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6 de Junho, 2005 Palmira Silva

O Martelo das Bruxas

Os veneráveis e mui reverendos Padres e professores de teologia sagrada, Henry Kramer, da ordem dos pregadores, inquisidor da depravação herética, e James Sprenger, abade do convento dominicano de Colónia, autores daquele que é certamente um dos livros mais infames alguma vez escritos, o Malleus Malleficarum, ou o manual de caça à bruxas, usado pela Inquisição durante mais de trezentos anos, ficariam certamente muito contentes por saberem que os seus ensinamentos não foram esquecidos pelos cristãos. Não só o exorcismo continua uma prática florescente e acarinhada pelo Vaticano, em menor medida pela Igreja Anglicana, como nalgumas igrejas são recomendadas formas agressivas de exorcismo que seriam certamente do agrado de tão veneráveis cristãos: exorcismo envolvendo contacto físico (um eufemismo para tortura) com o possuído.

Uma dessas igrejas é a Igreja do Combate Espiritual, em Dalston, Londres. A Igreja, um ramo cristão fundamentalista como vemos recrudescer por esse mundo fora, nomeadamente em Inglaterra onde se acredita existirem pelo menos 300 congéneres, serve especialmente a comunidade negra oriunda da África Ocidental. Na sexta-feira três membros da Igreja foram condenados por perpetração e colaboração de abusos físicos numa menina de 8 anos, sobrinha de uma das acusadas. A pobre criança foi acusada de bruxaria e no decurso dos exorcismos foi espancada, esfaqueada, foram-lhe esfregadas malaguetas nos olhos e foi deixada à fome para exorcizar o «mafarrico» que nela se albergara.

Este não é o primeiro caso em Inglaterra de abuso físico de crianças consideradas bruxas ou possuídas. Em 2000 uma «bruxa» de oito anos morreu de subnutrição e hipotermia, com sinais claros de maus tratos físicos, que incluíam marcas de queimaduras de cigarros. Este caso levou à criação de um projecto, o Projecto Violeta, que pretende prevenir abusos físicos de crianças relacionados com a religião.

Porque como disse Debbie Ariyo, directora da organização Africanos Unidos Contra o Abuso de Crianças, parte da culpa nos maus tratos destas crianças reside nas igrejas que propiciam e encorajam crenças em bruxarias e possessão: «Se uma criança é acusada de bruxaria e a acusação é suportada pela igreja isso dá margem de manobra para a perpetração de abusos contra essa criança. Quer directamente quer indirectamente se a igreja confirma as acusações de bruxaria está a aprovar o abuso».

6 de Junho, 2005 Carlos Esperança

Campanha de terços

«Campanha de Terços a favor da Vida em Portugal»

Sob este título corre um abaixo-assinado pelo País, com o seguinte teor:

«Ajude Nossa senhora a que a liberalização do aborto não passe em Portugal.
Ofereça no mínimo um terço diário só por esta intenção até ao dia do referendo.
Escreva aqui o nome e no dia do referendo estas listas serão entregues na Capelinha das Aparições a Nossa Senhora de Fátima. [sic]
Ofereçamos milhares de Terços por dia com esta intenção.
Convide os seus irmãos a colaborar nesta campanha de Terços.»

(seguem-se linhas)

Depois de preenchida, enviar p.f. para Canção Nova, Apartado 199, Cód. Postal 2496-908 Fátima.

5 de Junho, 2005 Palmira Silva

Serendipidade II

Dotados de uma insaciável sede de explicações, desde o início da história que os homens procuram explicações. As religiões pretendem ter explicações para tudo desde cosmologia, biologia, origem da vida a razões para a existência. Assim não é de espantar que as primeiras explicações adoptadas para os fenómenos físicos fossem teológicas, por exemplo, e voltando à meteorologia, a tempestade seria explicada como um capricho do(s) deus(es) dos ventos. Mais tarde, os deuses foram substituídos por forças abstractas, a teologia pura e dura por uma versão mais palatável, a metafísica, e a tempestade explicada pela «virtude dinâmica» do ar. Finalmente, e muito recentemente na história, surge a explicação científica, que não pretende propor «causas finais», limitando-se a descrever as leis naturais invariantes às quais estão sujeitos estes fenómenos. Ora a linguagem científica de eleição para descrever essas leis é a matemática. Reivindicando para a matemática um estatuto metafísico há quem considere metafísica a ciência que a utiliza como linguagem. Esquecendo que a matemática é uma linguagem sintética e «elegante» para descrever um fenómeno, mas a matemática em si não é o fenómeno que descreve.

De acordo com a denominada (e muito contestada, pelo menos na sua versão «forte») «hipótese de Sapir-Whorf», a representação do mundo e a cultura de uma comunidade são organizadas em estreita união com a língua dessa comunidade. Ou seja, há de certa forma uma determinação linguística do pensamento. Tal como parece sugerir a citação de Wittgenstein utilizada por Godard, tal indicaria que a nossa compreensão do mundo é limitada pela linguagem com que o pensamos e descrevemos. Pessoalmente considero a formulação whorfiana demasiado redutora embora também não subscreva a versão «cor-de-rosa» da mentalese, a linguagem do pensamento, suposta universal e sem palavras, uma espécie de código máquina para o homem, proposta por Jerry Fodor nos anos setenta e desenvolvida mais recentemente por Steven Pinker.

Mas esta hipótese de Sapir-Whorf, de certa forma, aplica-se à ciência. Ou seja, a sociedade em geral não é permeada pela ciência mais formal matematicamente, como a mecânica quântica, relatividade geral ou super-cordas, porque esta expressa-se numa linguagem que não é acessível a todos e explicações que são claras em matemática são incompreensíveis em qualquer outra linguagem.

Por outro lado, a representação de um fenómeno é limitada pela linguagem usada para o descrever. Por exemplo, a mecânica quântica pode ser formulada matematicamente usando quer a mecânica ondulatória de Schrödinger quer a mecânica matricial de Heisenberg.

Só depois da publicação, em 1932, do livro «The Mathematical Foundations of Quantum Mechanics» de John von Neumann, se estabeleceu a base matemática rigorosa da teoria quântica. Neumann, considerado o mais brilhante matemático europeu, decidiu desenvolver a sua própria versão da mecânica quântica após ter assistido a uma conferência de Heisenberg sobre mecânica matricial. No livro, Neumann descreve a teoria de operadores (álgebra de Neumann) «inventada» para explicar determinados aspectos da mecânica quântica. Em grande parte devido ao seu trabalho foi provada a equivalência matemática entre o formalismo de Schrödinger e de Heisenberg.

A mecânica ondulatória de Schrödinger tornou-se a descrição mais popular por ser menos «hermética» matematicamente, mais «visualizável» e consequentemente mais fácil de entender que a mecânica matricial de Heisenberg. Usamos as funções de onda que são solução própria da equação de Schrödinger para descrever os electrões, por exemplo num átomo ou molécula, mas poderíamos usar o formalismo de Heisenberg. E isso não implica que as orbitais sejam entidades metafísicas! São apenas a representação dos electrões na linguagem de Schrödinger!

O mesmo se poderia dizer sobre a formalização matemática/geométrica de Einstein da relatividade geral que corresponde à acção da gravidade, tal como a apercebemos e descrevemos, de curvar o espaço-tempo.

Ou seja, confundir a linguagem com o fenómeno em si, o fenómeno com a sua representação e afirmar que os cientistas optam pelas explicações mais simples ou mais fáceis por razões metafísicas, que, por exemplo, a quarta dimensão do espaço-tempo é uma teoria metafísica, é um absurdo que espero ter ajudado a desmistificar!

5 de Junho, 2005 Palmira Silva

Serendipidade I

«Os limites da minha linguagem são os limites da minha mente. Tudo o que sei é aquilo para que tenho palavras» e «Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo»

Ludwig Wittgenstein in Tractatus Logico Philosophicus

Ontem à noite tive um momento de serendipidade sobre algumas dúvidas transcendentes entre ciência e metafísica que começaram a invadir a blogoesfera. Enquanto revia um clássico de Jean-Luc Godard, Duas ou três coisas que eu sei dela, mais concretamente a cena fabulosa em que Juliette observa um jovem casal, com grandes planos de uma chávena cheia do negro luminoso do café com galáxias rodopiantes de natas, ilustrada pelas elucubrações da voz off do próprio Godard:

«Mas onde começar? Mas onde começar com quê? Deus criou o céu e a terra. Claro, mas essa é a saída fácil. Deve existir uma melhor forma de explicar tudo… Nós poderíamos dizer que os limites da linguagem são os limites do mundo… que os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. E a esse propósito, qualquer coisa que eu diga deve limitar o mundo, deve fazê-lo finito».

A palavra metafísica foi cunhada casualmente por Andrónico de Rhodes, ao classificar a obra completa de Aristóteles em: lógica, física, metafísica (o que vem depois da física), moral e política. No que da obra aristotélica foi catalogado como Metafísica ou Filosofia Primeira distinguem-se ainda três subcategorias: o estudo dos primeiros princípios e das primeiras causas; o estudo do divino ou Teologia e o estudo do ser enquanto ser ou Ontologia.

As causas primeiras e princípios primeiros das coisas são quatro: causa material – matéria de que é feita uma coisa; causa formal – forma ou essência das coisas; causa eficiente ou motora; causa final – tudo no mundo se move para preencher uma necessidade. Entre as várias causas que determinam um acontecimento, a final é a mais importante, por exemplo, a causa final da chuva não é física, chove porque os seres vivos precisam de água.

As diversas ciências que se confundiam com a filosofia foram-se emancipando gradualmente da filosofia inicialmente considerada como saber universal. Primeiro a matemática, com a geometria de Euclides e a mecânica de Arquimedes, depois a física, com Galileu e Newton, libertaram-se da tutela metafísica de que dependiam. A química, separou-se da metafísica alquimia com Lavoisier. Finalmente, no século XIX, a biologia iria conquistar a sua independência, anunciada por Lamarck, desde 1802, e realizada por Claude Bernard. Hoje da Filosofia Primeira parece-me consensual que a metafísica se reduz a pouco mais que a ontologia, eventualmente a teologia e a metafísica transcendente ou das causas finais.

Qualquer confusão blasfema entre ciência e metafísica é assim ou um problema de demarcação de filosofia da ciência ou uma confusão linguística. Quiçá inspirada pela «viragem linguística» em Metafísica, expressa de modo claro por Davidson, no seu ensaio «The Method of Truth in Metaphysics», em que este afirma que uma investigação da realidade só pode ser alcançada através da investigação da linguagem.

Na realidade a linguagem, tal como o movimento, são desde sempre objecto da filosofia. Já Aristóteles, na Política caracteriza o homem, o zoon politikon (animal político), como sendo «o único entre os animais que possui o dom da linguagem». Martin Heidegger faculta à linguagem um sentido ontológico (principalmente em A caminho da linguagem, Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, 1959). Ou seja, o fulcro da reflexão heideggeriana centra-se no ser, no sentido do ser e na linguagem: a linguagem é a porta do ser, a sua percepção do mundo, em resumo, o meio privilegiado de apropriação do real.

Ou, como tão bem o coloca Vergílio Ferreira em «Invocação ao meu corpo», a realidade e o mundo são «uma proposta muda para que falada exista».

(continua)

5 de Junho, 2005 Palmira Silva

O Morgado

O post do Carlos Esperança fez-me lembrar umas certas noites longas no Botequim, o bar da saudosa Natália Correia. Mais especificamente declamações do seu poema em «honra» do deputado João Morgado, outro parlamentar do CDS, que teve uma intervenção histórica durante o debate do aborto, em que afirmou «O acto sexual só é legítimo tendo em vista a procriação».

Já que o coito – diz o Morgado
Tem como fim cristalino
Preciso e imaculado
Fazer menina e menino,
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca
Temos na procriação
Prova que houve truca-truca.

Sendo pai de um só rebento
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou – parca ração! –
Uma vez. E se a função
Faz o órgão – diz o ditado –
Consumada essa operação
Ficou capado o Morgado.

5 de Junho, 2005 jvasco

Código Da Vinci

Finalmente li.

Antes de ler, sabia algumas coisas sobre esse livro: que a ICAR o tinha colocado no «índex» (muito auspicioso, tendo em conta a enorme quantidade de obras literárias de referência que lá foi parar…); que o Umberto Eco o tinha classificado como «lixo literário» (mau prenúncio, visto que tenho uma ideia muito positiva a respeito de Umberto Eco); que era um gigantesco sucesso de vendas (embora ainda longe de superar o verdadeiro best seller – a Bíblia); e que alguns amigos mo aconselharam com vivacidade.
Sabia também que o livro deveria ser lido com um olhar crítico, pois muitos dos factos «históricos» mencionados não são necessariamente verídicos.

E lendo concluí o seguinte:

a) Não é propriamente um «marco incontornável da literatura universal»

b) Também não me parece «lixo literário» – ainda para mais tendo em conta que eu até já li um livro de Paulo Coelho e de Margarida Rebelo Pinto

c) Lê-se com prazer e facilidade

d) Recomendo a quem tiver curiosidade e tempo livre

e) Recomendo cepticismo na leitura. Convém ir procurar algumas críticas que foram feitas ao livro, para não se ficar com uma ideia distorcida de alguns factos históricos.

E sobre o ateísmo?
O livro está muito longe de ser uma perspectiva ateia sobre o mundo que nos rodeia. O autor afirma-se cristão, mas, pela leitura do livro, dá a impressão de ser alguém que aprecia o esoterismo e o misticismo «new-age». O livro não contém qualquer espécie de ataque ao racionalismo ou às posições racionalistas, mas ficamos com a impressão que não estamos propriamente perante um paladino da frieza do empirismo e da lógica cartesiana…

Quanto a ataques à Igreja Católica… quase nada. E aí reside em grande parte a força da sua ameaça para a ICAR.
O livro apresenta uma perspectiva do cristianismo muito diferente daquela que decorre dos dogmas da ICAR, mas, apesar de uma crítica ou outra que qualquer pessoa razoável considerará pertinente (a dominância masculina da condução dos destinos da ICAR, por exemplo), no geral, evita em absoluto demonizar a ICAR. Pelo contrário: os personagens da ICAR são retratados como pessoas de Fé, de valores, dispostas a sacrificar-se por aquilo que acreditam, dispostas a seguirem o que consideram ser o bem; dispostas a compreenderem os seus erros e a arrependerem-se sinceramente por estes.
Com esta postura de compreensão face à ICAR, é muito mais difícil que o leitor católico demonize o livro. E se o leitor não rejeita o livro com nojo e repulsa, pode encarar as perspectivas do livro… e questionar a forma como encara a Fé.
E é o que tem acontecido: jovens nas igrejas, nos seminários, nos confessionários, na catequese, foram relatando aos sacerdotes e professores as suas dúvidas e angústias.

E a reacção foi a que conhecemos: um ódio profundo ao livro. Acusa-se o livro de falta de respeito, acusa-se o livro de «atacar a igreja», acusa-se o livro de «enganar as pessoas», acusa-se o livro de ser uma ferramenta do Diabo. Procurem. Vão encontrar todas estas acusações e muitas outras mais que nem consigo começar a imaginar. E quando lerem o livro e virem os «ataques» à ICAR, vão provavelmente desatar-se a rir.
«Aquilo» é um ataque? Quer dizer que um crente não pode sequer conceber essas possibilidades? Não pode sequer ser sujeito àquelas dúvidas? Não pode sequer pôr isto ou aquilo em questão?

Quando a ICAR proibiu aos seus fiéis a leitura do «Código da Vinci» eu entendi isso como um sintoma de que não evoluíram tanto quanto deviam com os tempos, no sentido de conviver com a liberdade de pensamento. Agora que li o livro entendo que nem sequer «sabia da missa a metade».

4 de Junho, 2005 Carlos Esperança

Às crianças por nascer

O «Dia nacional da criança por nascer» foi uma piedosa proposta do CDS feita pelo porta-voz do partido, Paulo Núncio. (Núncio é apelido e função).

A criança por nascer
É o orgasmo reprimido
Um óvulo por haver
Ou sémen por escorrer

A criança não nascida
É a cópula frustrada
Gravidez interrompida
Ou a trompa laqueada

CDS quer castidade
Fora da reprodução,
Horror da sexualidade
Nojo da ejaculação

É o ódio que rebenta
Pelas costuras da Igreja
Sem borrifos d´água benta
Na cópula benfazeja

O Papa abomina o DIU,
Pílula, preservativo,
Condena quem não pariu
Por usar um abortivo

O sexo sem procriação
É luxúria, um pecado
Que conduz à danação
E deixa Deus chateado.

Amar, amar, ver estrelas
Barra a via à salvação
Não vale a pena pôr velas
Nem terços sobre o colchão.

4 de Junho, 2005 Palmira Silva

Crónicas fantásticas

A fantasia ou ficção fantástica é um género de literatura normalmente menorizado e relegado para literatura infantil. Basta lembrar que o livro que antecede a trilogia de «O Senhor dos Anéis» de J. R. Tolkien, «O Hobbit», está classificado nesta categoria!

O meu primeiro contacto com a fantasia, para além dos contos de fadas, aconteceu por volta dos sete anos com três livros da editora Civilização que descobri numa feira do livro: o referido livro de Tolkien, vendido como «O Duende», e dois livros de George MacDonald, «A Princesa e os Duendes» e «Curdie e a Princesa». O tema recorrente da fantasia é a luta do bem contra o mal em que, após muitas peripécias que normalmente envolvem a viagem dos paladinos do bem ao antro do mal, o bem vence. Na maioria dos livros de fantasia as alegorias do bem e do mal são completamente maniqueístas e, estranhamente, transcrevem muitos dos mitos cultivados pela comunidade essénia cujos escritos foram recentemente descobertos: os manuscritos do Mar Morto. A luta do bem contra o mal é uma luta da luz contra as trevas e a beleza física está associada ao bem. Basta recordarmos a saga das Guerra das Estrelas para confirmarmos que George Lucas seguiu à risca a «receita» mágica da fantasia, incluindo, no último episódio, o pormenor não despiciendo da tranformação física sofrida por Palpatine e, especialmente, por Anakin Skywalker.

De facto, apesar de a fantasia não ser considerada literatura «nobre», no cinema revela-se um grande sucesso de bilheteira, com pelo menos sete dos dez filmes mais bem sucedidos na história do cinema pertencendo ao género (alguns, como a Guerra das Estrelas, mais propriamente fantasia SciFi).

Tendo a fantasia o seu maior sucesso nas camadas mais jovens da população não é de estranhar que os fundamentalistas se indignem com o que consideram fantasia perniciosa, nomeadamente a série Harry Potter. Ironicamente, ou talvez não, a guerra dos fundamentalistas cristãos contra a série foi despoletada por um artigo satírico, que ridicularizava os acéfalos fanáticos, na indispensável «Cebola».

Clive Staples Lewis (1898-1963) ou C. S. Lewis é conhecido pela sua série «As Crónicas de Nárnia», publicadas em sete volumes entre 1950 e 1956. Lewis, um cristão fervoroso, escreveu a série após um debate sobre um dos seus livros estritamente religiosos, Milagres, em que foi «trucidado» por Elizabeth Anscombe. As Crónicas de Nárnia são uma forma diferente do autor transmitir a sua visão cristã do mundo.

O primeiro livro da série, O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, foi passado ao grande écran pela Disney estando a estreia prevista para Dezembro próximo. Neste episódio a acção desenvolve-se entre o Velho Testamento (Génesis) e o Novo Testamento, com o leão Aslan, o verdadeiro soberano de Nárnia que a malvada feiticeira tenta impedir de assumir o legítimo trono, no papel principal de salvador (e criador) de Nárnia. Considerado uma alegoria de Cristo, ele tem poderes de cura e prega o amor ao próximo. As crianças são os seus apóstolos, com Edmund no papel do traidor Judas. Tentado pela feiticeira através da gula Edmund torna-se numa parte fundamental da execução de Aslan, que, claro, o perdoa. E após uma morte cerimonial, com direito a via crucis, o leão sagrado ressuscita fechando e confirmando todo o círculo alegórico.

Com este filme acaba para a Disney um boicote de nove anos por uma associação de fundamentalistas cristãos, a American Family Association. Esta associação acusava a Disney de promover a homossexualidade e exigia que a Disney criasse um conselho consultivo de cristãos evangélicos. Para além, claro, de exigir que a Disney proibisse a reunião de homossexuais, GayDay, que se realiza anualmente nas suas instalações em Orlando.

Nenhuma das reinvidicações dos fundamentalistas cristãos foi atendida pela Disney mas os primeiros declaram-se satisfeitos por Michael Eisner, o director executivo de 62 anos da Disney, ter anunciado que se ia retirar em Setembro de 2006. A anunciada cisão da Disney com a Miramax, que esteve envolvida em filmes tão «ofensivos» como Pulp Fiction e Fahrenheit 9/11 também ajudou ao levantamento do boicote, mas a razão principal foi a adaptação ao grande ecrán de fantasia boa, recomendada por todos os cristãos!

Pessoalmente preferiria que a Disney tivesse continuado a transcrever em filme as «Crónicas de Prydain» de Lloyd Alexander de que fizeram um único episódio: «Taran e o Caldeirão Mágico».

3 de Junho, 2005 André Esteves

Amai-vos hormonalmente uns aos outros !!!

Ontem surgiu a notícia de um estudo científico, publicado na Nature, que revelou os efeitos sociais de uma hormona até agora pouco famosa, a Oxitocina.

Dispondo de uma forma sintética da oxitocina, Michael Kosfeld da Universidade de Zurique, realizou uma experiência em que comparou as decisões sobre o efeito da hormona (administrada sobre a forma de um spray nasal) e de um placebo. Além disso variou a interacção dos sujeitos da experiência com os experimentadores ao vivo ou através de um computador. A prova a que os experimentados foram sujeitos é uma clássica medida de confiança, a do investidor desconhecido. É dado um capital inicial a cada sujeito e um experimentador é apresentado como um investidor que se propõe multiplicar o dinheiro, sob a condição de que não será imputável no caso de quaisquer perdas. O sujeito terá de decidir se confia no investidor. As decisões de cada situação e grupo são contabilizadas e analisadas estatísticamente.

Os resultados são concludentes. Os indivíduos sujeitos ao spray nasal de oxitocina davam com maior facilidade todo o seu dinheiro (13 pessoas em 29 no grupo da oxitocina, em comparação com 6 em 29 do grupo do placebo). Além disso, quando os sujeitos que tinham inalado oxitocina interagiam com um «investidor» através de um computador o efeito desaparecia completamente, mostrando a base interpessoal do fenómeno.

A oxitocina é produzida naturalmente no cérebro humano em muitas situações, depois do orgasmo (cimentando as relações de confiança entre os parceiros), durante a aleitação (favorecendo a ligação da mãe à criança) e em todo o género de interacções sociais.

Numa perspectiva evolucionária, a oxitocina faz muito sentido. O sistema hormonal é um precursor químico do sistema nervoso que partilhamos com os seres multicelulares. O sexo é a base e a necessidade da socialização e deverá ser evolucionariamente o fulcro sobre o qual se acumulam as «inovações» evolucionárias das sociedades dos seres vivos.

Quais as consequências desta descoberta? Imensas!!

Por exemplo, permite ver o pecado original numa nova luz.
Se interpretarmos o sentimento do homem em relação à mulher, por esta o ter enganado e o ter feito ingerir o fruto do conhecimento, como um sentimento de traição: a serpente confunde-se com a mulher. E com razão… A capacidade de fingir um orgasmo nas mulheres, bem como de disfarçar o ciclo reprodutivo, em contraste com a evidente dificuldade de um homem de o fazer e à sua permanente disponibilidade, permite às mulheres colher confianças sem compromissos bioquímico da sua parte, daí a suspeita comum a todos os homens de que as mulheres os «traem» e claro, a confiança inata num relacionamento homosexual masculino, onde o compromisso bioquímico é óbvio para ambas as partes (muitos lençóis manchados).

A mulher humana assim está preparada para fazer o jogo das seduções e compromissos, que é importante se considerarmos os riscos e investimento que são necessários numa criança.

A isto está também ligado a evolução histórica do poder na sociedade humana de matriarcal a patriarcal, à qual as religiões que conhecemos estão intrinsecamente ligadas. (A base biológica da sexualidade humana não é no entanto patriarcal ou matriarcal. Somos monógamos promíscuos, com ciclos de compromisso de três anos (uma estatística invariante em todas as sociedades humanas é o das separações e divórcios em ciclos de três anos na história das pessoas. O que corresponde a uma verdade biológica: três anos é o tempo necessária para uma criança estar completamente formada e se integrar na sua família expandida, libertando os parceiros das suas obrigações mútuas), que também reflecte outros sistemas bioquímicos do cérebro: o dopamínico e o neo-opiáceo).

Se olharmos para isto, sob a óptica do problema do mal, as coisas complicam-se para Deus… Onde está o livre arbítrio? Não deu ele à mulher uma capacidade superior de enganar? Não foi ele na realidade que armou tudo? E não podemos atirar tudo, como fazem os fundamentalistas evangélicos modernos, para cima da teologia da queda (ao pecar, Adão e Eva teriam provocado uma transformação biológica em toda a natureza, fazendo com que esta morresse e envelhecesse), porque a base bioquímica da traição é o próprio amor. E Cristo é amor…

E esquecendo as lutas do esperma e do coração, vejamos o próprio acto de proselitismo, venda e conversão (como sugere António Damásio no seu comentário à Nature). Já somos manipulados bioquimicamente hoje pela publicidade e pelo marketing. A oxitocina é produzida no cérebro por meios indirectos, através de imagens e evocações: sexo, paisagens relaxantes, situações ideais entre amigos. Assim se constrói a carga de oxitocina que irá investir a confiança em marcas, figuras identitárias e produtos.

E não é o que fazem os pregadores e missionários? Constroem a confiança, através de uma imagem exterior de calma, tornam-se sex-symbols ao se investirem de todos os aspectos exteriores de um macho ou fêmea alfa: um aspecto impecável, roupa conservadora mas cuidada, a evocação de um desejo com a promessa da confiança (vejam por exemplo imagens do fundador da Opus Dei, apesar do capelo, as mangas abotoadas com punhos de ouro, o cabelo deliberadamente desalinhado, um sorriso sedutor, está tudo ali…).

Nunca me esquecerei daqueles dias de igreja em que «sentíamos» o espírito santo presente. O ambiente calmo, mas especialmente quente pela proximidade dos outros. O pastor levava-nos em ondas de actividade/passividade através do culto, até que no final do culto, olhavamos uns para os outros como verdadeiros irmãos. A produção de oxitocina era condicionada e manipulada pela figura dominante. As relações do grupo naquelas circunstâncias eram cimentadas e amplificadas.

Um domingo, resolvi não me deixar influenciar.

Quão diferentes ficaram a parecer as pessoas!
Eram as mesmas pessoas que eu encontrava durante a semana longe da igreja.
Humanas. Carne, sangue e osso.

O espírito santo estava na oxitocina dos outros.