Loading
23 de Outubro, 2005 Mariana de Oliveira

Aborto e Direito Penal

A questão que actualmente se coloca no aborto é uma questão jurídica e deve ser tratada como tal.

Para começar, há que esclarecer a função do Direito Penal num Estado de Direito Democrático. O Direito Penal não é, nem deve ser, um direito penal de prevenção de riscos especiais e longínquos e de promoção de finalidades específicas da política estadual. Ele é, isso sim, um direito de tutela de bens jurídicos, ou seja, de preservação das condições indispensáveis da livre realização, dentro do possível, da personalidade de cada indivíduo no seio da comunidade.

Isto conduz à questão da legitimação do poder punitivo do Estado. Tal poder tem fonte na exigência de que o Estado só deve retirar a cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis ao bom funcionamento da comunidade. A isto conduz igualmente o carácter pluralista e laico do Estado de Direito, que o vincule a que só recorra aos seus meios punitivos próprios para tutela de bens de relevante importância da pessoa e da sociedade e jamais para instauração e reforço de ordens axiológicas transcendentes de carácter religioso, político, moral ou cultural. O Direito Penal é, assim, um direito de «ultima ratio».

Quanto ao crime de aborto em especial, o bem jurídico que está em causa não é a vida humana, mas sim a vida intra-uterina. Actualmente, entre nós, vigora o princípio da punibilidade do crime de aborto e só nos casos previstos no art. 142º do Código Penal é admitida a IVG (causas de exclusão da culpa). Assim, nestes casos, a conduta torna-se lícita. Há aqui um conflito de valores e é esta a estrutura base comum a todas as causas de justificação e só considerando tais condutas como licitas trará coerência à exigência da intervenção de um médico e ao apoio por parte do Estado.

O princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana tem aqui refracções e há quem adira a uma concepção absolutizadora da vida humana, defendendo também uma unidade entre vida autónoma e vida intra-uterina, não existindo aqui qualquer espaço para a permissão da IVG. No entanto, o Direito Penal não é compatível com aquela santificação da vida (neste caso, seria inadmissível a legítima defesa e o estado de necessidade) e é notório que o tratamento da vida intra-uterina é diferente do da vida autónoma. Na verdade, os crimes que tutelam aqueles dois bens jurídicos encontram-se em capítulos diferentes, têm diferentes epígrafes, diferentes molduras penais, a tentativa não é punível nos crimes contra a vida intra-uterina, a negligência não é punida e não há agravamento pelo resultado – isto de um ponto de vista penal. De um ponto de vista constitucional, os Direitos Liberdades e Garantias não valem directamente e em pleno para a vida intra-uterina, há aqui uma autonomização de dois bens jurídicos.

Ainda dentro de um ponto de vista constitucional, relativamente à hipótese de um imperativo de criminalização constante na Constituição da República por via da defesa da vida, há que notar que o legislador constitucional não apontou expressamente a necessidade de intervenção penal neste assunto particular. Desta forma, onde não existam tais injunções expressas, não é legítimo deduzir sem mais a exigência de criminalização dos comportamentos violadores de tal direito fundamental. E isto porque não deve ser ultrapassado o princípio da necessidade.

A proposta apresentada pelo doutor Figueiredo Dias, o pai do Código Penal, consiste num modelo misto das indicações e prazos mais liberalizante. Até às 10 ou 12 semanas (12 semanas porque o embrião passa a feto), a gravidez pode ser livremente interrompida. Até às 16 semanas, poderia haver interrupção com indicação terapêutica em sentido amplo ou criminológico. Até às 24 semanas, o aborto seria admitido por indicação fetopática em sentido estrito. Depois das 24 semanas, se o feto fosse inviável (indicação fetopática em sentido amplo) ou houvesse necessidade de remover um perigo de morte ou lesão grave e irreversível no corpo ou saúde da mulher grávida. Neste modelo, seria supérflua uma indicação económico-social. Seria um sistema honesto face à realidade actual: seria mais honesto para a grávida, garantira o nascimento de um maior número de nascituros e que estes vivessem a vida mais dignamente possível. É que aqui, a mãe teria mais tempo para ponderar e acabaria por ser vencida pelas contra-motivações.

Também não é possível falar no interesse do nascituro e do da grávida como se fossem realidades distintas. Os interesses do nascituro só podem ser satisfeitos no interesse e por intermédio da grávida (há uma dualidade na unidade: seres diferentes, mas um suporta o outro). Durante algum tempo, deve predominar a unidade da grávida e a decisão deve caber a ela. Depois, a dualidade predomina e só em casos contados deve o interesse do nascituro ser sacrificado.

Para além disso, deveria haver um sistema organizado de aconselhamento da grávida no serviço público

O doutor Figueiredo Dias também observa que a punibilidade da IVG nas primeiras quatro semanas é algo meramente simbólico: manter a punibilidade naquele período é algo de concretização impossível, totalmente ineficaz, desnecessário do ponto de vista do bem jurídico e talvez inconstitucional (art. 18º/2).

É óbvio que a criminalização do aborto não está a resultar e que há um grande número de abortos clandestinos que, as mais das vezes, acabam com a morte da mulher. Assim, o direito penal não está a cumprir a sua função e a existência de pena não está a servir como prevenção especial de socialização nem como prevenção geral positiva. Desta forma, como a criminalização é inconsequente, ela deveria deixar de vigorar nos termos actuais e o Estado deveria encontrar outras formas para evitar o recurso à IVG.

Como conclusão, creio que devemos deixar a questão do aborto para quem deve decidir: a mulher e, se existir, o pai. O Estado não tem legitimidade para obrigar uma mulher a dar à luz contra a sua vontade, independentemente das circunstâncias em que houve concepção e de todas as excepções consagradas no Código Penal.

23 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Mais dilemas para os católicos

Mais dilemas morais, impossíveis de resolver através do sofismático «duplo efeito», esperam os católicos devotos. De facto a FDA, o organismo regulador dos medicamentos e práticas médicas nos Estados Unidos, aprovou na quinta-feira o primeiro transplante de células estaminais fetais em cérebros humanos, uma técnica que a conhecer sucesso permitirá num futuro próximo o tratamento de muitas doenças neuronais, genéticas e degenerativas.

Os pacientes a serem transplantados são crianças que sofrem de uma doença genética rara e fatal, denominada doença de Batten, que torna as infortunadas vítimas cegas, sem fala e paralisadas antes de as matar, na sua variante mais comum antes da pré-adolescência.

Os médicos do Centro Médico da Universidade de Stanford, Califórnia, implantarão os cérebros das de outra forma condenadas crianças com células estaminais neuronais, imaturas e saudáveis, retiradas de fetos abortados. Os médicos esperam que estas células estaminais prossigam o seu desenvolvimento nos cérebros hospedeiros produzindo o enzima impossível de transcrever (fabricar) dos genes defeituosos. Enzima que é necessário para processar o «lixo» produzido pelas células cerebrais, que sem tratamento se acumula e vai matando os neurónios da criança, diminuindo-lhe as funções biológicas até à morte. Não há qualquer outro tipo de tratamento para esta doença!

Fico na dúvida se o novo Papa, que já declarou que uma das prioridades do seu papado será exactamente a bioética, que prepara um novo documento sobre o tema, que debitou uma profusão de documentos, entrevistas e declarações sobre o assunto, irá instruir os fiéis da Igreja de Roma para deixarem morrer os seus filhos e não os sujeitarem a esta pecaminosa e imoral interferência no desígnio divino.

Aliás, existe um documento oficial do Vaticano dizendo explicita e inequivocamente que quaisquer tratamentos baseados em células estaminais embrionárias são absolutamente ilícitos. Parecer-me-ia complicado aos teólogos do Vaticano produzir um sofisma que os torne lícitos no caso de células estaminais fetais!

Mas aparentemente só em relação às mulheres «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social». E talvez como no caso das vacinas preparadas a partir de fetos abortados, o Vaticano consiga produzir um documento tortuoso permitindo práticas «imorais». De facto, embora ordenando os católicos a lutarem contra as companhias que produzem imoralmente tais vacinas, especialmente a vacina contra a rubéola para que não há alternativas «morais», o Vaticano permite a vacinação «imoral» de crianças católicas através de outro sofisma rebuscado.

Sofisma que afirma que a obrigação moral de evitar colaboração material passiva com um «crime»(ser vacinado com uma vacina ilícita) não é obrigatória se existir um inconveniente grave. Acrescentando que este é um caso de razão proporcional, uma extrema ratio, justificável num contexto de «coerção moral da consciência dos pais que são forçados a agir contra a sua consciência ou então pôr em risco a saúde dos seus filhos e de toda a população. Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada tão cedo quanto possível».

Os desenvolvimentos científicos verificados no século passado tornaram impossíveis de aceitar pelos crentes posições como a do Papa Leão XII que durante uma epidemia de varíola em 1829, decretou que «aquele que permitir ser vacinado deixa de ser um filho de Deus» já que «A varíola é um julgamento de Deus e a vacinação é um desafio ao Céu» argumentando que a vacinação era uma interferência inadmissível na vontade divina.

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto III- gravidez ectópica

Depois de no post anterior ter afirmado que a posição da Igreja Católica face ao aborto é um sólido e rotundo não em todas as circunstâncias convém esclarecer que esta oposição é absoluta em relação a interrupções directas da gravidez mas existe um aceso debate sobre a «moralidade» dos abortos indirectos.

O que é e em que assenta a moralidade de um «aborto indirecto»? Um artifício rebuscado e falacioso que consiste em pretender que certos procedimentos médicos que resultem indirectamente na morte do feto ou do embrião podem constituir uma escolha moral via o princípio do «efeito duplo». Este afirma que uma acção directa promovida por uma razão moral pode ter um efeito inevitável, não intencional, indirecto e negativo.

De acordo com a Enciclopédia Católica uma acção envolvendo um efeito duplo só é moralmente aceitável se obedecer aos seguintes requisitos:

– Os efeitos negativos não são desejados e são efectuados todos os esforços razoáveis para os evitar.
– O efeito directo é positivo
– O efeito negativo não é um meio de obter o efeito positivo
– O efeito positivo é pelo menos tão importante quanto o efeito negativo

Assim, no caso de uma gravidez em que se descobre que a gestante tem um cancro no útero que se não for removido antes da viabilidade do feto causará a morte da mulher a maioria dos teólogos afirma que é uma escolha «moral» remover o útero para evitar a morte da gestante, não obstante a consequência colateral da morte do feto. A Enciclopédia Católica põe como ressalva os casos em que o procedimento impede um possível baptismo do feto, um efeito tão negativo que se sobrepõe ao efeito positivo de salvar a vida da mãe!

O problema de aplicação deste efeito duplo em casos que para qualquer outra pessoa pareceriam óbvios é evidente na gravidez ectópica, bastante frequente infelizmente, sendo a causa principal de morte de mulheres durante o primeiro trimestre de gravidez. Em cada 40-100 gravidezes ocorre uma gravidez ectópica, uma gravidez extra-uterina, frequentemente uma gravidez em que o embrião se fixa nas trompas de Falópio. Este embrião não tem qualquer hipótese de sobrevivência e a mulher corre risco certo de morte se não abortar espontaneamente antes de o embrião crescer o suficiente para provocar a ruptura da trompa.

Uma vez que a Igreja Católica não tem instruções oficiais sobre que tratamentos são lícitos ou ilícitos neste caso existem duas interpretações possíveis. A mais «progressista» exige que a gestante «respeite a vida do filho» e como tal os tratamentos «directos», que envolvem a administração de um mero comprimido ou uma pequena incisão no umbigo e subsequente remoção do feto da trompa, são proibidas. Para ser possível aplicar o «duplo efeito» numa gravidez ectópica um médico católico «progressista» deve proceder à ablação da trompa onde está implantado o embrião, que envolve uma cirurgia demorada e complexa. Ou seja, é indispensável sujeitar a gestante a uma mutilação e cirurgia desnecessárias apenas para satisfazer as convolutas (i)moralidades católicas.

Imoralidades claramente falaciosas na opinião de bioéticos reconhecidos, como Peter Singer da Universidade de Princeton. Que afirma «A distinção entre efeito directo intencional e efeito indirecto é um artíficio. Não podemos evitar responsabilidade simplesmente dirigindo a nossa intenção para um efeito em vez do outro. Se prevemos ambos os efeitos devemos assumir responsabilidade por todos os efeitos prevísiveis das nossas acções».

De qualquer forma a moralidade do duplo efeito é a interpretação «progressista». A interpretação tradicional da Enciclopédia Católica, afirma categoricamente que é ilícita qualquer intervenção numa gravidez ectópica, em que o embrião é «um agressor injusto» mas o efeito negativo (matar o embrião) é o meio de obter o positivo (salvar a mãe).

Todas estas questões (e mais algumas não mencionadas) conjugadas com a explosão do número de instituições de saúde religiosas nos Estados Unidos (generosamente financiadas com dinheiro público pelas administrações Bush), em que as católicas que correspondem a 18% de todos os hospitais e 20% das camas em solo norte-americano, preocupam algumas associações norte-americanas. Instituições católicas que se regem por uma directiva emanada da conferência de Bispos católicos americanos que tem uma secção muito detalhada (e muito nociva) sobre saúde reprodutiva da mulher…

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto II

A posição da Igreja Católica sobre o aborto, em qualquer momento da gravidez sejam quais forem as razões que o motivem, violação, incesto ou para salvar a vida da mãe, é sempre um sólido não. Em países europeus, em que tal posição não seria aceite pela opinião pública, não a explicitam em todos os detalhes, mas em países do terceiro mundo podemos apreciar sem disfarces toda a extensão desta aberração.

Um exemplo de quão imoral é a posição da Igreja em relação ao aborto pode ser ilustrado com um caso recente. Em finais de 2002 uma criança de 8 (oito!) anos foi violada na Costa Rica e ficou grávida (e infectada com doenças sexualmente transmíssiveis) em consequência de tão abjecto acto.

Os pais, com o auxílio de organizações não governamentais, conseguiram levar a criança de volta para o seu país de origem, a Nicarágua, e interromper a gravidez da criança numa clínica privada, depois de um painel de três médicos ter declarado que a vida da criança corria grave perigo quer levasse a gravidez a termo quer a terminasse. De facto, na Nicarágua, um país católico em que a Igreja Católica detém uma influência (nefasta) considerável, ainda são permitidas interrupções de gravidez em que a vida da mãe ou do feto corram «risco imediato». Claro que a «santa» Igreja local, que segue estritamente os ditames do Vaticano, pretende que a lei criminalize até esta possibilidade de aborto que, nas palavras do Bispo Abelardo Mata «é um crime abominável mesmo quando disfarçado por atenuantes pseudo-humanitárias como aborto terapêutico»

A posição da Igreja Católica foi a prevísivel de tão piedoso conjunto de celibatários. Pela voz do Cardeal Miguel Obando y Bravo, excomungou todos os envolvidos: os pais da criança, os médicos, os membros das ONGs, incluindo a Women’s Network Against Violence. O mui influente Cardeal pressionou ainda o governo da Nicarágua para proceder criminalmente contra os envolvidos, depois de ter enviado aos dirigentes da Nicarágua uma carta aberta em que afirma que o «crime» cometido pelos pais da criança é equivalente aos ataques por bombistas suicidas!

A excomunhão foi posteriormente levantada devido às ondas de indignação contra a Igreja que tal acto levantou, especialmente em Espanha, que incluiram uma petição assinada por 26 000 católicos que, face à actuação da Igreja, pediam para também serem excomungados.

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto I

tinha referido que para Igreja de Roma a mulher não detém qualquer tipo de direitos sobre o seu útero e quando digo qualquer tipo de direitos refiro-me aos ditames da Congregação para a Doutrina da Fé, liderada à altura pelo actual Papa, que explica muito claramente que nem em caso de uma futura gravidez acarretar morte certa para a mulher é permissível a um médico católico proceder à ablação do útero (laqueação das trompas é sempre proibido). Indicando que «A opinião contrária, que considera as supracitadas práticas referidas nos números 2 e 3 como esterilização indirecta, lícita em certas condições, não pode portanto considerar-se válida e não pode ser seguida na praxe dos hospitais católicos.».

O que a maioria dos nossos leitores certamente não conhecerá são as disposições aberrantes da Igreja de Roma em relação a situações que qualquer pessoa normal consideraria obviamente não problemáticas. Refiro-me à gravidez ectópica, ou gravidez fora do útero, normalmente nas trompas de Falópio, ou a casos em que é impossível sobreviverem mãe e feto.

A questão não é académica porque os hospitais católicos são obrigados a seguir as normas ditadas de Roma e estas normas, como veremos, são, não apenas nos exemplos que se seguem, completamente inadmissíveis.

Na sua encíclica Humanae Vitae, o Papa Paulo VI escreveu: «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social (…) o aborto, mesmo por razões terapêuticas, deve ser absolutamente proibido». Ou seja, quando um parto corre mal, o feto não tem hipóteses de sobrevivência e os médicos são confrontados com as opções:

  • Matar o feto e salvar a vida da mulher;

  • deixar a natureza seguir o seu curso e assistirem à morte de ambos, parturiente e feto,

a única decisão moral, a ser seguida em hospitais católicos, é a última.

Como é indicado na Enciclopédia Católica nem mesmo quando o feto é «um agressor injusto» (gravidez ectópica, a que voltarei) e quando «pareça desejável salvar a vida da mãe» é legítimo matar o feto. Indicando as decisões do Tribunal do Santo Ofício, a autoridade em semelhantes assuntos à data, de 28 de Maio de 1884 e de 18 Agosto de 1889, em relação à pergunta do Cardinal Caverot de Lyons se era legítimo matar o feto para salvar a mãe. A resposta foi não! Essa parece ser também a posição da sucessora do Santo Ofício, a Congregação para a Doutrina da Fé, que confirma que tal prática não é admissível nem em casos de «problemas sérios de saúde, por vezes de vida ou de morte, para a mãe».

Aliás esta tem sido consistentemente a posição da Igreja do Roma sobre a questão «É lícito matar o feto para salvar a vida da mãe?» desde que o avanço médico a proporcionou, expressa não só nos supramencionados documentos mas também na carta encíclica Casti Conubii (1930) do pio Pio XI, reiterada em 1951 pelo papa Pio XII, o tal que manteve um silêncio ensurdecedor em relação ao Holocausto mas foi muito vocal na sua condenação de tal possiblidade1.

Posição que se mantém até aos dias de hoje e, se possível, é ainda mais explícita na encíclica Veritatis Splendor (1993) onde o Papa João Paulo II afirma que o aborto é intrinsecamente mal e que não há excepções que o permitam. Para vincar bem o facto parece reclamar da sua infalibilidade na encíclica de 1995 Evangelium Vitae, em que se pronuncia sobre qualquer forma de aborto qualquer que seja a razão que o motive:

«Assim, pela autoridade que Cristo conferiu em Pedro e seus sucessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral (…) Nada e ninguém pode de alguma forma permitir a morte de um ser humano inocente, seja um feto ou um embrião».

Aliás por isso João Paulo II canonizou Gianna Beretta Molla com o título Mãe de Família, uma mãe que deve ser o paradigma das mulheres cristãs, que confrontada com uma gravidez que se levada a termo resultaria na sua morte se «sacrificou» cristãmente!

A parte curiosa tem a ver com casos em que apenas um, a mãe ou o feto, pode ser salvo. Neste casos, como nos informa Uta Ranke-Heinemann, a Igreja decretou que a criança tem precedência. A razão não é tanto salvar uma vida mas, seguindo a doutrina agostiniana da condenação eterna de bébés não baptizados, permitir o baptismo do feto. De facto, de acordo com o teólogo (século XX) cardeal Bernhard Haring, a mãe deve submeter-se a qualquer prática, incluindo as de consequências mortais, que permita o baptismo do feto. Haring responde assim à pergunta retórica de Pio XI na encíclica Casti Connubii «O que poderia ser razão suficiente para justificar a morte directa de uma pessoa humana?». A resposta do piedoso cardeal é o baptismo de um recém-nascido, como indica no seu livro «A Lei de Cristo», em que assevera que uma mãe deve arriscar a sua vida para permitir o baptismo do feto.

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann.

21 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

Ecumenismo

O ecumenismo de que o Vaticano se reclama não é mais do que um golpe publicitário para a hegemonia que procura, a tentativa de reunir forças para liderar a cruzada contra o ateísmo e a laicidade.

Não há ideologia mais odiada do que o ateísmo nem postura que mais descontrole o clero que a indiferença perante os dogmas e as sotainas.

As três regiões do livro são idênticas na sua intolerância, no ódio à liberdade e ao livre pensamento, na obsessão prosélita e na presunção de que cada uma é a verdadeira.

As sociedades ocidentais, na sua luta pela liberdade e emancipação, limaram as garras eclesiásticas, contiveram a prepotência religiosa e empurraram o Papa para o Vaticano.

Os protestantes, após as guerras da reforma e contra-reforma, em que o ódio cristão explodiu em torrentes de sangue, foram-se reduzindo à liturgia e à oração e perderam o fervor que agora regressa impetuosamente através de seitas cada vez mais agressivas.

O islão, inculto e radical, misógino e beato, impõe cinco orações diárias, o poder do clero e uma legião de dementes submissos às crueldades do Corão – um livro execrável que apela em quase todas as páginas à destruição dos infiéis, da sua religião, cultura e civilização, assim como dos cristão e judeus, em nome de um Deus misericordioso.

Os islamistas não são piores do que os cristãos ou os judeus, apenas se mantêm na Idade Média, com maior medo dos parasitas que pregam nas mesquitas do que do Deus que está no Paraíso com 70 virgens e rios de mel à sua espera.

A tragédia da humanidade não está nos crentes, está na droga das religiões e nos charlatães que as promovem e impõem.

21 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Europeu do Ano

A votação para Europeu do Ano pode ser feita através da Voz da Europa até ao próximo dia 11 de Novembro.

A votação inclui para além da escolha do Europeu do Ano a escolha de candidatos em muitas outras categorias e cada voto só é válido quando todas forem preenchidas. Sendo o tema das patentes de software um que me é caro segui boa parte das recomendações disponíveis no site Não às patentes de software!

Como a Oracle acredito «que a existência de leis de direito de autor e de protecção do segredo comercial, em oposição à lei de patentes, são mais adequadas à protecção do desenvolvimento de programas informáticos» assim como subscrevo integralmente a sua política de (não) publicação de patentes de software: «A lei de patentes dá aos inventores o direito exclusivo à nova tecnologia em troca da publicação da tecnologia. Isto não é o mais adequado para indústrias como as de desenvolvimento de software onde as inovações ocorrem de forma acelerada, podem ser realizadas sem grande investimento de capital, e tendem a ser combinações criativas de técnicas já conhecidas.».

Assim votei sem hesitações em Florian Müller da NoSoftwarePatents.com para Campaigner of the Year mas quando chegou à parte da escolha do Europeu do Ano hesitei uns segundos entre José Luis Rodriguez Zapatero (que já tinha escolhido para Estadista do Ano) e Florian Müller. Não obstante ser acerrimamente contra as patentes de software, o meu voto foi para Zapatero!

A coragem de Zapatero no confronto com a (até aí) toda poderosa delegação local da Igreja de Roma em defesa dos direitos humanos e da laicidade do estado merece, na minha opinião, a sua designação como Europeu do Ano!

20 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Leitura recomendada

Está disponível em português na Crítica, Revista de Filosofia e Ensino, a primeira parte de um artigo simplesmente a não perder que põe a descoberto a verdadeira agenda dos neo-criacionistas disfarçados de IDiotas. Escrito por um dos mais prestigiados evolucionistas da actualidade, o cientista da Universidade de Chicago, Jerry Coyne, «A fé que não tem coragem de se mostrar», é a primeira parte de um artigo que recomendo vivamente aos nossos leitores! Artigo que se inicia explicando a fundamentação religiosa da guerra da evolução em foco nos Estados Unidos:

«Exactamente oitenta anos após o processo de Dayton, Tennessee, que ficou conhecido como o John Scopes ‘monkey trial’, a história está prestes a repetir-se. Numa sala de audiências em Harrisburg, Pennsylvania, desde fins de Setembro cientistas e criacionistas travam uma luta para saber se e como os estudantes do liceu, em Dover, irão aprender a respeito da evolução biológica. Poder-se-ia presumir que estas batalhas tinham acabado mas isso seria subestimar o furor (e a ingenuidade) dos criacionistas escarnecidos.

O julgamento Scopes dos dias de hoje – Kitzmiller e outros contra Distrito Escolar da Zona de Dover e outros – começou de forma inócua. Na primavera de 2004, a comissão de revisão do manual escolar do distrito recomendou que um novo manual escolar comercial substituísse o obsoleto manual de biologia.

Na reunião do conselho de instrução, em Junho, o presidente da comissão curricular, William Buckingham, queixou-se de que o livro proposto para revisão estava ‘estreitamente ligado ao Darwinismo’. Depois de desafiar a audiência para que recuasse nas suas origens até ao macaco sugeriu que um manual mais apropriado deveria incluir a teoria bíblica da criação. Quando foi questionado sobre se isso poderia ofender aqueles que professassem outras crenças, Buckingham retorquiu: ‘Este país não foi fundado sobre as crenças muçulmanas ou sobre a evolução. Este país foi fundado a partir da Cristandade e os nossos estudantes devem ser ensinados como tal’. Uma semana mais tarde, defendendo o seu ponto de vista, Buckingham alegadamente argumentou: ‘Há dois mil anos alguém morreu numa cruz. Será que ninguém pode defendê-lo?’. E acrescentou: ‘Em lado algum a Constituição exige a separação entre a igreja e o estado’»

Agradeço efusivamente ao Renas e Veados a indicação deste artigo fabuloso!

20 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Tom Cruise na mira de Andrew Morton

De acordo com fontes bem informadas (e munidas de uma câmara com uma excelente lente) Andrew Morton, o ex-jornalista do tablóide britânico Daily Mail que virou biógrafo (por vezes não autorizado) de celebridades sortidas prepara uma biografia de Tom Cruise.

A crer em afirmações recentes de Morton, que foi ouvido a arengar contra a Igreja da Cientologia, que classificou de totalitária (eu recorreria a outro tipo de epítetos) e a comparar Tom Cruise com Charles Lindbergh, o famoso aviador que deu nome ao aeroporto de San Diego mas que foi simultaneamente um simpatizante do fascismo, não são necessárias grandes capacidades dedutivas para prever que este não vai ser um livro muito lisonjeiro quer para Cruise quer para a Cientologia. Acho que eventualmente este será o primeiro livro de Morton que considerarei ler!

De facto Morton foi avistado num dos cafés de culto em Venice (Califórnia) com dois críticos reconhecidos da Cientologia, Paul Barresi e o advogado Graham Berry. Paul Barresi foi sujeito às habituais tácticas de intimidação da Cientologia após ter afirmado ter mantido uma relação de dois anos com outra das celebridades cientologistas, John Travolta, e assediado até ter retractado as afirmações. Graham Berry foi advogado de defesa de um dos psiquiatras citado no artigo demolidor sobre Cientologia publicado pela Time e a partir daí foi alvo de vinganças mesquinhas dos fanáticos crentes em Xenu, que desceram ao ponto de espalharem panfletos na zona de residência de Berry acusando-o de ser pedófilo.

Parece pouco provável que Morton, que resistiu estoicamente até a um assalto à sua casa na altura em que preparava a biografia de Diana, seja demovido das suas intenções pelo jogo duro e sujo da Cientologia. E essas intenções parecem ser a exposição das imbecilidades da Cientologia e das tácticas por esta usada para intimidar os que se atravessam no seu caminho dourado… para uma conta bancária com muitos zeros.

20 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Manobras de marketing

Numa Grã-Bretanha em que o número de crentes na exegese da Igreja de Roma decresce com uma velocidade vertiginosa, em que os seminários estão às moscas e procuram candidatos em países mais pobres devotos, urgem medidas de marketing que captem clientes para encher os depauperados cofres das dioceses.

Nada melhor para captar e fidelizar os clientes que a oferta de um produto local e assim o Vaticano prepara-se para produzir o primeiro santinho inglês pós-reforma, o Cardeal Newman (1801-1890), o padre que chocou a sociedade vitoriana convertendo-se ao catolicismo e que previu o advento de uma «segunda Primavera» do catolicismo em Inglaterra.

Newman é candidato a santinho já há uns anos mas, não obstante a prodigalidade com que o finado Papa distribuiu beatificações e canonizações pelos quatro cantos do globo, a míngua de milagres impediu a concretização do primeiro passo para a santidade. Mas a situação desesperada da delegação britânica da Igreja de Roma exige medidas desesperadas de forma que, milagrosamente também, surgiu recentemente o testemunho de um clérigo da diocese de Boston que asseverou ter recuperado de uma maleita das costas depois de interceder junto ao piedoso e presciente Newman.

Só não percebi porque razão Paul Chavasse, o padre responsável pela causa de Newman, diz que o padre americano não pode ser nomeado. Um padre de Boston que não quer ou não pode ser nomeado, atendendo à dimensão do escândalo da pedofilia que abalou e quase levou à bancarrota a diocese local, parece-me um pouco estranho!