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23 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Bloody Mary

Com a guerra dos cartoons aparentemente em fase de rescaldo seria interessante saber qual a reacção de alguns dos que tão indignadamente verberaram contra o ataque à liberdade de expressão se as televisões nacionais decidissem passar o episódio da série satírica South Park intitulado «Bloody Mary».

Nomeadamente aqueles que Fernanda Câncio num artigo imperdível no Diário de Notícias de 18 de Fevereiro, indica que «confundem os sentimentos religiosos de uma alegada maioria dos portugueses com uma identidade religiosa do Estado» e dos quais suspeita «até que (…) uma caricatura mais picante da mãe de Jesus desencadearia bastos autos-de-fé discursivos e exacerbados protestos de ultraje – pelo que o problema, para o CDS e para os como o CDS, estará em achar que o Maomé ‘deles’ não chega aos calcanhares da ‘nossa’ Virgem Maria».

O episódio em causa, cuja repetição foi censurada por grupo católicos americanos, que protestaram veementemente a sua primeira emissão, que juntando injúria à já abominável blasfémia, foi para o ar a 7 de Dezembro último, e exigiram um pedido de desculpas formal da Viacom, a empresa mãe da Comedy Central, a todos os católicos americanos (soa familiar?). Exigiram igualmente que o episódio fosse permanentemente retirado e que não fosse disponibilizado em DVD. Reinvidicações que conseguiram mas… o episódio está disponível para download para todos os que o desejarem (recomendo, o episódio é de facto um dos melhores da série).

O episódio envolve uma estátua da Virgem Maria, que, miraculosamente sangra … do recto. O «rebanho» congrega em torno da estátua para ser curado pelo sangue milagroso e o fenómeno toma tais proporções que Bento XVI é chamado a investigar o milagre. Este depois de descobrir que a estátua de facto está menstruada afirma «Uma miúda sangrando da vagina não é um milagre. As miúdas sangram sempre da vagina». O papa e os bispos são então agraciados com um duche inesperado com origem na estátua.

Entretanto na Nova Zelândia uma estação de TV transmitiu ontem o referido episódio, não obstante as ameaças de boicote da Igreja Católica a todos os canais da CanWest TV Works e aos produtos neles anunciados. De facto, sete bispos locais assinaram uma carta, lida durante a missa de domingo, exortando o «rebanho» a mostrar desta forma a sua indignação contra o que considera quebrar todos os padrões de decência e bom gosto.

Tal como Rick Friesen, o director de programação do canal, acho que «Existem muito mais problemas no mundo com que a Igreja Católica e outras religiões se deveriam preocupar e não com uma comédia satírica de meia-hora. É apenas televisão. Não é de facto nada de mais».

E sempre têm mais opções que as que foram oferecidas a todos os portugueses não católicos e sem TV por cabo no domingo passado: podem mudar de canal e não ver o programa que consideram ofensivo.

23 de Fevereiro, 2006 Ricardo Alves

O extravagante mundo das religiões

  1. A comunidade tribal de Naulu (no interior da ilha indonésia de Seram) pratica a decapitação ritual como forma de afastar a má sorte. Uma parte deste grupo de 900 pessoas acredita que devem ser oferecidas cabeças humanas aquando da reparação da casa maior do clã tribal. Recentemente, duas pessoas foram mortas ritualmente, o que originou um processo judicial. O advogado de defesa argumentou que os cidadãos indonésios da tribo em questão ignoram totalmente as leis estatais que criminalizam o corte de cabeças humanas por motivos religiosos. Efectivamente, até manifestaram em tribunal o seu orgulho por terem cumprido as tradições culturais da sua tribo. Três dos assassinos foram condenados à morte pelo tribunal indonésio.
  2. O Tribunal Supremo dos EUA considerou, por unanimidade, que é parte da liberdade religiosa importar chá alucinogéneo e usá-lo numa cerimónia religiosa. Em causa estava um movimento religioso de origem brasileira, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, que tem uma congregação de cerca de 130 membros no Novo México. Esse grupo utiliza um chá chamado Hoasca num ritual religioso de quatro horas que alegadamente permite aos participantes «aproximarem-se de Deus». O Governo dos EUA confiscara a droga em causa e tentara impedir a sua importação, invocando leis gerais e um tratado internacional sobres estupefacientes. Os seguidores desta religião originária da Amazónia argumentaram que o Hoasca é imprescindível para a sua prática religiosa. Notando um precedente (o uso de um derivado da mescalina em rituais religiosos de alguns grupos índios da América do Norte), o Tribunal Supremo proibiu o Governo de apreender novamente o chá alucinogéneo-religioso.
  3. O Governo da Malásia proibiu a música «Black Metal» sob a acusação de que os seus seguidores se desviam dos princípios islâmicos. Um porta-voz do Conselho islâmico nacional justificou o seu édito afirmando que a cultura «Black Metal» pode levar quem a ouve a rituais religiosos satânicos que incluem beber o próprio sangue misturado com sangue de cabra e queimar o Corão. Em Dezembro, a polícia da Malásia fizera uma rusga num concerto e detivera 105 adolescentes, que alegadamente estariam envolvidos em orgias e outras actividades religiosas satânicas contrárias aos princípios islâmicos.

Quais devem ser os limites da liberdade religiosa?

22 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Respeito pelos símbolos alheios

Esta madrugada em Samarra, uma cidade centenária nas margens do Tigre, um ataque bombista atingiu um dos lugares mais sagrados dos muçulmanos shiitas, o santuário al-Askari. O atentado, ao que tudo indica perpetrado por militantes sunitas, destruiu a famosa cúpula dourada que alberga os túmulos dos décimo, Ali al-Hadi, e décimo primeiro, Hassan al-Askari, imans, que os shiitas acreditam serem descendentes directos de Maomé.

O Ayatollah Ali al-Sistani, o líder espiritual dos shiitas iraquianos pediu uma semana de luto pela atentado.

Este é apenas mais um exemplo de que os muçulmanos, neste caso sunitas, que tanto se queixam da suposta insensividade religiosa ocidental que, horror dos horrores, vai ao cúmulo de permitir que se caricature os membros de panteões religiosos sortidos, não têm qualquer pejo em atacar os ícones religiosos de outrem, inclusive os de outras facções da mesma religião. Como a destruição das estátuas milenares de Buda em Bamiyan, Afeganistão, nos deveria ter feito reflectir…

21 de Fevereiro, 2006 Carlos Esperança

Morreu o banqueiro de Deus

Corria o Ano da Graça de 1978 quando João Paulo I ascendeu ao trono pontifício e anunciou uma investigação ao Instituto das Obras Religiosas (IOR) também conhecido por Banco do Vaticano cujas fraudes eram objecto de rumores.

Um jornalista comentou então: «Não anda cá muito tempo». E Deus assim o quis. João Paulo I foi Papa durante 33 dias e não verificou a contabilidade do IOR. Esqueceu-se de respirar durante a noite de 28 de Setembro.

Nunca se saberá se foi Deus que o chamou ou a Cúria que o enviou naquela madrugada de 1978. O Vaticano recusou a autópsia.

No consistório seguinte o Espírito Santo foi mais sensato e inspirou melhor os cardeais. JP2 foi o resultado do bom entendimento entre cardeais, Espírito Santo e Opus Dei.

Começou então a ascensão do arcebispo Paul Marcinkus, banqueiro e guarda-costas de JP2. Presidiu durante onze anos ao IOR, o principal accionista do Banco Ambrosiano, uma respeitada instituição financeira onde o Vaticano, a Mafia, o Opus Dei e outras pias instituições faziam os seus depósitos.

A duplicação fraudulenta das acções do Banco foi o expediente encontrado para cobrir um «buraco» provocado pela dupla Marcinkus/Roberto Calvi (este, um funcionário que o Vaticano fez Director).

Roberto Calvi foi encontrado enforcado num pilar de uma ponte de Londres. Marcinkus foi chamado a depor pela polícia de Roma mas o bondoso Papa JP2 nunca permitiu a extradição.

Morreu hoje, aos 84 anos, o antigo banqueiro da Santa Sé, protagonista de um dos maiores escândalos do Vaticano. Morreu em Phoenix, Arizona, sem barrete cardinalício.

20 de Fevereiro, 2006 Carlos Esperança

Bento 16 e as caricaturas de Alá

O Papa B16, distraído com o breviário ou preocupado com o polimento dos sapatinhos vermelhos, só hoje se pronunciou sobre a polémica em torno das caricaturas de Maomé.

E que defendeu o velho censor? A liberdade de expressão? O direito dos não crentes à denúncia do que julgam uma fantochada? A liberdade religiosa?

«É necessário e urgente que as religiões e os seus símbolos sejam respeitados e que os crentes não sejam alvo de provocações que firam a sua iniciativa e os seus sentimentos religiosos» – disse B16 durante a audiência ao embaixador marroquino junto do Vaticano, Ali Achour.

Para o velho inquisidor, este é o código de conduta a que todos se devem submeter. Não há uma palavra de censura para quem lapida mulheres, degola infiéis, tortura reclusos, assassina apóstatas e faz do livro sagrado a fonte de direito que quer impor ao universo.

O silêncio, perante crimes cometidos em nome de Deus, é a cumplicidade de quem gostaria de iguais condições para atear fogueiras, queimar livros e cometer desmandos.

20 de Fevereiro, 2006 Carlos Esperança

O funeral da Irmã Lúcia (Bis)

Foi um espectáculo pífio ver a fé de molho e os crentes a arremeterem contra o Céu, empunhando guarda-chuvas.

O padre Borga, refugiado no estúdio improvisado da RTP, exultava com a chuva e os pés enxutos. A seu lado estava o Sr. Duarte Pio, um reprodutor serôdio, que, até prova em contrário do ADN, se reclama descendente do senhor D. Miguel, católico trauliteiro que em Evoramonte renunciou ao absolutismo e ao trono de Portugal.

Fátima foi ontem mais do que lugar de ilusão, foi o penico do Céu com a base decorada com peregrinos, onde o Padre Eterno aliviou a bexiga e evacuou granizo, a pôr à prova a resistência dos crentes.

O Sr. Duarte dizia-se conde de Ourém, como se os títulos nobiliárquicos não tivessem sido extintos antes do nascimento da Lúcia e da sua pia obsessão de converter a Rússia. Debitou lugares-comuns e informou que tinha levado três filhos ao castigo.

O padre Borga e o Sr. Duarte estavam felizes enquanto a Irmã Lúcia, reincidente no seu próprio funeral, continuou morta durante o espectáculo para promoção da fé.

Dada a fraca afluência de peregrinos, prejudicada pela intempérie que se abateu sobre a Cova da Iria, com particular violência à chegada do féretro, a ICAR pensa na repetição do acto com as três vítimas da farsa, em cerimónia comum, num funeral colectivo.

20 de Fevereiro, 2006 Ricardo Alves

O delito de blasfémia em Portugal

«Um dos efeitos menores do caso dos cartoons dinamarqueses foi a descoberta das limitações à liberdade de expressão em Portugal, consignadas no Código Penal de 1995, muitas das quais parecem abusivas. Será que todos os partidos estão de acordo com aquelas limitações? O assunto mereceria, por si, alguma discussão

Assim termina, com o parágrafo acima reproduzido, um artigo de opinião de José Vítor Malheiros no Público de segunda-feira passada. Eu já chamara a atenção para os resquícios de «delito de blasfémia» que ainda existem no Código Penal português, e que poderão ser usados para limitar, por razões de sensibilidade religiosa, a liberdade de expressão. Vejamos quais são os artigos em questão.

Artigo 252º
Impedimento, perturbação ou ultraje a acto de culto
Quem:
a) Por meio de violência ou de ameaça com mal importante impedir ou perturbar o exercício legítimo do culto de religião; ou
b) Publicamente vilipendiar acto de culto de religião ou dele escarnecer;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

Na minha modesta opinião, a alínea b deste artigo nº252 deveria ser suprimida. Na prática, implica que quem troçar publicamente das missas católicas (e das procissões também?), dos rituais muçulmanos, satânicos ou outros se arrisca a uma pena de prisão por delito de opinião. Limita-se, assim, a liberdade de expressão sobre um tipo específico de actos, os actos de culto. Já a alínea a me parece razoável: o exercício do culto (da IURD, católico ou outro) deve ser respeitado. Mas vejamos também o artigo 251º…

Artigo 251º
Ultraje por motivo de crença religiosa
1. Quem publicamente ofender outra pessoa ou dela escarnecer em razão da sua crença ou função religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Na mesma pena incorre quem profanar lugar ou objecto de culto ou de veneração religiosa, por forma adequada a perturbar a paz pública.

No essencial, o §2 do artigo nº251 não me incomoda: não desejo matar um porco dentro de uma mesquita ou de uma sinagoga, nem jogar futebol de salão dentro de uma igreja católica. Já o §1, mesmo com a ressalva da «forma adequada a perturbar a paz pública» (que pode ser difícil de avaliar), me parece desnecessário. Seria melhor que fosse também eliminado, prevenindo assim interpretações excessivas. A não ser eliminado, poderia passar a referir-se a «Quem publicamente ofender outra pessoa ou dela escarnecer em função da sua crença ou ausência de crença», uma vez que os insultos a quem não tem fé, por não a ter, são tão ou mais comuns do que os insultos a quem tem fé, por a ter (não faltam exemplos nas nossas caixas de comentários).

Recorde-se que a Constituição da República Portuguesa estabelece a liberdade de expressão como um direito fundamental, e que portanto os preceitos referidos até poderão ser inconstitucionais.
20 de Fevereiro, 2006 jvasco

A sondagem e a Sharia

De acordo com uma notícia do news telegraph, foi realizada uma sondagem na qual 40% dos crentes islâmicos que vivem no Reino Unido se manifestaram favoráveis à introdução da Sharia em algumas partes do país.

É preocupante.

É preocupante que o valor da laicidade, da separação entre a igreja e o estado, entre os valores religiosos e a justiça, não sejam valores abraçados pela esmagadora maioria dessa comunidade.

Creio que isto é fruto de um problema estrutural e conjuntural.

Estrutural porque o modelo de integração é laxista. Vai-se cedendo passo a passo, com leis anti-blasfémia, com leis feitas à medida das «especificidades culturais», que esquecem os valores da laicidade, da igualdade perante a lei, enquanto os guetos proliferam.
A integração tem de ser baseada numa verdadeira igualdade de oportunidades, não em cedências cobardes que escondem um paternalismo descriminador.

Conjuntural porque (esta sondagem também o confirma) as relações entre a comunidade islâmica e os britânicos têm piorado. Muito, tanto quanto entendo.
Isto vem reforçar a minha tese de que a invasão do Iraque foi do pior que poderia ter acontecido à laicidade. Não só no Iraque, como em todo o mundo.