27 de Abril, 2005 Palmira Silva
Relatividades, postulados e dogmas
«A minha religiosidade consiste numa humilde admiração pelo espírito infinitamente superior que se revela no pouco que nós, com nossa fraca e transitória compreensão, podemos entender da realidade. A moral é da maior importância – para nós, porém, não para Deus». Albert Einstein numa carta datada de 5 de Agosto de 1927.
Em 1929, o cardeal O’Connel, de Boston, publicou uma declaração na qual dizia que a teoria da relatividade «encobre com um manto o horrível fantasma do ateísmo, e obscurece especulações, produzindo uma dúvida universal sobre Deus e sua criação». Apesar de pacífico aqui no DA o meu post «Relatividades e pontos de vista» provocou reacções semelhantes à do cardeal O’Connel, num post em que é criticado pelo blasfemo João Miranda.
Aparentemente o meu último parágrafo foi mal compreendido porque não ficou suficientemente explícito o que são as as «’leis’ absolutas da Humanidade» a que eu chamo de «ética consensual». Que, quiçá, é uma denominação tão pouco apropriada como teoria da relatividade para a teoria das invariâncias de Einstein.
Para tentar explicitar claramente o que eu penso serem as invariantes nos comportamentos sociais, as tais «leis» absolutas, vou mais uma vez recorrer a uma analogia com a ciência. Cuja extrapolação deve ser óbvia para os blasfemos uma vez que a maioria das ciências sociais e mesmo a economia recorrem a termos e conceitos «emprestados» da Física, em expressões tão corriqueiras como «as forças do mercado».
Suponho que os nossos leitores não duvidem que os fenómenos da Natureza obedecem a leis estritas. O objectivo da Ciência é chegar a essas leis ou, pelo menos, a leis que sejam consistentes com os fenómenos observados que, dentro das nossas limitações de observação, conhecimento e desenvolvimento científico, são o melhor que nos conseguimos aproximar das leis absolutas que regem esses fenómenos.
Por vezes para que uma lei seja consistente com todo o conhecimento científico acumulado é necessário postular, isto é, pedir. Pedir que se aceitem como verdadeiras algumas afirmativas que não se demonstram mas que, a serem verdadeiras, explicam convenientemente os fenómenos observáveis.
Por exemplo, no início do século passado Rutherford mostrou que um átomo é formado por um núcleo pequeno e denso, formado por protões (cargas positivas) e igual número de electrões (cargas negativas), orbitando a periferia. O modelo do átomo de Rutherford não era convincente porque os electrões radiariam energia sob a forma de radiação electromagnética, colapsariam sobre o núcleo e o átomo seria aniquilado. Para obstar a este «inconveniente» Niels Bohr, em 1913, apresentou um modelo que previa (quase) correctamente o comportamento do átomo de hidrogénio e que assentava em vários postulados. Um dos postulados de Bohr dizia que o electrão se pode mover em determinadas órbitas (circulares) sem radiar energia. Essas órbitas estáveis eram denominadas estados estacionários.
Mas em 1924 Louis de Broglie, um estudante de Arte Medieval que trocou as catedrais góticas por ondas electromagnéticas após ter servido como operador de rádio na 1ª Guerra Mundial, especula que a luz não é a única entidade a apresentar o dualismo onda-corpúsculo proposto por Einstein para a luz, que lhe permitiu a explicação do efeito fotoeléctrico em 1905 e o Nobel em 1921. Assim, de Broglie propõe que partículas como os electrões exibem igualmente comportamento ondulatório e apresenta a conhecida relação que tem o seu nome. E em 1926 Erwin Schrödinger adopta a proposta de de Broglie e publica um artigo com a famosa equação sua homónima aplicada ao átomo de hidrogénio. A mecânica ondulatória ou mecânica quântica nasceu no Natal de 1925 na estância alpina de Arosa, Suiça. Dois anos depois, em 1928, Dirac apresenta a equação de onda de d’Alembert sob a forma de um operador algébrico, encontrando a primeira solução para exprimir a mecânica quântica numa forma invariante sob o grupo de transformações de Lorentz da relatividade restrita. A mecânica quântica estava estabelecida, sem postulados, e o modelo de Bohr foi abandonado, sendo referido hoje apenas no âmbito da história da ciência.
Ou seja, em ciência os postulados são um meio, não um fim, para se chegar às leis absolutas, as tais que regem os fenómenos e que nós ambicionamos descobrir. E são alegremente abandonados quando se provam desnecessários. E são questionados sempre que alguém duvide da sua veracidade. E assim a ciência avança. Questionando os «dogmas» existentes e progredindo na direcção das tais leis absolutas.
Este progresso na descoberta das «leis» absolutas que regem o homem social é fortemente impedido porque a ética se confunde com a moral e esta, mesmo na sociedade mais laicizada, é ainda fortemente determinada pela religião. E na religião os dogmas são um fim, uma lei, uma verdade absoluta, e não um meio que se deve descartar quando se comprova desnecessário, anacrónico e até contraproducente. E assim a religião inibe o progresso ético da sociedade.