que dedica aos islamitas radicados na Europa, que acusa de não quererem saber dos muçulmanos, explorados laboralmente e excluídos socialmente, pois a preocupação exclusiva desses islamitas é o avanço do Islão na sua versão mais integrista. Argumenta que estes islamitas estão em convergência objectiva com a extrema direita lepenista, algo com que não posso deixar de concordar.
Num livro de 74 páginas, escritas de forma escorreita e apaixonada, Chahdortt Djavann denuncia o racismo oportunista de alguns e defende a integração numa democracia laica dos imigrantes de cultura muçulmana (que, na sua maioria, nem serão muito praticantes da sua religião de origem), apostando, subentende-se, em que na Europa possa surgir um islão que desequilibre o fanatismo dos países de origem.
São poucas as mulheres com esta coragem. Convém ouvi-las.
(«O que pensa Alá da Europa», por Chahdortt Djavann. Editorial Teorema, 2005, 74 páginas.)
11 de Abril, 2005 Carlos Esperança

O momento Zen da segunda-feira

João César das Neves (JCN) raramente desilude. A homilia de ontem tem por título «Intercessão de São João Paulo Magno», epíteto que parece designar JP2 canonizado por JCN com a mesma legitimidade com que se aventura nas lucubrações teológicas com que semanalmente se dedica ao proselitismo que o há-de levar aos altares.

Com a displicência de quem não está na corrida para substituir JP2 vai dando conselhos para que a santa madre igreja, católica, apostólica, romana, se não transforme numa seita protestante. Para JCN «seita» é a religião cristã quando não obedece ao Papa.

O concílio de Trento, um momento ignóbil da ICAR, em que as mais retrógradas posições e os mais fanáticos desvarios teológicos foram consagrados, é definido pelo pio escriba do DN desta forma: «O século XVI viu o grandioso concílio de Trento (1545-1563), aplicado por um santo, São Pio V (Papa de 1566-1572(…)» contra a «terrível Reforma».

«Em 1590 cerca de metade da massa terrestre europeia estava sob o controlo de Governos protestantes e/ou da cultura protestante; em 1690 o número era apenas cerca de um quinto.» (MacCulloch, D. Reformation, Penguin Books, Londres, 2003, p.669). JCN nem lhe treme a mão a escrever estas enormidades, nem sente vergonha a lembrar-se da brutalidade criminosa da contra-Reforma que os santos papas promoveram com a prestimosa ajuda da santa inquisição.

JCN, na sua mistificação habitual, considera que JP2 teve «um imponente pontificado» e que a sua morte pôs termo ao concílio Vaticano II que, supostamente, teria levado à prática com as suas posições autoritárias, retrógradas e estalinistas. Claro que foi justamente o contrário. Mas que poderia esperar-se de quem acredita que «a presença do Espírito Santo dá vida ao corpo místico de Jesus Cristo, que conta agora com a poderosa intercessão de São João Paulo Magno»?

11 de Abril, 2005 Mariana de Oliveira

E, assim, acontece

Depois de, na passada sexta-feira, os peregrinos presentes nas cerimónias fúnebres de João Paulo II terem reclamado a sua imediata beatificação, os «milagres» não demoraram a ser noticiados.

Uma família mexicana afirma que o falecido papa curou miraculosamente o seu filho, que sofria de leucemia, em 1990. Cura milagrosa esta apoiada pela diocese de Zacatecas, no Norte do México. O rapaz, agora com dezanove anos, Heron Badillo diz que está convencido «de que foi um milagre». «Sua Santidade tocou-me a face, e fez-me baixar a cabeça. Eu tinha quatro anos e estava muito doente, mas fui salvo». Segundo o que se conta, a família de Heron ter-se-á aproximado de João Paulo II no aeroporto de Zacatecas por intermédio do bispo da diocese, Javier Lozano Barragan. «Ele estava gravemente doente, o médico já o havia condenado, mas eu tinha esperança que a visita do Papa o pudesse salvar. E foi isso que se passou», explicou o pai de Heron.

O outro milagre foi visto pelo secretário pessoal do ex-papa, Stanislav Dziwisz. De acordo com este senhor, João Paulo II terá salvo um americano que sofria de um tumor no cérebro administrando-lhe a comunhão. Ainda para mais, o curado não era cristão, mas sim judeu.

A beatificação de João Paulo II – que, seguramente, será célere – será muito conveniente para a Igreja Católica uma vez que imortalizará toda a propaganda com que fomos bombardeados na semana passada e que fez passar a imagem de que o antigo papa foi uma figura que trouxe progresso e felicidade para a Humanidade… o que é, no mínimo, controverso.

11 de Abril, 2005 Carlos Esperança

Habemus Pontificem

Agora que terminou o circo mediático em volta das exéquias fúnebres do Papa JP2, a ICAR prepara o lançamento do próximo.
Desta vez o Papa morreu de morte natural, não há a falência do Banco Ambrosiano a comprometer a Cúria romana e o arcebispo Marcinkus, que financiou a candidatura de Karol Vojtyla através do banco do Vaticano, encontra-se esquecido numa diocese americana fugido à justiça italiana com a cumplicidade de JP2 que negou a extradição do seu antigo protector.

O Espírito Santo está de férias e o Opus Dei encontra-se no centro da intriga, dos golpes e influências que hão-de levar o colégio cardinalício a entregar o poder nas mãos do novo papa, sem que qualquer escândalo se vislumbre no horizonte. O consumo de cereais para o fabrico de hóstias baixou drasticamente.

Os conclaves têm histórias pouco edificantes e duração indeterminada. Júlio II foi eleito após algumas horas. Para eleger Gregório X o conclave arrastou-se 1095 dias. Desta vez não se prevê grande demora e é provável que no dia 18 próximo seja escolhido o novo gerente porque há negócios urgentes da ICAR à espera de despacho.

Dos 117 cardeais que vão sentar-se na Capela Sistina apenas três não devem o barrete cardinalício a JP2 que foi substituindo os que eram abatidos ao activo por bispos dóceis, conservadores e subservientes. A ICAR de hoje é mais monolítica do que a que Wojtyla confiscou em seu proveito para maior glória de Deus e proveito do Opus Dei, de quem fez prelatura pessoal, e de outras seitas mais ou menos fanatizadas.

Os órfãos de JP2, que tanto choraram o defunto, serão os mais histéricos a manifestar o júbilo pelo seu sucessor, cujo perfil é o seguinte:

Católico do sexo masculino, cardeal, sem escândalos públicos ou vícios conhecidos, bem visto pela prelatura Opus Dei, preferencialmente italiano, conservador, poliglota e que finja acreditar em milagres e aparente acreditar em Deus.

Habemus Pontificem.

10 de Abril, 2005 pfontela

Dúvidas

Uma peça de teatro, de nome «Doubt» (Dúvida), que tem como pano de fundo o drama de uma freira que tem que decidir se deve ou não denunciar um sacerdote católico que ela acredita abusar rapazes ganhou o famoso prémio Pulitzer. No relatório encomendado pela ICAR no ano passado foi tornado público que nos últimos 50 anos mais de 4000 sacerdotes foram acusados de abusos sexuais, sendo que no total estariam envolvidas cerca de 10000 crianças. Na segunda metade deste período JP2 esteve à frente da ICAR como monarca absoluto e fez pouco ou nada para impedir estes crimes ou trazer justiça às vítimas.

Actualização: de notar que um dos escolhidos pela cúria para fazer as exéquias do papa foi o cardeal Law (responsável pela ocultação de casos de abuso). A cúria falou.

10 de Abril, 2005 Palmira Silva

Evolução ou regressão?

«Se me perguntarem qual é a minha convicção mais íntima sobre o nome que será dado a este século, se será ‘século do ferro’, do ‘vapor’ ou ‘da electricidade’, responderei sem hesitar que será chamado o século da visão mecanicista da natureza, o século de Darwin».
Ludwig Boltzmann (1844-1906), que estabeleceu a Mecânica Estatística e sistematizou o conceito de Entropia, formulando uma interpretação estatística para a 2ª Lei da Termodinâmica, aquela que os criacionistas alegam insistentemente inviabilizar a evolução biológica.

O fundamentalismo cristão que ressurge um pouco por todo o mundo ocidental tem como principal inimigo a abater o ateísmo e aquilo que descrevem como perigosas ideias ateístas, nomeadamente o que é designado por muitos o mito da Criação ateu, isto é, o evolucionismo. Os criacionistas, que aparentam nutrir um grande pavor pela realidade inegável da evolução biológica e se lançaram numa cruzada anti-evolucionista, tentam manipular conceitos científicos de forma a verem satisfeitos aos seus dogmas. As principais «teorias» criacionistas já foram amplamente abordadas no Diário Ateísta, mas, em benefício dos nossos leitores mais recentes, apresento alguns dos posts sobre o assunto no final deste.

O grande problema dos criacionistas reside no facto de que o trabalho teológico que tentam apresentar como científico não é reconhecido pela comunidade científica e é sistematicamente recusado quando o submetem à avaliação dos pares em qualquer revista científica. Claro que para os criacionistas os culpados são os pares que, segundo um estudo publicado em 1998 na revista Nature, são esmagadoramente ateus ou agnósticos. Dos cientistas inquiridos, membros da Academia National de Ciência dos Estados Unidos, apenas um pouco mais de 7% declararam acreditar na existência de Deus. Não conheço estudos análogos realizados noutros países mas os autores do livro «The Psychology of Religious Behaviour, Belief and Experience» Benjamin Beit-Hallahmi e Michael Argyle mencionam que a ausência de crença nos laureados com o Nobel, quer em ciência quer em literatura, é muito elevada.

Uma vez que não conseguem negar as evidências científicas e refutar o evolucionismo, os fanáticos fundamentalistas tentam evitar a exposição da população em geral à verdade científica que derruba muitos dos pilares em que assentam as três religiões do livro: a criação do homem (e da mulher a partir do homem, que assim tem um papel subserviente ditado pelo Criador) e o pecado original. Em muitos estados dos Estados Unidos foi retirado o evolucionismo dos curricula escolares ou é apresentado como uma teoria alternativa ao criacionismo. Na Flórida saiu recentemente uma lei em que um professor que fale da evolução pode ser processado pelos respectivos alunos.

Para além, claro, de anatemizarem toda a investigação científica que possa conduzir a resultados desastrosos para os prosélitos da fé. Nomeadamente retirando financiamento para projectos científicos perigosos para a fé e multiplicando-se os apoios, estatais e privados, para projectos pseudo-científicos que reforçem os dogmas religiosos.

E para quem pensa que estas anormalidades fundamentalistas só acontecem nos Estados Unidos recordemos que Silvio Berlusconi queria retirar o evolucionismo dos curricula escolares e só cedeu depois de uma semana de protestos massivos e que na Sérvia, sob os auspícios da ministra da Educação Ljiljana Colic, o ensino da evolução esteve suspenso por uma semana por uma determinação ministerial que apenas o permitia se em paralelo fosse ensinado o criacionismo.

O quadro negro do desenho inteligente
Os dinossauros de Deus
De volta ao Genesis
Ainda o princípio antrópico, I: pescadinha de rabo na boca
Ainda o princípio antrópico, II: a posição «cientificamente correcta»

9 de Abril, 2005 Carlos Esperança

A aldrabice da fé e a fé de um aldrabão

Um dia andava Deus na sua divina ociosidade e pensou em seu pensamento: «O Diário Ateísta diz mal de Mim e dos empregados que tenho em comissão de serviço no planeta Terra». E o senhor Deus, habituado à ociosidade, com pouca imaginação, pensou, pensou e nada lhe ocorreu para pôr cobro à liberdade de expressão. Apenas sentiu um desejo de vingança para fazer jus às características com que os homens o criaram.

Passou então pelo Céu o Papa recém falecido, curvado das genuflexões, com um odor pestilento a incenso, a rezar continuamente, e o Senhor lhe disse: «acaba lá com essas rezas e deixa-me pensar». E, enquanto o senhor Deus continuava no penoso sacrifício de pensar, lembrou-se o Papa recém falecido de perguntar o que apoquentava Deus.

Foi então que Deus pensou fazer uma viagem de Vespa (uma moto muito popular nos anos sessenta do século passado) e lhe disse: «Arranja-me uma Vespa». Como o Papa era muito piedoso e julgava que Deus era o criador do Céu e da Terra queria ir buscar-lhe algo mais precioso e pediu a um Papa mais antigo que ajudasse a demover o Senhor de um pedido tão modesto e o convencesse a pedir algo de mais valioso.

Quando o Senhor viu o Papa recém falecido acompanhado do Papa mais antigo, exclamou: «Como estás senil! Pedi-te uma Vespa e trazes-me uma besta!». Nisto, o senhor Deus lembrou-se de que uma besta era o que lhe convinha. Não podendo mandar à Terra um cadáver com muitos anos, por causa do cheiro e do aspecto, lembrou-se de uma besta muito devota, que vivia em Portugal, e deu-lhe a seguinte inspiração:

«Vai ao Diário Ateísta, usurpa a identidade e o endereço dos colaboradores e confunde os visitantes. Não preciso de dizer o que hás-de escrever. És suficientemente néscio para não precisares de mim. Os ateus não se deixam enganar mas os crentes confundem-se e continuam a acreditar que Eu existo». E o estulto foi e fez o que o Senhor lhe disse. E ainda julgou ouvir:

«Em verdade, em verdade te digo: bem-aventurados os pobres de espírito».

9 de Abril, 2005 Carlos Esperança

O legado de João Paulo II

A morte não é a benzina que apaga as nódoas. Não é falta de respeito criticar Hitler, Stalin, Franco, Mussolini, Pio IX, Khomeini, Brejnev, Salazar ou João Paulo II. Como não será crime condenar amanhã Pinochet, Saddam ou Bin Laden.
A bondade das pessoas não está à mercê dos decretos pontifícios ou das opiniões dos poderosos. A voz pública não coincide obrigatoriamente com a que se publica.

Após o último comício realizado sob os auspícios de JP2 que, nem no funeral, prescindiu dos banhos de multidão com que alimentou o narcisismo e promoveu a religião que administrava, há multidões de órfãos que em breve ultrapassarão o luto com o novo «pai» que os cardeais, iluminados pelo Espírito Santo e influenciados pelo Opus Dei, lhes vão arranjar.

Contrariamente ao meu amigo e companheiro do Diário Ateísta, João Vasco, não registei no longo e autoritário pontificado de JP2 aspectos positivos. No entanto, há coisas boas que deixa – uma igreja monolítica que, após o autoritarismo, tem tendência a desagregar-se; santos em tanta quantidade que vai ser fácil desmascarar o passado pouco glorioso e recomendável de muitos deles; milagres a rodos cuja puerilidade vai fazer corar de vergonha os crentes pensantes; o ressentimento dos teólogos e dignitários católicos que amordaçou e cuja pressão vai destapar a panela fechada por JP2, com a ajuda da Cúria.

JP2 foi um misto de estrela pop e de aldrabão de feira. Virou os holofotes todos para si. Foi o eucalipto que secou tudo à sua volta. Veremos como os próximos tempos serão tempo de desagregação e de lutas dentro da ICAR. Nem tudo é mau, de facto.

O erro que mais frequentemente se comete é ver em JP2 o Papa do diálogo ecuménico. Ele não procurou reconhecer a verdade dos outros, apenas tentou hegemonizar a sua. Nunca defendeu a liberdade de crer e de não crer, só quis o regresso a um tempo em que era perigoso não acreditar. Desde a morte de Pio XII que a ICAR nunca mais tinha proibido um livro. Voltou a censura com JP2. Ele nunca foi um arauto da liberdade, apenas foi um adversário de alguns tipos de ditaduras. O pretenso diálogo não resultou da bondade e da tolerância, estabeleceu-se na base dos preconceitos misóginos, autoritários, homofóbicos e de ânsia do poder clerical. Foi isso que aproximou os clérigos das religiões do livro em luta contra o livre-pensamento e a laicidade.

JP2 deixa uma Igreja mais medieval, supersticiosa, fanática e troglodita do que a que herdou de João Paulo I, papa durante 33 dias, falecido na sequência do anúncio da fiscalização das contas do Banco do Vaticano, piedosamente chamado IOR (Instituto das Obras Religiosas). Alguém pergunta por que razão JP2 se negou a extraditar o arcebispo Marcinkus, presidente do IOR e arguido na falência do banco Ambrosiano? Quanto pagou o Vaticano por essa monumental burla e por que razão defendeu o cúmplice? Quem deu o dinheiro para as grossas indemnizações e acabou por tornar-se prelatura pessoal de JP2? Ou deveria o papa falecido chamar-se «(J)P-2»?