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26 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Humor Católico: desenvolvimentos

Alertada pelos comentários de alguns dos nossos leitores da vizinha Espanha, aos quais aproveito para agradecer, especialmente à Ester, resolvi investigar um pouco mais o que se passava com este episódio de humor católico com contornos «racistas e colonialistas», como o designou o ministro dos Negócios Estrangeiros da Bolívia, Armando Loayza.

E de facto, em minha opinião, este não foi o episódio infeliz retratado em alguma imprensa mas sim um desafio deliberado lançado pela COBE (certamente com o amen dos seus donos, a Conferência Episcopal Espanhola) ao governo de Zapatero que se atreveu a afrontar a até aqui toda poderosa e intocável Igreja Católica.

Desafio catalizado pela decisão recente do Conselho Audiovisual da Catalunha (CAC), a autoridade reguladora do sector nesta comunidade autónoma cujos membros são designados pelo Parlamento autónomo, que concluiu num extenso relatório de 71 páginas (pdf disponível) que a emissora COPE «incorreu numa infracção dos limites constitucionais ao exercício legítimo dos direitos fundamentais à liberdade de informação e expressão» o que constitui «um incumprimento grave do regime de concessão». Decisão aplaudida pelo colégio de jornalistas catalão. De momento a emissora não sofrerá sanções porque, de acordo com a lei vigente, aprovada este ano com 90% dos votos, tem de incorrer em nova infracção para que tal aconteça. O que tendo em conta o teor das (des)informações transcritas no relatório, mentiras descaradas, insultos ofensivos gratuitos a membros do governo nacional e catalão e afins parece provável antes do final de 2005!

Este episódio de «humor» católico serve para ilustrar qual o tipo de «liberdade de expressão» que os empregados da Conferência Episcopal querem defender daquilo a que chamam a Inquisição Audiovisual da Catalunha. Ou seja, informar com responsabilidade e veracidade é algo que não consta dos padrões da rádio da Igreja Católica espanhola, padrões a que terão de se conformar quando for aprovado o ante projecto de lei anunciado há três dias pela vice presidente María Teresa Fernández de la Vega, a criação do Conselho Audiovisual Estatal que irá colmatar a falta de uma autoridade nacional sobre os media espanhóis (a Espanha é o único país da União Europeia em que esta autoridade não existe).

Que todo o abominável episódio não foi de facto uma partida «leve» e inocente é fácil de perceber lendo a resposta de Federico Jiménez Losantos à reacção de indignação dos governos espanhol e boliviano, que segue a habitual táctica de vitimização e acusações de perseguição da santa madre Igreja. Assim o o piedoso jornalista classifica de «grotesca palhaçada orquestada por Zapatero para chantagear os bispos e liquidar os programas críticos para a sua mísera política antinacional» a reacção do governo de Zapatero e em relação a Evo Morales, o piedoso jornalista considera que «merece, no mínimo, o mesmo tratamento que os seus confrades ditatoriais [o golpista (sic) Chávez e Fidel]: a oposição política e, desde logo, a sátira onde haja liberdade de expressão».

Acho estranho que para este funcionário da Igreja Católica espanhola, que tanto se congratulou com a reeleição de Bush, sejam ditadores estadistas eleitos livremente por uma maioria esmagadora da população. Enfim, pode estar simplesmente em total ressonância com Bento XVI, que afirma que à falta de crença religiosa se segue inevitavelmente o fascismo… Mas já acho mais complicado que considere legítimo apelar ao derrube do governo, eleito democraticamente, de Zapatero por todos os meios, de «unhas e dentes» incluindo «em última instância, o levantamento popular. E em ultissimo lugar, os militares». Claro que há precedentes em Espanha nomeadamente na Guerra Civil espanhola em que Franco teve uma inestimável ajuda de Pio XI, que em 1936 exortou os católicos espanhóis a lutarem lado a lado com o Generalissimo na «difícil e perigosa tarefa de defender e restaurar os direitos e a honra de Deus e da Religião».

Certamente que esta última declaração, quasi um apelo a um golpe militar contra Zapatero não fora o próprio Losantos reconhecer que tal apelo não teria muito eco nos meios militares espanhóis, se enquadra na tal «liberdade de expressão» considerada ameaçada pela hierarquia católica espanhola. Mas já sabemos que para um cristão fundamentalista liberdade de expressão é sinónimo de liberdade de expressão apenas para as suas «verdades absolutas».

De qualquer forma a Conferência Episcopal espanhola segue à risca as recomendações do finado Papa: «Todos devem saber como fomentar uma vigilância constante, desenvolvendo uma saudável capacidade crítica no que diz respeito à força persuasiva dos meios de comunicação». Afinal liberdade de expressão para todos corresponde para a santa madre Igreja, como advertiu João Paulo II no seu último livro «Memória e Identidade: Conversações entre Milénios», a dar voz à «ideologia do mal» que ameaça insidiosamente a sociedade e que surge quando os governos decidem usurpar a «lei de Deus» como acontece com o de Zapatero.

26 de Dezembro, 2005 pfontela

Sensibilidade estética e curiosidade

Pessoalmente considero a fé religiosa monoteísta tal como ela é estruturada pelas grandes religiões actuais como uma completa charlatanice, propagada e mantida por um grupo de interesse: o clero. Mais ainda: enojam-me profundamente os actos de humilhação individual perante o «divino» que todos os anos somos testemunhas, seja pelas procissões ou outros eventos mais ou menos regulares.

A religião do livro que é dominante no Ocidente, o Cristianismo, sofre do que eu considero ser a patologia da fraqueza. Da virtude por associação à dor, ao sofrimento e à negação. A concepção do Homem como inferior parece ser intrínseca a ela, a sua concepção de deus só me parece possível rebaixando o Homem ou a um escravo ou a um ser que é perfeitamente patético e indigno seja do que for.

Apesar de tudo isto não me é possível negar ao crente o direito de se tornar na criatura patética dos seus sonhos (pesadelos?). O facto de respeitar a sua liberdade individual não torna as suas concepções alienígenas mais próximas da minha estética, nem por um segundo. O que sim me força é a rejeitar o papel de educador, de pedagogo e acima de tudo o de salvador (com tons totalitários como é regra). Deixemos o messianismo para outros.

A conclusão lógica de tudo isto é, ou deve ser, a não interferência. Que muito possivelmente, nos casos de maior curiosidade intelectual, é complementada por uma tolerância derivada da partilha de opiniões e elementos «culturais» – digo isto sem ironia alguma, pois apesar de ser um ateu empedernido, materialista e empirista tenho grande interesse e curiosidade pelos mitos e ideias que circulam, ou circularam, pela «oposição».

O que torna este diálogo impossível (que é essencialmente de natureza intelectual e de escasso interesse para muitos) é o fanatismo. Qualquer posição que defende a existência de um imperativo moral que justifique a acção opressiva não pode aceitar qualquer diálogo, pois a própria existência de uma oposição fere a sua sensibilidade e o seu suposto primado sobre a verdade. A religião exerce por excelência (mas não exclusivamente) esse papel pelas suas organizações que se encontram mais ou menos institucionalizadas conforme o grau de secularização – que é um pré-requisito de uma genuína liberdade civil.

A convivência pacífica não é ameaçada pela diversidade, desde que esta diversidade seja subentendida num contexto da existência de um espaço completamente privado, onde existe liberdade para agir como bem entendemos, e um espaço público que por natureza tem que ser neutro. E o que digo vale tanto para ateus como para teístas.

26 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

O medo e a fé

O medo é o mais fiel aliado das religiões e o sofrimento o húmus onde floresce a fé. A aflição e a angústia debilitam o intelecto, mortificam o corpo e tornam consciências lúcidas em farrapos que as religiões enrolam na manta de charlatanismo que tecem.

Todas as religiões se reclamam do Deus verdadeiro, único que tem a chave do Paraíso. Assim se vê que as religiões são todas falsas menos uma, na melhor das hipóteses, e certamente são todas.

Uma doutrina, impostura ou código de valores que obriga a humanidade a prostrar-se de joelhos em vez de a ensinar a viver de pé, não dimana de um ser superior, brota da vontade de um sádico, nasce no cérebro de um néscio ou da tentação de um biltre.

É explorando fraquezas, medos e inquietações que a religião aparece como panaceia para o abatimento, remédio para a agonia e bálsamo para todas as moléstias.

O padre é o autor da trapaça, o artífice da fraude, o intermediário do embuste. Deus é apenas uma imagem que o tempo corroeu, uma droga que excedeu o prazo de validade mas que ainda ocupa as prateleiras de uma drogaria à espera da falência.

No vértice da pirâmide está o chefe dos embusteiros, o homem do chicote, o frio juiz que aprecia as vendas, pede esclarecimentos e dita as regras. Umas vezes chama-se ayatollah, outras patriarca, mullah, arcebispo ou papa. São espécimes zoológicos da mesma estirpe, implacáveis prosélitos de livros obsoletos que esmagam a liberdade e encerram os rancores divinos.

A fé vive do medo, do Inferno, da morte e do insondado. Outrora eram deuses o Mar, o Sol e os Ventos, hoje são outros os monstros e mais sofisticados os atributos. O deus de serviço vagueia à rédea solta pelo Universo a espiar a humanidade e a ruminar castigos para quem abomina os padres e despreza os sacramentos.

26 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Projecto Steve

O templo dos neo-criacionistas disfarçados de IDiotas, o Discovery Institute, uma instituição sem problemas de financiamento, exibe como grande trunfo uma lista de 400 cientistas, na sua maioria ligados ao próprio Instituto, que segundo o DI apresentam grandes dúvidas em relação ao evolucionismo.

Nomeado em honra do paleontólogo Stephen Jay Gould e como paródia às pretensões dos IDiotas* de que a evolução é «uma teoria em crise», o National Center for Science Education (NCSE) criou o Projecto Steve que pretende tratar as inanidades debitadas pelos IDiotas, mais concretamente que existem sérias dúvidas na comunidade científica sobre a evolução, como a anedota que de facto são. Assim o Projecto Steve lista apenas cientistas chamados Stephen ou variações como Stephanie, Steven, Stefan, Esteban, etc. que se prontificaram a assinar o manifesto acima reproduzido. Neste momento há 687 Steves no Steve-o-Meter, incluindo os dois Steves prémios Nobel, Steven Chu e Steven Weinberg, para além de Stephen Hawking, claro!

Todos estes Steves são certamente «adoradores do ateísmo» na opinião dePat Robertson, o pastor evangélico ex-libris dos teoconservadores ou «religious right» e fundador da Coligação Cristã, conhecido pelas pérolas de raciocínio cristãs que debita.

Uma das mais redondas destas pérolas foi debitada durante a emissão de dia 15 do corrente mês no programa «The 700 Club» da CBN (Christian Broadcast Network) em que Robertson sugeriu que os defensores da evolução são «fanáticos» acrescentando que a evolução «é uma religião, é um culto» e como tal afirmou que o ensino da evolução é anti-constitucional, violando a primeira emenda que prevê a separação religião-estado.

Robertson é conhecido internacionalmente pelos piedosos dislates que debita mas este é de tal forma hilariante que lhe merece automatica e destacadamente o prémio na categoria «Anedota do Ano».

*Intelligent Design is Involved in the Origin of The Species

25 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Humor católico

O governo espanhol chamou o seu enviado ao Vaticano devido a uma «partida» feita por um jornalista de uma rádio da delegação espanhola da Igreja de Roma. Certamente foi coincidência a Igreja Católica estar empenhada numa guerra de vale-tudo contra Zapatero e o seu governo e sem dúvida também por coincidência o director do programa La Mañana que perpetrou a «partida», Federico Jiménez Losantos, é um dos mais acérrimos críticos de Zapatero.

Em directo aos microfones da rádio COPE, propriedade da Igreja Católica, e fazendo-se passar por Zapatero, um jornalista da equipa telefonou a Evo Morales, depois das eleições do passado fim de semana o líder da Bolívia, dando-lhe os parabéns por ter integrado o «eixo cubano-venezuelano» e instigando-o a fazer de Espanha a sua primeira visita oficial como presidente da Bolívia.

Jose Luis Rodriguez Zapatero mal soube da manifestação do que passa por humor católico telefonou a Evo Morales, parabenizando-o pela sua vitória eleitoral e pedindo desculpas pela «partida inaceitável» da emissora católica de que fora vítima.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Bolívia, Armando Loayza, entregou ao embaixador espanhol em La Paz, Francisco Montalban, uma carta oficial de protesto dando voz à indignação do governo boliviano em relação à deplorável piada católica, que consideram «uma afronta aos cidadãos bolivianos» e um sinal de «carácter racista e colonialista» .

O governo espanhol na voz do secretário de estado da Comunicação, Fernando Moraleda, exigiu um pedido de desculpas formal da COPE ao presidente eleito da Bolívia.

Não obstante Moraleda ter falado com o presidente do conselho de administração da COPE, Bernardo Herráez, e com o porta voz da Conferência Episcopal Espanhola – proprietária da emissora – Juan Antonio Martínez Camino, que achou inaceitável o que se passou, até agora nenhum pedido de desculpas oficial quer da emissora quer da hierarquia católica de Espanha foi oferecido aos dois estadistas envolvidos. Isto é, o director-geral da COPE, Genaro González del Hierro, enviou uma nota ao embaixador boliviano em Madrid, Álvaro del Pozo, pedindo desculpa pelos «problemas que a partida poderá ter causado» e informou que já tinha comunicado aos humoristas católicos «a inconveniência deste tipo de acções».

Tal como o ministro da Justiça espanhol, Juan Fernando López Aguilar, que prometeu investigar o caso, considero que a mui católica partida denota «prepotência e arrogância» (algo a que a Aguilar já devia estar habituado já que são as imagens de marca da Igreja de Roma) e que é «moralmente reprovável, politicamente censurável e exige um pedido de desculpas». Mas suponho ser difícil vermos um pedido de desculpas formal da Conferência Episcopal Espanhola a Zapatero…

25 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Virgem dentro de preservativo

Uma das primeiras acções de Ratzinger como Bento XVI foi forçar a demissão do editor do periódico jesuíta «America», o padre Thomas Reese, com quem mantinha um historial de discórdia enquanto Ratzinger. Na realidade o então zelador pela pureza da fé católica discordava veementemente da opção de Reese em apresentar sobre todos os ângulos assuntos «fracturantes» como o uso profiláctico do preservativo , a ordenação de padres (publicamente) homossexuais, a posição dos católicos pró-escolha na ICAR, o secretismo nas medidas de disciplina na Igreja e outros assuntos que Ratzinger não queria discutidos.

Agora com outro editor a revista continua a merecer protestos dos meios católicos devido a um «escândalo» que «chocou» católicos no mundo inteiro, a publicação nesta revista de um anúncio a uma estátua do artista britânico Steve Rosenthal, que oferecia aos leitores a oportunidade de comprar «uma espantosa estátua de 22 cm da Virgem Maria em cima de uma serpente, usando um véu delicado de látex».

O editor da revista pediu prontamente desculpas aos seus leitores pela publicação do anúncio a esta «obra de arte religiosa contemporânea», que afirmou ter sido aceite pelo facto de o autor só ter enviado uma prova a preto e branco que tornava difícil apreciar que o véu de látex era de facto um preservativo e a serpente um espermatozóide…

O artista afirmou recentemente que tinha orquestrado o seu trabalho de forma à publicação do anúncio coincidir com o Dia Mundial de Combate à Sida a 1 de Dezembro, e que esta foi uma forma de protesto contra a posição do Vaticano em relação ao uso profiláctico do preservativo.

25 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Fim do multiculturalismo: a burka na Holanda

Mulher afegã usando uma burka

Depois de proibido em algumas cidades europeias, por exemplo Como no norte de Itália, Antuérpia e Ghent na Bélgica, o uso da burka parece prestes a ser banido na Holanda, que seria assim o primeiro país europeu a legislar sobre o tema. De facto, uma proposta visando a proibição do uso da burka em público na Holanda tem o apoio da maioria dos deputados no Parlamento holandês e, como tudo indica, será formalizada em Janeiro próximo, o que tem causado uma longa controvérsia neste país.

Rita Verdonk, a dama de ferro que tem a pasta da Integração, comprometeu-se a investigar onde e quando pode a burka ser banida dos locais públicos. Considerando que a ministra tem seguido uma linha dura com os grupos muçulmanos extremistas, não contemporizando com atitudes até há pouco tempo «desculpadas» em nome do multiculturalismo, por exemplo cancelou uma reunião com líderes muçulmanos que se recusavam a cumprimentá-la por ser uma inferior mulher, parece muito provável que esta «tradição» de vestuário, em minha opinião inaceitável, tenha os dias contados na Holanda.

Na Indonésia, pelo contrário, os fundamentalistas islâmicos, especialmente na província de Aceh, usam todos os meios para obrigar as mulheres a usarem os trajes «tradicionais» que as cobrem dos pés à cabeça, criando inclusive uma polícia especial, a Wilayatul Hisbah (ou Brigada de Controle) que procura entusiasticamente mulheres que se atrevam a desviar um milímetro da Sharia para as humilhar publicamente.

Porque, como vocifera Marluddin Jalil, um juiz fundamentalista, o tsunami que fustigou a área há um ano foi castigo de Deus pelos comportamentos «imorais» das mulheres da zona: «O tsunami aconteceu por causa dos pecados das pessoas de Aceh», indicando que com pessoas se estava a referir apenas às mulheres continuando «O sagrado Corão diz que se as mulheres forem boas então o país está bem».

24 de Dezembro, 2005 lrodrigues

O Natal dos Deuses Cristãos

As primeiras manifestações de religiosidade do Homem relacionavam-se com o culto das forças da natureza e, mais ainda do que de uma explicação divina para uma «vida depois da morte», elas nasceram do temor e da falta de compreensão para os fenómenos naturais, desde o vento à chuva ou aos relâmpagos, até à própria periodicidade dos ciclos solar ou lunar.

É por isso absolutamente normal que o Homem, animista nas suas origens religiosas, fosse também natural – e quase geneticamente – politeísta.
O desenvolvimento e a evolução do Homem vieram ao longo de milhares de anos trazer uma maior complexidade aos seus cultos religiosos, sempre com uma natureza politeísta.
No entanto, nalgumas civilizações da antiguidade ainda assistimos a tentativas mais ou menos sucedidas de unificação de divindades, embora normalmente protagonizadas por sacerdotes ou por governantes mais interessados na unificação e no poder temporal que daí poderia resultar.

O crescente desenvolvimento do cristianismo encontrou no Império Romano uma população de uma profunda religiosidade e, também por isso, uma riquíssima mitologia, com deuses para todos os gostos, feitios e ocasiões.
De tal modo, que em determinada altura o próprio Imperador Constantino (também influenciado pela sua própria mulher, Santa Helena, entretanto convertida) acabou por achar melhor adoptar o sábio princípio: «se não os podes vencer, junta-te a eles».

Sem nunca se ter convertido, Constantino acabou por tolerar o cristianismo e, juntamente com Licínio, o tetrarca Oriental (a quem escassos onze anos mais tarde mandou matar, assim tomando o controle de todo o Império Romano) assinou em 313 o Édito de Milão, que proclamava a independência do Império em relação a quaisquer credos religiosos, fazendo devolver aos cristãos as propriedades e os lugares de culto confiscados.

A partir de então, em todo o Império Romano o cristianismo convive pacificamente com a religião tradicional pagã (no sentido de religião politeísta ou não cristã, embora a designação se aplique também às religiões distintas da judaica, que também beneficiou desta tolerância e convivência pacífica inter-religiosa).

Mas muito havia para esclarecer, explicar e estabelecer nessa nova religião que era o cristianismo.
Até que no ano 325 Constantino convoca o Concílio de Niceia.
Com a presença de mais de 300 bispos (nomeados por líderes religiosos locais e pelo próprio Constantino), o primeiro concílio ecuménico ? que marca o início da Igreja Católica ? visava antes de mais condenar o «Arianismo», uma heresia que nega a divindade de Jesus Cristo.

O «mistério» da Santíssima Trindade encontra nesta concílio as bases da sua fundamentação, com a aprovação pela maioria dos bispos presentes (e não pela sua unanimidade, tendo ficado célebres as perseguições de Constantino aos bispos discordantes) da ideia de que Jesus é da mesma ?substância? e da mesma ?essência?, isto é, a mesma entidade existente do Pai.
Ou seja, haveria somente um Deus e não dois: a distinção entre o Pai e o Filho está dentro da «unidade divina». O Filho é Deus no mesmo sentido em que o Pai o é.
O próprio «Credo» de Constantino, saído do Concílio de Niceia, reconhece a divindade de Jesus Cristo, dizendo que o Filho e o Pai são ?de uma única substância? e que o Filho é «gerado», (único gerado, ou unigénito), mas não no sentido de «feito».

Desesperado para encontrar uma nova religião de massas através da qual pudesse controlar o povo, é no concílio de Niceia que Constantino molda o cristianismo a seu bel-prazer e ora faz inscrever ora faz abolir da Bíblia os textos e os evangelhos que acha mais apropriados, re-escrevendo-os e adaptando-os às suas políticas e aos seus interesses e depurando-os de contradições entre si.

Foi no Concílio de Niceia que foi decidido quais os evangelhos que tinham sido inspirados pelo Espírito Santo e que, por isso, eram os únicos dignos de figurar na Bíblia, os «evangelhos canónicos», por oposição aos evangelhos indignos dessa honra, conhecidos por «evangelhos apócrifos» ou «gnósticos».
Várias são as versões que contam como se deu a separação entre os evangelhos canónicos e apócrifos:
Há quem diga que, durante o Concílio, estando os bispos em oração, os evangelhos inspirados foram depositar-se no altar por si só.
Uma outra versão relata que todos os evangelhos foram colocados por sobre o altar, e os apócrifos caíram ao chão…
Outra ainda afirma que o Espírito Santo entrou no recinto do Concílio em forma de pomba e foi pousando no ombro direito de cada bispo, segredando aos seus ouvidos os evangelhos inspirados.

Depois, e na melhor tradição do costume babilónico da deificação do rei ou do imperador, foi com uma habilidade notável que Constantino aproveitou as festas, os costumes e os princípios pagãos e judaicos, já conhecidos e tradicionais no Império, para os adaptar e criar a doutrina desta nova religião, em progressivo crescimento e implantação popular.
Exemplo paradigmático disso é a festa pagã do Solstício de Inverno, adaptada ao Natal e às comemorações do nascimento de Jesus Cristo.

Esta nova Igreja, a Igreja Católica fundada no Concílio de Niceia («Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica…») está, pois, bem longe de ser a «Igreja Primitiva dos Apóstolos» e, obviamente, não foi fundada por Pedro.
Poderá até dizer-se que o seu primeiro Papa foi Constantino.

Quando morreu, em 337, Constantino foi baptizado e enterrado como um verdadeiro décimo terceiro Apóstolo, e na iconografia eclesiástica, veio a ser representado recebendo a coroa das mão de Deus.

Mais tarde, já com Teodósio, o cristianismo haveria de tornar-se a religião oficial do Império, institucionalizando-se profundamente na sociedade romana e constituindo um polo de união comum a todos os territórios conquistados, surgindo o profissionalismo religioso e toda uma estrutura teológica e uma casta sacerdotal dominante, que se impunha aos fiéis proclamando de forma rígida e autoritária que «fora da Igreja não há salvação».

Quase dezassete séculos depois do Concílio de Niceia comemora-se uma vez mais o Solstício de Inverno, transformado habilmente por Constantino nas comemorações do nascimento do Deus dos cristãos.

O Concílio de Niceia foi de tal modo primordial para o cristianismo ? e para a religião católica em particular ? que ainda hoje os seus fundamentos e princípios doutrinais e filosóficos são precisamente os mesmos que foram inventados por Constantino.

Até é precisamente o mesmo o raciocínio e o hábil jogo de palavras que faz passar o cristianismo por… uma religião monoteísta.

De facto, é através de um mero jogo de palavras a que chama um «Mistério», isto é, um dogma que não tem explicação possível, que esta religião persiste em fazer-se passar como «uma das três grandes religiões monoteístas do mundo».

Mas que de monoteísta nada tem!

Só deuses tem três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Podem os mais fiéis defensores do «Mistério da Santíssima Trindade» dizer que estes três deuses são, afinal, um só.
Mas o que é facto é que eu conto três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Quanto ao Deus «Espírito Santo», que à boa maneira cristã é de formulação masculina, sempre se diga ainda que, com a sua atitude típica e persistentemente misógina, os católicos perderam a oportunidade de tornar a sua origem e a sua explicação bem mais interessante.
Poderiam, por exemplo, ter dado mais atenção ao apóstolo Filipe que nos transmitiu no seu evangelho gnóstico, excluído por Constantino da honra de figurar na Bíblia entre os evangelhos canónicos:

«Alguns dizem que Maria concebeu do Espírito Santo.
«Erram, não sabem o que dizem.
«Quando é que uma mulher concebeu de uma mulher?»

A explicação para este aparente contra-senso é bem simples:

É que em grego, língua original em que foram escritos os evangelhos e até em copta, o idioma para que foram em primeiro lugar traduzidos antes de transpostos para os idiomas actuais, «Espírito Santo»… é do género feminino!
E assim, com uma simples mudança do género de uma palavra numa tradução, a Igreja Católica perdeu a oportunidade de respeitar a «Santíssima Trindade» na formulação original de «Sagrada Família», isto é, de Pai, Mãe e Filho.

Depois, a estes três deuses acresce a mãe do Deus Filho.
De tal modo deificada que, tal como Jesus Cristo, e apesar falta de sustentação bíblica para tal, foi feita subir ao Céu em corpo e alma após a sua morte terrena.
E já vão quatro!

De tal forma que, assumindo várias personalidades consoante as regiões geográficas, e multiplicando-se como que para afirmar o politeísmo cristão, a Nossa Senhora de Fátima, ou de Lourdes, ou a Virgem Negra polaca, ou a Virgem de Guadalupe sul-americana, concorrem mesmo com os três principais deuses na devoção dos cristãos.
Diz-se mesmo que o Papa João Paulo II, conhecido como «devoto mariano», mais que aos seus próprios patrões rezava à mãe do Deus Filho.

Depois, aparecem os santos. Que se contam aos milhares!
E que são tão deuses como os outros deuses, pois com eles concorrem na adoração dos fiéis cristãos e como eles são omnipotentes e omnipresentes.

E não é essa a definição de «Deus»?

De tal modo, que em todos os cristãos existe um «santo de devoção», frequentemente corporizado numa imagem ou num ícone, a quem se pede um favor, uma graça, ou «uma cunha» para um emprego, para a cura de uma doença ou para um prémio no Euromilhões.

Foi também com um hábil jogo de palavras que o Segundo Concílio de Niceia (o sétimo Concílio Ecuménico), realizado no ano de 787, distinguiu o que é «adoração» do que é «veneração».
E estipulou que pedinchar uma coisa a um Deus, se chama «adorar»; e que pedinchar a mesma coisa a um santo se chama «venerar».
Embora os resultados previsíveis da pedinchice sejam basicamente os mesmos.

Não admira, pois, que os cristãos, com um folclore, uma mitologia e uma iconoclastia tão rica, sejam tão preocupados e cuidadosos a celebrar o Natal.

E se é assim, então, a todos um bom Natal!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

24 de Dezembro, 2005 fburnay

Galileu e a Igreja (II)

O cardeal Bellarmine (1542 -1621), S. Roberto Belarmino para os católicos, tornou-se um homem poderoso ao recusar a sua elegibilidade para papa, dando assim a oportunidade a Camillo Borghese de se tornar Paulo V em 1605, exercendo depois a sua influência nos bastidores. Bellarmine conhecia pessoalmente Galileu e apesar de não serem propriamente amigos mantinham uma relação amigável. Bellarmine iniciou os seus estudos teológicos em Pádua, em 1567. Os professores de Bellarmine eram tomistas e ele viria a tornar-se o primeiro jesuíta a ensinar na universidade de Pádua.


Roberto Bellarmine foi canonizado em 1930, mas em 1889 já havia sido erigido em Itália um monumento em memória de Giordano Bruno, que Bellarmine levou à fogueira.

Dedicou-se ao ensino da Summa Theologica de Tomás de Aquino, opondo-se ao jansenismo, que defendia maior fidelidade à linha original de Agostinho de Hipona. Tornou-se famoso pelas controvérsias geradas em torno do protestantismo, ao qual se opunham também os jansenistas (de facto todas estas oposições religiosas, mesmo entre protestantes, espalhavam a confusão na Europa e deram muitas dores de cabeça também a Johannes Kepler, um homem de uma religiosidade sui generis, apesar de profunda, que ora benificiava da benevolência de príncipes tolerantes ora lhe via recusada a eucaristia por pensar de forma diferente).Bellarmine ocupou-se, na década de 1590, da perseguição de Giordano Bruno. Depois de ter estado fugido de Itália Bruno voltou à procura de um lugar vago na universidade de Pádua. Bruno acabou por ser detido pela Inquisição, ficando preso muitos anos. Finalmente o inquisidor Bellarmine apresenta-lhe uma escolha: ou renega todas as suas crenças ou arde na fogueira. Bruno, que havia procurado uma renegação parcial sem sucesso recusou-se à abjuração e foi queimado vivo em 1600 por arianismo (docetismo noutras versões) e prática de magia. Um ano antes Clemente VIII tinha elevado Bellarmine a cardeal. Mas não é senão 10 anos depois da morte de Giordano Bruno que os problemas começam para Galileu.


«Reconheço o estilo da Cúria Romana», terá dito Sarpi quando um médico lhe descreveu as feridas deixadas pelos seus falhados assassinos.

Frei Paolo Sarpi (1552 – 1623) era um amigo pessoal de Galileu. As suas visões teológicas pouco ortodoxas e também muito mais provavelmente os seus conhecimentos de matemática obtidos em Mântua certamente contribuiram para essa amizade. Os problemas de Sarpi começaram aquando de uma nomeação do estado de Veneza para uma cobiçada diocese que terminou com a acusação de que ele não acreditava na imortalidade da alma, questionando assim Aristóteles. De facto Sarpi correspondia-se com diversas pessoas, muitas das quais hereges aos olhos da Igreja. O facto de Sarpi trabalhar ao serviço do estado de Veneza só piorava as coisas já que há muito que Roma pretendia impôr ordem nestas paragens. Se bem que Roma não dispunha de um exército suficientemente poderoso, o empenho de Paulo V em restaurar a autoridade da Igreja fazia-se notar cada vez mais ao longo do seu pontificado e Veneza era uma pedra no sapato. Como resposta à exigência de submissão incondicional dos venezianos, Sarpi defendeu os interesses da república o que fez com que fosse eleito conselheiro teológico. Os atritos entre Roma e Veneza acabam com a excomunhão do Doge e de todos os venezianos. Em resposta ao ataque (que foi generalizadamente ignorado pelos venezianos) Sarpi publica um livro em que se revela estar contra o direito divino de reis e papas, livro esse que foi instantaneamente adicionado ao Index. Veneza expulsou todos os jesuítas. A crise foi subindo de tensão até que arrefeceu depois de algum tempo – Sarpi foi então convidado a visitar Roma para discutir o assunto com Bellarmine. Sabendo o que o esperava, Sarpi recusou e o senado veneziano proibiu-o mesmo de deixar a república. Em Roma, os livros de Sarpi arderam. E em Veneza, o seu salário duplicou. Até que numa noite um grupo de assassinos o esfaqueou deixando-o moribundo na rua. Sarpi, surpreendentemente, sobreviveu a 15 facadas e os perpetradores malogrados fugiram, não surpreendemente, para Roma. É Sarpi quem, em 1609, intercede por Galileu numa audiência com o Doge de Veneza, adiando as negociações com um estrangeiro que trazia uma estranha invenção – o telescópio. Galileu ganhou assim prioridade de apresentar o seu próprio telescópio, construído entretanto. Daí a poucos anos a Igreja não estaria mais indiferente às ideias de Galileu.

24 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Boas-festas

Voltar às origens na noite de consoada é a viagem marcada no calendário, imposta pelo hábito e repetida pela inércia. À medida que as coisas e os lugares se encaixam cada vez menos na memória mais intensamente os procuramos. Parte-se em busca do passado e teme-se a desilusão de não achar sinais. Mas volta-se sempre, quiçá com vontade de exumar memórias, de recuperar sonhos e afectos que nos fazem falta, como se no eterno regresso surgisse a fonte da juventude.

Todos os anos, quando Dezembro chega, o frio vem lembrar-nos a festa que se aproxima ao ritmo da nossa ansiedade, enquanto os apelos ao consumo nos seduzem, insinuando uma felicidade duradoura. Fazem-se compras sem ponderação e arquivam-se prendas à espera de destinatário. Os livros têm nesta época o lugar que mereciam durante o ano, viajam com as pessoas à espera de leitor, quedam-se em mãos que os afagam ou, simplesmente, arquivam-se no abandono da estante.

Depois de árduas discussões no seio dos casais decide-se o local da consoada em unânime contrariedade. Nunca durante o ano a diferença entre irmãos e cunhados ou pais e sogros se tornou tão nítida e fracturante.

A viagem é o regresso magoado aos locais e memórias de um tempo que já foi, por entre chuva miudinha e frio de rachar. Doem o ossos em intermináveis filas de trânsito antes de se ver iluminada a torre do campanário onde outrora soavam as horas de dias muito mais calmos.

Chega-se de noite e de mau humor com o vento gélido a arrefecer sorrisos compostos para a chegada e os quartos húmidos indiferentes aos nossos ossos e ao reumático.

A lareira é o destino e centro de um semicírculo de profundos afectos e sólidos rancores que se reúnem alinhados por ordem etária na casa dos mais velhos e são alimentados a filhós e bolos que líquidos capitosos ajudam a empurrar. É aí que se desembrulham as prendas embaladas em papel reluzente com laços artisticamente colados. Agradece-se com um sorriso de desprezo aquele presente desinteressante do parente que nos detesta. Fica-se deslumbrado com a oferta generosa que redime uma ofensa antiga e enternece-nos a simples presença de quem não pede desculpa por gostar de nós.

Recordam-se em silêncio os ausentes pela falta que fazem e a saudade que produzem e os presentes pelo incómodo que provocam e o fastio que acarretam.

Quase todos se empanturram na esperança de matar de vez a fome ancestral de gerações que permanece viva na memória de quem a herdou durante séculos. Gabam-se os pastéis de bacalhau recheados de batata a tresandar a óleo, a excelência do peru mal assado, a qualidade do polvo que saiu duro, repetindo-se discretamente a dose de bacalhau cozido, batatas e couves, regados com azeite de boa qualidade, numas merecidas tréguas ao bitoque e à pizza, enquanto se aguarda a panóplia de doces e frutos secos. São momentos para acumular prazer e peso enquanto a azia e os espasmos não devolvem o remorso e o incómodo.

Por uma noite repousam os guerreiros das batalhas adiadas do quotidiano, levam para o seio familiar uma ou outra intriga para não perderem o treino, cumprimentando-se com uma profusão de ósculos ora fraternos, ora de circunstância. E, por entre os votos canónicos de Boas Festas, recordam-se pequenos agravos e ruminam-se vinganças por umas palavras que não caíram bem, algum insulto durante a disputa do relógio de ouro do avô ou aquela terrina da Vista Alegre que espalharam a cizânia nas últimas partilhas.

Sobrevive do paganismo o festejo do solstício de Inverno. Fez dele a tradição judaico-cristã a festa da família. E quando a família se comporta como deve, a festa acontece e é um suave pretexto de encontros ansiados em volta de sabores que a memória guarda e de aromas que nos transportam à infância numa viagem carregada de afectos e saudade.

Que no dia certo haja festa em vossas casas, caros leitores.

Boas-festas, caros leitores.

(Publicado simultaneamente no «Ponte Europa»