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18 de Março, 2006 Palmira Silva

Estados Cristãos Unidos da América?


Já tinha referido Sam Brownback, o republicano que os teocratas querem ver na presidência dos Estados Unidos em 2008 e um dos autores do «Acto de Restauração» – que limita o âmbito das acções que podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal, mais especificamente, faz com que não sejam passíveis de recurso decisões feitas por um agente judicial que reconheça Deus como a fonte da lei, liberdade ou governo – que pretende, no caso de ser eleito, implementar uma concepção de Estado em tudo análoga à defendida por Ratzinger na sua primeira Encíclica.

Na sua senda cristã de substituir a política pela fé, Brownback quer agora aumentar de um factor de dez as multas por indecências em programas televisivos como a exibição acidental do seio de Janet Jackson no SuperBowl de 2004. Assim, Brownback, com o aplauso de organizações fundamentalistas cristãs como a American Family Association e o Family Research Council pediu ao Congresso norte-americano que aprove o seu Broadcast Decency Enforcement Act.

Mas a cristianização crescente da política norte-americana não é suficiente para os teocratas americanos que avisaram ontem o Partido Republicano (GOP) que vão ter de se esforçar mais na transformação dos Estados Unidos nos Estados Cristãos Unidos a riscos de serem penalizados nas eleições intercalares deste ano.

Esgrimindo o papel decisivo dos fundamentalistas cristãos nas duas eleições de G. W. Bush e na eleição de uma maioria republicana no Senado e Câmara de Representantes (que conjuntamente constituem o Congresso) os teocratas cristãos avisaram os republicanos que «têm de fazer mais» para manter a sua base de apoio cristã.

Aparentemente não é suficiente que apenas 11 estados tenham banido os casamentos homossexuais, é necessário alargar a proibição todos os estados, via uma decisão federal.

Assim como não é suficiente a punição dos promíscuos com a revogação da venda livre da contracepção de emergência, a chamada pílula do dia seguinte. É necessário não apenas que todos os estados aprovem leis que permitam a recusa de venda de contraceptivos com base em «objecção de consciência» mas que sigam as pisadas do Missouri recusando apoio financeiro para contracepção a mulheres de poucos recursos finaceiros. Idealmente que a contracepção seja proibida nos Estados Unidos!

E, claro, é necessário que todos os estados emulem o South Dakota e proibam o famigerado aborto em todas as circunstâncias, excepto as previstas na «Sodomized Religious Virgin Exception» e para salvar in extremis a vida da gestante.

Para além disso, apenas o Missouri e o Kansas, terra dos cristãos sem medo que aprendem o bom (neo)criacionismo cristão nas aulas de biologia, perceberam que é necessário acabar com a abominação que são as aulas de educação sexual nas escolas públicas.

Claro que é uma boa notícia para os fundamentalistas cristãos que o Tennessee tenha passado uma lei permitindo placas de matrícula estaduais anti-aborto que ostentem os dizeres «Choose Life» e tenha proibido placas que leiam «Choose Choice». O diferencial do preço (mais elevado) destas placas vai direitinho para os cofres de uma organização anti-aborto, a New Life Resources. Mas não é suficiente que apenas 13 estados permitam estas placas, Alabama, Arkansas, Connecticut, Florida, Hawaii, Louisiana, Maryland, Mississippi, Montana, Ohio, Oklahoma e South Dakota.

E, não obstante os esforços de Bush em tentar controlar a ciência que se faz nos Estados Unidos, nomeadamente com o desvio de fundos de investigação para projectos cretinos e não científicos como o poder da oração e afins, a análise do financiamento científico federal pela The Traditional Values Coalition (TVC), uma organização que representa 43000 Igrejas americanas que veta projectos de investigação «imorais», controle da blasfema investigação em células estaminais, os cientistas continuam a «contaminar» os Estados Unidos com as suas teorias ateístas e a impedir que as boas«teorias» obscurantistas cristãs sejam livremente difundidas.

Será que o GOP – e o resto da América – perceberam a mensagem? Ou será que Tony Perkins necessita realizar mais conferências de imprensa para os americanos perceberem a real ameaça que os fundamentalistas cristãos constituem*?

E que por mais medidas cristãs que sejam promulgadas elas nunca serão suficientes para os fanáticos cristãos até os Estados Unidos serem um «paraíso» bíblico seguindo à letra as leis divinas e aplicando castigos «bíblicos» às prevaricações a essas leis?

*Sobre o tema ver um artigo no New York Times de ontem que analisa o mais recente livro de um estratega do GOP, Kevin Phillips, dos finais dos anos sessenta, início dos anos setenta, American Theocracy: The Peril and Politics of Radical Religion, Oil, and Borrowed Money in the 21stCentury.

18 de Março, 2006 Palmira Silva

Acto falhado teocrata

No passado dia 1 de Março o professor de direito e candidato democrata ao Senado pelo estado de Maryland, Jamie Raskin, testemunhou em Annapolis numa audiência sobre a proposta Emenda à Constituição norte-americana que proibiria o casamento homossexual.

No final do seu testemunho uma senadora teocrata (republicana) afirmou que, de acordo com a Bíblia, o casamento foi uma decisão divina e que:

«Para mim este é um assunto assente exclusivamente em príncipios religiosos»

A que Raskin respondeu «Senadora, quando pronunciou o seu juramento na tomada de posse, colocou a mão sobre a Bíblia e jurou defender a Constituição. Não colocou a mão sobre a Constituição e jurou defender a Bíblia».

Junto os meus aos aplausos que irromperam na sala a estas palavras. Mas infelizmente nos Estados Unidos há cada vez mais teocratas cristãos em posições de poder que pretendem a inversão e perversão de valores indicada por Raskin!

18 de Março, 2006 Palmira Silva

Molly Blythe

Uma escritora e ex-jornalista transformada em blogger, Molly Blythe, publicou no seu blog um guia de instruções completo num post com o título «Para as mulheres de South Dakota: Um manual de aborto».

O manual é devotado às mulheres de South Dakota, estado em que o aborto vai ser proibido em todas as circunstâncias, incluindo violação, incesto e perigo para a saúde da gestante, com a única excepção nos casos em que a vida da mulher está em perigo se continuar a gravidez, excepção que para os mui cristãos promotores da nova lei inclui a já famosa «Sodomized Religious Virgin Exception».

Segundo Molly, ela e alguns amigos têm coligido informação sobre o aborto nos últimos anos uma vez que acreditam, depois da confirmação dos primeiros teocratas cristãos para o Supremo Tribunal, que a resolução de 1973 do Supremo que permite o aborto, Roe vs Wade, não perdurará num país cada vez mais dominado pelos teocratas, pelo menos a nível do Supremo.

Como seria expectável choveram ameaças de morte sobre Molly por parte dos devotos cristãos, defensores intransigentes do direito à vida de óvulos e espermatozóides, que, e talvez por Molly declarar o blog como um local de discussão de assuntos feministas, não resistem a tentar silenciar pela força todos os que não partilham a sua visão cristã misógina do mundo. Muitos comentários, variantes menos polidas de mandar as mulheres, isto é prostitutas, fecharem as pernas, confirmam que o que está em causa na questão do aborto nem remotamente tem a ver com qualquer defesa de vida humana mas sim com o problema que esses cristãos têm com a autodeterminação sexual das mulheres e com o facto de poderem apreciar sexo sem «punição».

Na mesma linha de punição das mulheres, o estado do Missouri, em que foi aprovada uma resolução reconhecendo o cristianismo como a religião oficial do Estado, a única religião que tem «reconhecimento justificado», prepara-se para aprovar leis que não só proibem o aborto como a educação sexual nas escolas e o apoio financeiro estatal a contraceptivos a mulheres com poucos recursos ou mesmo a organizações que expliquem a essas mulheres qual o melhor contraceptivo e onde o podem comprar. O que pareceria um contrasenso se os devotos legisladores de facto estivessem preocupados com o aborto já que sem informação nem auxílio na compra e acesso a contraceptivos será prevísivel que mais mulheres e adolescentes do Missouri se encontrarão em situações de gravidezes indesejadas… Mas na realidade apenas traduz fielmente a posição cristã sobre o sexo!

17 de Março, 2006 Palmira Silva

Uniões de facto homossexuais reconhecidas na República Checa

A República Checa concedeu reconhecimento legal às uniões de facto homossexuais, tornando-se o primeiro país europeu ex-comunista em que tal acontece. A lei, que tinha sido vetada pelo presidente Vaclav Klaus depois de aprovada em Janeiro por 45 votos a favor, 14 contra e seis abstenções, passou com o número mínimo de votos necessários para ultrapassar o veto presidencial.

A lei agora aprovada permitirá a casais homossexuais criar crianças mas não adoptá-las, para além de conceder direitos de herança idênticos aos de casais heterossexuais

Como indica o enviado da BBC a Praga, a sociedade checa, com uma população maioritariamente ateísta, e uma das mais seculares e liberais da Europa, apoiava a lei, que contava essencialmente com a oposição, como seria de esperar, de grupos religiosos, católicos nomeadamente, felizmente com pouca ou nenhuma influência na República Checa.

17 de Março, 2006 Carlos Esperança

Os pés de S. Francisco Xavier

(Foto de E.O. – enviado do Diário Ateísta, em Goa)
O mórbido desvelo da Igreja católica pelos cadáveres devia levá-la a criar um piquete de urgência para reparar as mazelas que corroem os corpos dos santos defuntos, como faz a Brisa com os buracos das auto-estradas.

O bom senso devia levá-la a privilegiar os ossos, fáceis de substituir e mais resistentes ao tempo e à humidade, sem perda da santidade do bem-aventurado referido na etiqueta.

A Capela dos Ossos, em Évora, hediondo culto do tétrico e lucrativo apelo à devoção, é a prova de que os ossos resistem e a carne é fraca, como a própria ICAR ensina.

Em Itália – já aqui referi no D. A. – uma guia turística debitava um ror de milagres junto do esqueleto de um virtuoso e excelente santo que continuava a obrá-los. A seu lado um esqueleto pequeno passava despercebido por entre uma panóplia de ossos pios que mais pareciam amostras de um laboratório anatómico.

Tendo um turista perguntado a que santo pertencera o pequeno esqueleto, logo a guia o atribuiu ao mesmo santo… quando era mais novo.

A ICAR vive do cadáver de J. Cristo que, por lhe ter perdido o rasto, o domicilia no Céu para onde terá emigrado três dias após a morte. Exibe-o agora, esculpido e chagado, só ou dependurado em cruzes mas não despreza as aparas do santo lenho onde o fundador da seita – segundo a propaganda – terá agonizado.

À falta de corpo não há milagres. Cristo é um mero logotipo para identificar a religião e facilitar a venda de indulgências, liturgias, sacramentos e artigos pios.

Por isso, os santos têm elevada cotação no mercado da fé e provocam muita emoção no bazar católico. Mas há desleixo dos inspectores de relíquias e incúria nos zeladores dos mortos.

Falta aos santos cadáveres um código de barras, inspecção sanitária e prazo de validade, para advertir os funcionários de Deus a quem cabe a manutenção da mercadoria.

Com algum zelo a ICAR nunca mais permitirá que um santo tão exaltado – S. Francisco Xavier – deixe chegar os pés ao estado deplorável que a imagem documenta.
16 de Março, 2006 Carlos Esperança

S. Francisco Xavier – Apóstolo das Índias

(Fotografia recente, amavelmente cedida por E. O.)

Desacreditada com a última leva de santos que JP2 criou em doses industriais, como nos aviários se produzem frangos, e descoroçoada com a falta de originalidade dos milagres, virou-se a ICAR para santos antigos, de sólido prestígio, reconhecimento público e clientela fiel.

Francisco Xavier é uma dessas reputações sem mácula, um jesuíta da primeira hora, nascido em Espanha, amigo e discípulo de Loiola, que estudou em França e partiu, ao serviço de D. João III (o Piedoso), para o Oriente.

Evangelizou na Índia, Malaca, Molucas e Japão, ímpios que converteu à única religião verdadeira e, assim, os resgatou do limbo, dando-lhes o passaporte para o Paraíso onde certamente ainda residem as almas por falta de acordos bilaterais de extradição com o Inferno.

Francisco Xavier era tão santo que o corpo ficou incorrupto, prova de santidade e fonte de receitas para a Igreja cujo culto mórbido por cadáveres é uma verdadeira obsessão.

Há cerca de cinquenta anos as relíquias (fragmentos de cadáver em bom estado de conservação) vieram de Goa e viajaram por este velho Portugal para gáudio e pasmo das populações rurais que acorriam a ver a mão do santo, tendo como brinde a missa, um sermão do padre Pinto Carneiro e uma procissão.

A mão comoveu crentes e resistiu à viagem, às homilias e às procissões, dentro de um relicário cujo vidro a defendia dos devotos que a contemplavam com ar bovino.

Perdido o Império colonial, que começou a ruir na Índia, lá ficou o cadáver na velha Goa, na Basílica do Bom Jesus, onde o santo jaz morto e apodrecido.

Um cadáver que gozou de excelente estado de conservação durante séculos está agora, por falta de orações, no estado deplorável que a imagem documenta.

Faz no próximo dia 7 de Abril 500 anos que nasceu o santo. A ICAR prepara a festa, mas deixou apodrecer as relíquias.

15 de Março, 2006 Palmira Silva

Defensores da fé

«Mas esta prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito e nossa liberdade devem submeter-se.» (Leão XIII, encíclica Libertas Praestantissimum, 1888)

«O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens.» (João Paulo II, encíclica Centesimus Annus, 1991)

Um argumento recorrente, e totalmente falso, por parte dos crentes em relação ao ateísmo consiste na afirmação que um sistema ético divorciado do «sobrenatural» é simplesmente utilitário/subjectivo/nihilista e redunda numa sociedade injusta e selvagem. Esquecendo que não há uma única crença religiosa que resista a um escrutínio objectivo; que não existe sequer uma única evidência que Deus, Alá, Yahweh, Shiva, Marduk , etc. sejam mais que as congeminações dos que os propuseram. E o mesmo em relação às supostas verdades «reveladas». Para além de que a suposta ética religiosa é uma ética mercenária em que se compra um lugarzinho no Paraíso por obediência a essas leis «reveladas».

Em qualquer religião, especialmente as do livro, há inúmeras interpretações quer da «verdadeira» natureza de Deus quer das suas «leis». E o terrorismo religioso é indissociável das religiões e tem sido justificado ou como excesso de fé ou por uma interpretação contrária a essa «verdadeira» natureza divina e às respectivas «verdadeiras» leis.

O problema é que essa natureza e as suas leis são o que alguém diz serem e, como temos apreciado ao longo da História, quer essa natureza quer as leis «reveladas» têm sofrido alterações radicais. O que torna essas verdades absolutas e as morais/éticas associadas mais subjectivas que a ética humanista ateísta. Porque a ética humanista é construída racionalmente a partir de premissas consensuais, como os direitos humanos, e por processos lógicos cujas regras são conhecidas de todos. As religiões apenas podem justificar as suas morais (irracionais) apelando a uma suposta experiência sobrenatural de um qualquer profeta, papa ou afins e que não resiste (nem pode ser sujeita) a uma análise racional.

Assim, para os crentes em qualquer religião, e todas exigem obediência acrítica ao que debitam, o imperativo de fazer o que quer que seja que Deus (ou o Espírito Santo) supostamente sussurra no ouvido de qualquer alucinadoou oportunista sobrepõe-se aos mais básicos princípios da convivência humana.

O cristianismo em particular aponta como doutrina fundamental uma aceitação submissa dos ditames do Vaticano, que se opõe a qualquer «insubordinação, relutância em obedecer, rebelião contra a autoridade». Um exemplo é o de Abraão e Isaac. Deus ordena a Abraão para sacrificar o seu filho, isto é, Deus ordena a Abraão para cometer um assassínio. Há aqui um aparente paradoxo, resolvido se entendermos que este episódio pretende incutir a lição que é mais importante obedecer a Deus do que preservar a vida humana. Nenhum princípio, verdade, honestidade intelectual, respeito pela vida humana, se sobrepõe à estrita fidelidade à miragem da «vontade» de Deus.

Estes (e outros) argumentos são desmontados num fabuloso artigo de Slavoj Zizek*, de leitura obrigatória, no New York Times de domingo. Deixo para já alguns parágrafos que reflectem exactamente o que penso sobre os temas abordados.

«Durante séculos disseram-nos que sem religião não éramos mais que uns animais egoístas, lutando pelo nosso quinhão, a nossa única moralidade a de uma alcateia de lobos; apenas a religião, diziam-nos, nos pode elevar a um nível espiritual mais alto. Hoje em dia, quando a religião emerge como a fonte de violência assassina por todo o Mundo, soam ocas as desculpas de que os fundamentalistas cristãos ou muçulmanos ou hindus apenas abusam e pervertem as nobres mensagens espirituais das respectivas crenças. E que tal restaurar a dignidade ao ateísmo, um dos maiores legados da Europa e talvez a nossa única hipótese de paz?

Há mais de um século, no livro ‘Os irmãos Karamazov’ e em outras obras, Dostoyevsky avisava-nos contra os perigos de um niilismo moral sem Deus, essencialmente argumentando que se Deus não existe então tudo é permitido. O filósofo francês André Glucksmann até aplicou ao 11 de Setembro a crítica de Dostoyevsky ao niilismo ateu, como sugere o título do seu livro ‘Dostoyevsky in Manhattan’.

Este argumento não podia estar mais errado: a lição que nos dá o terrorismo actual é que se Deus existe então tudo, incluindo rebentar com milhares de inocentes, é permitido – pelo menos para aqueles que clamam agir directamente em nome de Deus uma vez que, evidentemente, uma ligação directa com Deus justifica a violação de quaisquer considerações ou constrangimentos meramente humanos. Abreviando, os fundamentalistas religiosos tornaram-se iguais aos comunistas estalinistas sem Deus, para quem tudo era permitido uma vez que se consideravam instrumentos directos da sua divindade, a Necessidade Histórica de Progresso a caminho do Comunismo.»

(…)

Os fundamentalistas fazem o que consideram como boas acções de forma a cumprirem a vontade de Deus e para ganharem a salvação; os ateístas fazem-nas simplesmente porque são a coisa certa a fazer. Não é esta a nossa mais elementar experiência de moralidade? Quando eu faço uma boa acção não a faço como um suborno para cair nas boas graças de Deus; faço-la porque se não a fizesse não me conseguiria olhar no espelho.»

*O filósofo Slavoj Zizek, é o director internacional do Birkbeck Institute for the Humanities. O seu livro mais recente e o mais representativo é «The Parallax View».

15 de Março, 2006 Carlos Esperança

A ICAR e a liturgia

Um bispo que abdique do Palácio Episcopal, dispa a mitra e a capa de asperges, pendure o báculo e arrecade o anelão com ametista, prescinda dos fâmulos, reverências e beija-mão, venda a custódia e leve ao prego a cruz de diamantes, pode tornar-se um cidadão.

Se o clero desistir do processo alquímico que transforma a água normal em benta, o pão ázimo em corpo e sangue de Jesus e as orações em modo de pagamento de apartamentos no Paraíso, pode recuperar a honestidade que o charlatanismo comprometeu.

Se renunciar às novenas, missas e procissões, ao lausperene e ao te deum, pode reservar as energias para o bem público.

Se a confissão, a terrível arma que viola a intimidade dos casais, a honra dos crentes e a confiança da sociedade, for abolida, deixando ao deus que dizem omnisciente a devassa dos pecados e o sigilo, o mundo fica mais tranquilo.

As religiões são especialistas em idolatrar o passado e mitificá-lo. Fazem piedosas falsificações, inventam documentos e fazem relíquias para embevecer os carentes do divino em busca de uma assoalhada no Paraíso.

O incenso e os sinais cabalísticos prejudicam a reflexão e o livre-pensamento.

15 de Março, 2006 Ricardo Alves

Onde está o bom-senso, onde está a realidade?

A propósito do seu novo filme, Manoel de Oliveira cometeu declarações no Diário de Notícias que, para ser simpático, me limito a qualificar como disparatadas: «Agora tiram o véu às meninas que vão ao colégio com véu, tiram os Cristos de algumas escolas, é proibido ter qualquer religião mas não é proibido ser ateu ou laico. Onde é que está a liberdade, onde é que está a tolerância?»

A minha vontade é responder ao conhecido realizador de cinema perguntando-lhe «onde está o bom-senso, onde está a realidade?». Efectivamente, a última vez que me dei conta de um esforço significativo para impedir alguém de ter uma dada religião em Portugal foi há exactamente dez anos, quando houve uma campanha pública contra um pequeno grupo evangélico neo-pentecostal, a IURD. Na altura, chegou-se mesmo a destruir um local de culto desta religião e a IURD foi expeditamente despejada de vários templos que não estavam devidamente autorizados. Não se constata zelo comparável na aplicação das leis quando está em causa a religião que inspira Manoel de Oliveira no seu último filme, e não me recordo de o realizador nonagenário ter defendido a liberdade de religião dessa igreja que tinha métodos de marquetíngue tão eficazes, mas que era talvez popularucha demais para a selecta estética oliveiriana.

Devo ainda acrescentar que na minha cabecinha ateísta não pode ser classificada senão como humorística a ideia de que tirar crucifixos das escolas públicas seja «proibir qualquer religião». Parece-me que impô-los a quem não os quer será, isso sim, senão «proibir» o ateísmo ou qualquer religião que não tome o crucifixo como símbolo (ou seja, todas à excepção do catolicismo), pelo menos obrigar quem não segue o catolicismo a conviver com uma religião que rejeita. Mas admito que isto sou eu, com esta minha mania de que são as pessoas e não as sociedades que têm religião e que, horror dos horrores, ninguém deve ser obrigado a seguir uma religião que não deseja.

No fundo, o melhor de Manoel de Oliveira sempre foi a comédia, e é nessa categoria que se devem arquivar as suas declarações.
14 de Março, 2006 Palmira Silva

Isaac Hayes deixa South Park

Isaac Hayes a voz do «Chefe» em South Park abandonou a série por, alegadamente, já não aguentar as sátiras à religião que abundam nesta série satírica.

Hayes, que personifica o cozinheiro da escola desde 1997, justificou a sua saída porque «As crenças religiosas são sagradas para as pessoas e devem ser sempre respeitadas e honradas». Estranhamente Hayes, um devoto cientologista e crente em Xenu, «thetan’s» e demais delírios do escritor de ficção científica L. Ron Hubbard que inventou a religião há cerca de meio século, nunca protestou as muitas sátiras devotadas a outras religiões. Os pruridos de Hayes apenas se manifestaram depois de um episódio de South Park (entretanto banido depois de Tom Cruise ter ameaçado processar a Paramount se o episódio fosse emitido outra vez), «Trapped in the Closet», ter satirizado a Igreja da Cientologia e as celebridades que acreditam nos disparates extra terrestres sortidos desta religião.

Matt Stone, co-criador de South Park, afirmou ontem à Associated Press que «Isto tem 100% a ver com a sua fé na Cientologia… Ele não tem problemas – e recebeu montes de cheques – em que o nosso programa satirize cristãos» acrescentando que «Ele quer um padrão diferente para as outras religiões e para a sua e, para mim, é aí que a intolerância começa».

Embora o «Chefe» fosse um personagem que de certa forma normalizava o mundo disfuncional de South Park numa nota optimista pode ser que agora possamos ver um episódio de «Bullshit! on Scientology»!