Loading
2 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Dois anos de Diário Ateísta

O aniversário do Diário Ateísta serviu para vómitos de raiva beata bolsados nos mais execráveis antros da blogosfera.

Devotos que gostariam de fazer do crucifixo material de construção ou, no mínimo, substituir com ele o papel de parede, destilaram ódio, insultaram os autores do Diário Ateísta e ameaçaram com agressões físicas.

As santas alimárias não se deram conta de que ressuscitaram o espírito das cruzadas e expuseram o desvelo inquisitorial que lhes vai no íntimo.

Quero crer que tenha sido uma remessa de hóstias estragadas, com o prazo de validade excedido, que lhes avariou o fígado depois de perderem os neurónios com a embriaguez mística.

As autoridades de saúde deviam tomar precauções relativamente à «sagrada espécie», exigir análises bacteriológicas e obrigar à certificação com o código de barras.

Não podemos deixar que os poucos católicos fundamentalistas se envenenem com um placebo que designam como «alimento da alma». Fazem falta à diversidade zoológica.

1 de Dezembro, 2005 pfontela

Bom senso europeu

A União Europeia emitiu um comunicado onde desautorizou completamente toda a política americana de prevenção à SIDA. Pela primeira vez a Europa afirma com todas as letras que os programas de abstinência promovidos pela administração de Bush não são eficazes e que devem ser rejeitados pelas nações que desejam proteger os seus cidadãos.

Neste momento a União Europeia considera como prioridades o uso do preservativo (absolutamente fulcral), educação sexual e cuidados de saúde reprodutiva. Considera-se ainda como extremamente preocupante a ressurgência de mensagens enganadoras e sem validade empírica no que toca à prevenção do VIH. Uma óbvia referência aos programas americanos. Convém referir que dois terços da ajuda americana neste campo são usados exclusivamente para a promoção da abstinência. Trata-se acima de tudo da promoção de um modelo religioso sobre a capa de ajuda humanitária.

Vale a pena citar as palavras da secretária europeia para o desenvolvimento internacional, Hillary Benn :

«… não acredito que as pessoas devam morrer porque têm sexo.»

E tudo vai bater nesse ponto, neste momento a política humanitária americana está a ser comandada por um dogma religioso (é a própria ONU a afirmá-lo) e está a causar estragos incríveis nas zonas mais afectadas pela doença ao cortar os fundos para os meios eficazes (leia-se – preservativo).

Felizmente que e União Europeia se dissociou claramente do programa de evangelização norte americano, que haja pelo menos uma voz forte e sensata na comunidade internacional.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo – O legado árabe

A destruição pelos árabes de uma biblioteca da dimensão da de Alexandria parece pouco plausível se considerarmos que a civilização árabe recriou em Bagdad o ambiente académico de Alexandria, criando infraestruturas apropriadas à livre, cosmopolita e multi-religiosa difusão e desenvolvimento de conhecimento. Aliás, era então praxis muçulmana tolerar as culturas e religiões dos povos conquistados e, ao invés de a aniquilar, os muçulmanos assimilaram a cultura, nomeadamente científica, que encontraram nas regiões conquistadas.

Assim, nos primórdios da civilização árabe (identificada com islâmica) a esmagadora maioria dos matemáticos e sábios «árabes» praticavam outras religiões e escreviam numa língua diferente do árabe. Por exemplo, quando a Arménia foi conquistada cerca de 640 já o geógrafo e matemático Anania de Shirak teria escrito, em arménio, o seu livro sobre aritmética.

Só em 762 o árabe passou a ser a língua oficial de todo o império islâmico pela mão do califa abássida al-Mansur (754-775) que transferiu a capital para a recém-criada Bagdad. Tanto al-Mansur como os califas subsquentes, especialmente o califa Harun ar-Rasid (786-809), promoveram o desenvolvimento das ciências da natureza. No califado deste último Bagdad comecou a ser transformada no epicentro da difusão de conhecimento com a criação de uma importante biblioteca, contendo diversos manuscritos provenientes, entre outros, do império Bizantino. Nessa altura numerosos sábios e tradutores, professando religiões sortidas, e vindos de diversas regiões não apenas do império árabe, reuniam-se em Bagdad, que substituiu Alexandria como centro de saber.

O filho de ar-Rasid, o califa al-Mamum, fundou uma espécie de academia, Bayt al-Hikma, a Casa da Sabedoria, em cujas funções se incluia a tradução de textos diversos, especialmente gregos e indianos, e que dispunha de um muito bem equipado observatório astronómico

Assim, aquilo a que chamamos matemática árabe não o é de facto mas sim matemática escrita em árabe. Os algarismos ditos árabes correspondem à numeração indiana cuja primeira referência (excluindo o zero) fora da Índia, cerca de 662, se deve a Severus Seboht, originário de Nisibis, Mesopotâmia, que para além de versar sobre matemática escreveu, a partir de fontes gregas, babilónicas e sânscritas, obras de astronomia, de geografia e um tratado sobre o astrolábio.

Mas a Casa da Sabedoria produziu obras originais fundamentais como o primeiro tratado de álgebra (de al-jabr, que significa restauração), Hisab al-jabr w’al-muqabala, da autoria de um dos primeiros matemáticos da Casa da Sabedoria, Abu Abdullah Mohammed ben Musa al-Khwarizmi de que existem várias traduções em latim datadas do século XII. Aliás, o termo algoritmo deriva de uma corrupção latina do nome do matemático, inscrita numa obra do século XIII, sem título, que se encontra na Biblioteca da Universidade de Cambridge, que se inicia com as palavras Dixit Algorismi, ou Algorismi (al-Khwarizmi) disse. Poderia citar inúmeros matemáticos brilhantes fruto da Casa da Sabedoria. Mas relembrarei apenas Jemshid Al-Kashi, que propôs a resolução de equações cúbicas por iteração, métodos trigonométricos e também pelo método conhecido hoje como «método de Horner». Este método tem uma forte influência chinesa, indicando que a matemática chinesa da dinastia Sung foi assimilada no mundo islâmico.

Para além da matemática, a medicina e a astronomia eram as ciências em destaque na Casa da Sabedoria. O famoso Muhammad Ibrahim al-Fazari redigiu a sua primeira obra de astronomia, intitulada as-Sindhind al-kabir, a partir da tradução do livro sânscrito Brahmagupta. A medicina era uma ciência nobre a tal ponto que o kahim-bashi, o médico chefe, era um dignitário com poderes na corte do califa muito semelhantes aos de um primeiro-ministro. Aliás, as bases para a revolução intelectual no Ocidente situam-se na Espanha do século XII, à época ainda um importante centro da ciência árabe, e os seus principais mentores, o cordobês Averrois e Avicena, cujo Canon de Medicina foi traduzido para o latim no final do século XII e foi estudado nas universidades europeias até o século XVII, são ambos, para além de filósofos, médicos reconhecidos.

Assim, devemos à civilização árabe, tolerante e sem conflitos de autoridade com a ciência, a manutenção e recuperação de todo o saber de outra forma perdido em orgias de fé cristã, guardado em numerosas bibliotecas na forma de preciosos manuscritos gregos, traduções em árabe para além de livros da ciência árabe. Bibliotecas acessíveis a todos, vulgar cidadão, professor ou estudante. Cada cidade tinha a sua própria biblioteca onde todos podiam consultar os livros ou mesmo requisitá-los. A biblioteca de Córdoba, fundada em 965, constituiu a terceira biblioteca do mundo islâmico. E foi a semente para a recuperação da ciência proscrita e para o despertar da Europa das longas trevas intelectuais impostas pelo cristianismo.

Os árabes tiveram pois um papel inestimável na história da ciência, já que traduziram, fielmente e sem interpolações, os clássicos gregos (Apolónio, Arquimedes, Euclides, Pitágoras, Ptolomeu e outros). Estes clássicos estariam perdidos sem os árabes, não só devido ao encerramento da escola de Atenas, último reduto do paganismo, pelo imperador romano do Oriente Justiniano (483-565) cujo lema era «Um Estado, uma Lei, uma Igreja» e por conseguinte foi um feroz perseguidor de judeus, pagãos e hereges, como também à posterior destruição das obras consideradas heréticas de alguns destes pensadores.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois mil anos de obscurantismo – os primeiros anos

Alguns dos nossos leitores insurgiram-se contra os termos em que o Carlos assinalou a passagem do 2º aniversário do Diário Ateísta e que dá título a este primeiro post devotado ao tema.

Devemos desculpas a esses leitores: na realidade não foram dois milénios de obscurantismo, nem sequer 1700 anos, desde que Constantino criou o catolicismo tal como o conhecemos hoje, numa tentativa de manter a unidade do Império Romano. Talvez possamos fazer coincidir o despoletar do obscurantismo com o início da Idade Média, situada por muitos historiadores em 395, data da morte de Teodósio, o Grande, imperador do Ocidente e do Oriente, que uns anos antes reconheceu o cristianismo como religião oficial do Império Romano e baniu os templos pagãos.

Na minha opinião, devemos traçar o declínio intelectual ocidental e o início da longa «noite de mil anos» cristã ao Natal de 800, data em que Leão III coroou o rei franco Carlos Magno como imperador do Sacro Império Romano, investindo-o da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. O Sacro Império Romano durou mil anos até declinar em 1806 e a coroação de Carlos Magno marcou a data em que o papado se tornou o principal centro de poder espiritual e temporal da Idade Média. E alargou a toda a Europa o obscurantismo cristão vigente desde o início da Idade Média e até aí confinado às zonas de influência directa dos fanáticos cristãos.

Podemos dividir as causas desse obscurantismo em razões biológicas, que serão abordadas num próximo post, e razões a que chamarei socio-culturais. Na realidade a divisão é apenas de conveniência explicativa uma vez que ambas estão intimamente interligadas.

Começando então pelas causas socio-culturais que basicamente se podem resumir ao estrangulamento da difusão do saber e à censura dos (poucos) textos científicos preservados em território cristão. E passo a explicar porque atribuo ao cristianismo o estrangulamento na difusão do saber que grassou na Europa e foi depois exportado para os territórios colonizados pelas potências europeias, Portugal incluído, com uma análise do que se passava no pré-cristianismo e nos territórios não sujeitos à influência nefasta deste.

A difusão e preservação do saber, nomeadamente na forma de bibliotecas, era uma prática corrente na Antiguidade. Existem inúmeros vestígios desta difusão na Pérsia, Ásia Menor, etc. mas especialmente na Mesopotâmia e no Egipto. Na Mesopotâmia, mais concretamente na Babilónia, centro da dinastia Amorita (2100-1600 a.C.) e capital no reinado de Hamurabi (1792-1750 a.C.) esses vestígios assumem a forma de placas de argila inscritas com registos de matemática e economia. Existem ainda placas que parecem conter colecções de exercícios que o mestre distribuía aos seus alunos e pequenas placas que parecem ser a solução de problemas anotados pelos alunos.

Sabemos também que o rei assírio Assurbanipal (668-631 a.C.), criou uma biblioteca, uma das mais antigas de que há registo, no seu palácio da capital da Assíria, Nínive, que continha mais de 10 000 placas de argila.

Os vestígios da difusão do saber na forma de incipientes bibliotecas no Antigo Egipto são menos evidentes já que os egípcios utilizavam papiro, menos resistente à passagem do tempo. De qualquer forma existem inscrições em diversos templos que indicam a existência de bibiotecas e de bibliotecários que as mantinham (dois dos quais enterrados com pompa em Tebas).

As primeiras grandes bibliotecas surgiram em Atenas, nomeadamente a fundada por Pisístrato em 540 a.C. e, especialmente importante, a biblioteca escolar do Liceu de Aristóteles, considerada por muitos como a mais importante antes da biblioteca de Alexandria.

Sem dúvida que Alexandria é o paradigma da difusão do saber com o seu Museu (um instituto de pesquisa em medicina e ciências naturais) e a Biblioteca que, segundo a História, resulta da migração para o Egipto do conceito grego de cultura, universal e cosmopolita, introduzido por Alexandre o Grande (que fundou Alexandria) e continuado pelo primeiro faraó macedónio da dinastia ptolomaica, Ptolomeu I. Demétrio de Phaleron circa 297 a. C. não precisou de grandes dotes de eloquência para convencer Ptolomeu I a fundar em Alexandria algo similar à Academia de Platão ou ao Liceu de Aristóteles da sua nativa Atenas, de que foi governador entre 317 e 307 a.C. .

Carl Sagan, que dedicou algumas páginas a Alexandria e à sua biblioteca no seu livro «Cosmos», escreveu: «Sabemos, por exemplo, que nas prateleiras da biblioteca existiu um livro do astrónomo Aristarco de Samos, defensor de que a Terra era apenas um planeta que, tal como os outros, girava em torno do Sol e que as estrelas estavam a distâncias enormes. Cada uma destas conclusões é inteiramente correcta mas tivemos de esperar quase 2000 anos pela sua redescoberta. Se multiplicarmos por 100 000 a perda deste livro de Aristarco, poderemos fazer uma ideia da grandiosidade da civilização clássica e da tragédia que representou a sua destruição.»

Não obstante as tentativas de revisionismo histórico por parte dos cristãos, actualmente a atribuição da destruição da biblioteca de Alexandria ao general árabe Amrou Ben Al-As, que conquistou o Egipto em 642, está em descrédito sabendo-se hoje que se verificaram uma série de destruições nos finais do século IV perpetradas pelo zelo fanático dos cristãos contra as instituições e os símbolos da cultura pagã. Aliás, o bárbaro assassínio da brilhante matemática Hipatia no início do século V pelos devotos seguidores de São Cirilo indica ser o fervor cristão a causa mais provável da destruição deste repositório do saber da Antiguidade, considerado herético pelos cristãos.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Os vagabundos do limbo

Uma excelente notícia para todos os ateístas que, como foi a minha experiência com as minhas filhas, especialmente a mais velha que teve graves problemas de saúde em bébé, vão deixar de ser perseguidos por fervorosos cristãos sob o pretexto de que estão a condenar os respectivos filhos às profundas do inferno (ou do limbo, para os poucos que distinguem entre os conceitos) se não os baptizarem.

De facto, séculos de grandes efabulações teológicas sobre o destino dos «justos» não baptizados vão ser em breve apagados das páginas da doutrina católica. Assim, mais uma verdade «absoluta» da Igreja de Roma está prestes a ser abandonada (ia escrever vítima do relativismo moderno mas certamente que a uma emanação de Roma o termo não se aplica). Estou a falar do limbo, mais propriamente limbos, um conceito aplicado teologicamente a (sic)

(1) lugar temporário ou estado das almas dos justos (mortos antes da crucificação do mítico fundador da religião) que, apesar de livres de «pecados», estão «excluídos da visão beatífica até a ascensão triunfante de Cristo ao Céu» (o limbus patrum) ou

(2) lugar ou estado permanente daquelas crianças não baptizadas e de outros que, morrendo sem algum pecado pessoal grave, são excluídos da visão beatífica por causa do pecado original (o limbus infantium).

A comissão teológica internacional da Igreja de Roma começou ontem uma reunião devotada ao tema cujo desfecho prevísivel será a abolição do limbo da colecção de sofismas doutrina católica. De facto, o actual Papa já deu indicações enquanto Ratzinger que considera o limbo apenas «uma hipótese teológica» (que ele não sustenta) e, porque o limbo é actualmente uma questão delicada neste ponto, afirmou mesmo que «Está ligado à causa do pecado original mas muitos bébés morrem porque são vítimas».

Reforçando que o que está em causa é o destino no «além» das crianças não baptizadas, que o relativismo dos tempos modernos impede aceitar ser condenação a um limbo quasi eterno por uma mera falta de aspersão aquosa, o Cardeal Georges Cottier, teólogo da Casa Pontifical, afirmou ontem ao italiano La Stampa: «Nós necessitamos considerar e levar em conta que muitas crianças morrem vítimas dos males modernos – fome no mundo, e muitos males provenientes das enormes desordem social e miséria, sem falar nos frutos de abortos e coisas semelhantes».

De facto, mais de seis milhões de crianças morrem anualmente de fome em países subdesenvovidos, exactamente os mesmos (e únicos) países onde a Igreja vê aumentar os seus rebanhos. E a Igreja está preocupada que o conceito do limbo não impressione favoravelmente potenciais clientes, especialmente se considerarmos que entre a concorrência, nomeadamente a islâmica, tal condenação não existe. Aliás, para o islamismo todas as crianças que morrem vão direitinhas ao céu sem precisarem qualquer teste.

A teoria dos limbos tornou-se doutrina comum a partir de Anselmo de Cantuária (início do século XII), ratificada por Inocêncio III (1160-1216) que disse que os que morreram «apenas» com o pecado original a manchar as suas almas não sofrerão «outra pena, seja fogo material ou do verme da consciência, excepto a dor de ser privado para sempre da visão de Deus» (Corp. Juris, Decret. l. III, tit. xlii, c. iii – Majores). Como não poderia deixar de ser, o primeiro a elaborar o que aconteceria aos bébés não baptizados foi Agostinho de Hipona, que os considerava condenados aos fogos eternos do Inferno. Lucubrações retomadas e suavizadas por Tomás de Aquino que afirmava não sofrerem estes inocentes alguma dor da perda da visão divina ou «aflição interior», nihil omnino dolebunt de carentia visionis divinae, dando assim a volta ao dogma de condenação eterna dos não baptizados, justificado pela resposta a Nicodemos do mítico fundador da religião descrito em João 3, 5: «Em verdade, em verdade Eu te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus».

Considerando as inúmeras «almas» que, de acordo com os ensinamentos da Igreja ainda em vigor, habitam o tal limbo (povoado, entre outros, por incontáveis óvulos fertilizados, embriões e fetos não nascidos) questiono-me qual será o destino que a Igreja de Roma dará a estes vagabundos dos limbos. E qual o sofisma com que resolverão a contradição dogmática que a falta de limbo irá introduzir, já que, supostamente, todo o ser morto sem a graça do baptismo está condenado para a eternidade. Para não falar na desculpa que será necessário arranjar para justificar o proselitismo e a evangelização (supostamente indispensáveis para salvar as «almas», mesmo justas, desta condenação eterna).

Claro que seria utópico esperar que ao abolir o limbo a Igreja Católica abolisse igualmente a intolerância que a caracteriza, mas pelo menos deixa de existir justificação para a imposição do catolicismo desde o berço. E menos uma razão para a guerra das cruzetas em que a Igreja Católica, que se acha acima da lei dos homens, transformou o mero cumprimento da lei máxima nacional.

1 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

E deus criou o mundo

O Diário Ateísta agradece as inúmeras manifestações de solidariedade e felicitações que numerosos amigos lhe fizeram chegar por ocasião do 2.º aniversário.
Aos que nos ameaçam e insultam agradecemos igualmente o ódio cristão com que nos distinguem.
30 de Novembro, 2005 Palmira Silva

Faz hoje 70 anos que morreu o poeta

(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara,?… Um ramo de árvore,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos…
Poderia julgar que o sol
Alumia e que a trovoada
É um barulho repentino
Que principia com luz.
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde de existir
Das árvores e das plantas!)
(…)
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, aqui estou!
(…)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
(…)
Só a natureza é divina, e ela não é divina…

Se às vezes falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nomes às cousas.

Fernando Pessoa in O Guardador de Rebanhos

30 de Novembro, 2005 Carlos Esperança

A existência de Deus

Cabe a quem afirma e explora a existência de Deus o ónus da prova mas não há a mais leve suspeita de que exista nem, da parte dele, o menor esforço para fazer prova de vida.

Todas as religiões reivindicam o único Deus verdadeiro, donde se conclui que, na melhor das hipóteses, todas, menos uma, são falsas e, certamente, são todas.

A falta de provas não desanima os propagandistas nem lhes tolhe o proselitismo. Uma multidão de clérigos esforça-se por submeter a humanidade à vontade do mito e procura bater a concorrência.

Os livros sagrados propalam que Deus, farto de ócio e do Paraíso, veio à Terra anunciar os seus desejos e ameaçar quem o contrariasse. Trouxe um ror de proibições e ameaças que os padres se encarregam de divulgar e fazer cumprir.

São pouco credíveis os livros, pouco idóneos os escribas e pouco recomendáveis os zeladores. A Tora, a Bíblia e o Corão são piedosas falsificações, revistas e corrigidas ao longo dos tempos, destinadas a espalhar o terror, a crueldade e a submissão.

As religiões monoteístas perpetuam o tribalismo e a barbárie de acordo com as páginas que lhes servem de referência. A vontade divina confunde-se com os interesses do clero, aliado indefectível das classes dominantes e dos detentores do poder.

Os crimes religiosos, as guerras travadas e a violência perpetrada e perpetuada ao longo dos séculos pelos jagunços de Deus tornam as religiões uma tragédia. Os negócios, os privilégios e o charlatanismo asseguram a longevidade das Igrejas.

O ateísmo é uma vacina eficaz contra a acção deletéria da fé e não pretende, ao contrário dos parasitas de Deus, fazer proselitismo. Os ateus limitam-se a desmascarar a mentira e o charlatanismo, à semelhança das associações de defesa do consumidor.

Ao serviço deste desígnio, faz hoje dois anos, nasceu o Diário Ateísta.

29 de Novembro, 2005 Palmira Silva

Uma religião de aparências

Após o recente sínodo dos bispos católicos fomos informados da piedosa recomendação da Igreja de Roma aos divorciados que casaram novamente ou mantêm uma relação de facto, uma faixa de mercado cada vez maior nas sociedades ocidentais e que por conseguinte a Igreja não quer perder. A dita recomendação, embora pedindo aos muitos católicos nesta situação que participem na missa dominical onde quiserem, aconselha-os a ir a uma igreja onde a sua situação «pecaminosa» não seja conhecida se desejarem comungar, para «evitar que alguém possa ficar escandalizado». Para a Igreja de Roma o importante é não escandalizar os outros, isto é, mais importante que seguir um código de conduta moral, é agir de acordo com o que os outros irão pensar.

Na realidade esta recomendação hipócrita está em plena concordância com uma religião que é apenas uma religião de aparências, sem qualquer coerência moral nas suas posições, contrariamente ao que muitos consideram. Aliás, um dos pontos que me irrita solenemente nalguns católicos com que tive o desprazer de discutir ética e moral é a pseudo superioridade moral com que condescendentemente me informam que têm princípios morais «absolutos», algo que eu como ateísta nunca poderei reinvidicar. E que o importante não é seguir esses princípios (afinal os homens são fracos pecadores) mas poder usá-los como arma de arremesso contra os «imorais» ateus, que até podem ser pessoas bem formadas, com princípios éticos consistentes e coerentes que de facto seguem à risca, mas estes são meramente «utilitários» já que não são divinamente inspirados. E, embora ajam de forma a respeitar os outros, como não afirmam ser a sua regra de ouro o impossível «amor ao próximo» essa é uma conduta imoral porque ateísta e como tal não merece respeito! Isto é, para os católicos o mal feito por quem acredita em Deus deve ser relevado (e é militância ateia recordá-lo); o bem feito por quem nem sequer considera válida a concepção de qualquer ser transcendental é por isso necessariamente considerado se não mal pelo menos um bem meramente utilitário e sem valor!

Na realidade, os muitos sofismas católicos a que alguns chamam doutrina são desenhados apenas para manter aparências e para enganar os mais incautos com uma suposta coerência moral que na realidade é inexistente. Um exemplo perfeito é o chamado «efeito duplo», invocado para permitir o aborto no caso de uma gravidez ectópica, cujo desfecho se não interrompida é a morte da mãe (o embrião a partir do momento em que se implanta nas trompas não tem qualquer hipótese de sobrevivência). Este requinte de imoralidade afirma ser perfeitamente legítima uma acção directa promovida por uma razão moral não obstante ter um efeito indirecto negativo. No caso da gravidez ectópica a aplicação deste sofisma resulta em ser imoral a ingestão de um simples comprimido mas ser moral a mutilação da mulher. Se aplicado no quotidiano poderia resultar em situações bizarras como, por exemplo, ser perfeitamente legítimo aos criadores de porcos de Leiria disporem dos resíduos da respectiva actividade na Ribeira dos Milagres uma vez que poderiam alegar ser o seu intento directo evitar custos que resultariam no despedimento de funcionários. Enfim, há o problema da poluição mas esse é um efeito indirecto, não desejado, negativo é certo mas não intencional!

Tudo isto a propósito de uma notícia a que cheguei via Renas e Veados que dá conta que uma escola católica nova-iorquina despediu uma professora de ensino primário por estar grávida e ser solteira. A demissão de Michelle McCusker, considerada pela escola uma professora com «elevado grau de profissionalismo», aconteceu dois dias depois de ter informado a direcção da escola que estava grávida e pretendia levar a termo a gravidez. As razões indicadas para a demissão explicitam que McCusker violou os princípios religiosos do centro escolar. Que se pressupõem ser ter ousado engravidar fora do matrimónio e não ter feito nada para terminar a gravidez, uma vez que se o tivesse feito continuaria a leccionar na escola Santa Rosa de Lima, no condado de Queens.

Entretanto a União de Liberdades Civis de Nova York (NYCLU), que ganhou uma acção semelhante há dois anos, outra piedosa instituição católica que despediu uma professora que decidiu ter um filho fora do matrimónio, moveu em nome da docente um processo contra a escola à Comissão Federal de Igualdade de Oportunidades no Emprego (EEOC) alegando, correctamente, que este despedimento católico é discriminatório e portanto ilegal.

Acusação que a Liga Católica nega: «A ideia de que a Igreja está a discriminar uma mulher grávida porque é mulher é ridícula, porque é óbvio que os homens não engravidam. Esse é um problema a discutir com a Natureza, não com a Igreja». E eu a pensar que a Natureza era uma invenção dos ateus evolucionistas…

Ou seja, mais uma vez para a Igreja Católica o que é importante são as aparências, e as aparências neste caso são um pouco difíceis de ocultar.

Ficaria agradavelmente surpreendida se a Igreja Católica tivesse reagido em coerência com os propalados valores que os seus devotos debitam abundantemente nas nossas caixas de comentários. Ou seja, uma reacção de amor pelo próximo (a vida da jovem professora não vai ser fácil, sem emprego e num estado em que lhe será difícil arranjar outro num futuro próximo), de perdão e compreensão e, especialmente, de aceitação de alguém, que embora tendo cometido um «erro» segundo os padrões da Igreja, aceitou as consequências desse erro em vez de as esconder.

Mas, claro, uma reacção dessas é impossível para a (i)moralidade católica, que reflecte uma religião apenas de aparências, sem qualquer substância. Aliás, como já o afirmei várias vezes, na minha opinião o grande obstáculo à evolução moral da Humanidade é a religião em geral e a católica em particular. Devido ao seu inegável poder e influência a Igreja de Roma mantém-nos reféns de um modelo social hipócrita, em que é mais importante parecer que ser, e que para além do mais está completamente desadequado da realidade. Enquanto os obsoletos e imorais paradigmas cristãos não forem substituídos por modelos humanistas, centrados na dignidade humana, será difícil ultrapassarmos a crise social que actualmente atravessamos!