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Categoria: Religiões

20 de Fevereiro, 2010 Carlos Esperança

Bispos não vão à manifestação

Apesar de ninguém ser obrigado a casar com pessoas do mesmo sexo, são esperados numerosos participantes, desejosos de impedir que outros o possam fazer, no desfile de hoje, na Av. da Liberdade, em Lisboa.

Exercem um direito legítimo e indiscutível, além de ser a oportunidade para visitarem a capital com transporte pago, para os que aí rumam de dioceses tão longínquas como a de Bragança.

A Plataforma Cidadania e Casamento que convocou o protesto para as 15H00, com a ajuda de 19 comités regionais, teve a bênção eclesiástica e a divulgação da homofobia percorreu todas as paróquias de Portugal. A manifestação teve apelos nas homilias, nos confessionários e na comunicação social, mas é desolador saber que apenas alguns padres, a quem é vedada a interrupção do celibato, integram a manifestação.

Em Espanha foi diferente. Cardeais e bispos misturaram-se com as sotainas do baixo clero e os vestidos luxuosos da alta sociedade num êxtase de raiva beata e de ódio santo. Em Portugal nem uma só mitra indica o caminho da revolta, nem um só báculo marca o passo desde o Paço à Avenida, nem um único anelão com ametista se exibe aos beiços ansiosos dos devotos.

A Conferência Episcopal aplaude a iniciativa mas recusa comprometer os bispos – esses especialistas em moral familiar – nas vicissitudes da manifestação de êxito incerto e sem apoio divino. As próprias condições meteorológicas podem trocar a devoção pia pelo aconchego dos cafés e das bebidas quentes. Só o Papa se alegra com as intenções.

O céu pode esperar.

19 de Fevereiro, 2010 Ricardo Alves

Hitchens: do ateísmo ao combate ao islamismo

Foi uma excelente iniciativa da Casa Pessoa, a conferência de ontem com Christopher Hitchens. É raro podermos sentir que Portugal não fica de fora do movimento global de ideias.
Hitchens começou com uma citação de Marx, e com algumas memórias, dos anos 70, dos seus contactos com revolucionários africanos de língua portuguesa.
A citação do «ópio do povo», descontextualizada como habitualmente, é reduzida a um bitaite anti-religioso. Na opinião de Hitchens, é mais do que isso: Marx entendia a crítica da religião como o início do processo que liberta o homem para questionar a sua condição.

No início da parte mais formal da sua conferência, Hitchens sublinhou como «Deus» retira o homem da sua liberdade, ao condicionar o seu pensamento ao de um «criador» que estabeleceu o que é certo e errado. Precisou a distinção entre o deísmo (mera fé) do teísmo (que já presume uma religião revelada, com os seus textos dogmáticos e as suas regras normativas inquestionáveis).

Christopher Hitchens é um bom conferencista. Exprime-se com clareza, em frases curtas, leu os clássicos do iluminismo (mais os anglo-saxónicos, todavia), acompanha as descobertas científicas actuais, e trata de questões complexas com frases certeiras, rematadas com o humor altivo típico da sua formação oxfordiana.

Existem, sem dúvida, boas razões para o regresso de um ateísmo combativo: a persistência de irracionalidades supersticiosas que impedem um mundo mais justo; as tentativas renitentes de interferir na política das democracias; e o islamismo radical.

Foi só na parte final da sua intervenção, e em particular no período de perguntas, que Hitchens insistiu mais na questão do islamismo radical enquanto movimento global. Está correcto quando afirma que se trata do único movimento totalitário global em ascensão no mundo actual; e quando acrescenta que boa parte da esquerda europeia renunciou a confrontar esse movimento, com o argumento do «anti-imperialismo»; é injusto quando diz que a Europa, toda, desistiu. Porque, na verdade, muitas correntes políticas na Europa percebem bem o que o extremismo islâmico na Europa significa. A proibição do véu nos serviços públicos, na França de 2004, é um sinal claro de que pelo menos um país ainda entende que o laicismo não se resume à separação entre o Estado e a igreja (católica).

A pretexto de um autógrafo, troquei mais algumas palavras com o homem. Interessava-me sobretudo entender que limites entende que se devem colocar no combate contra o islamismo. Disse-me que Geert Wilders apela aos «sentimentos errados» mas que, se fosse suíço, não saberia como votar no referendo sobre os minaretes («que são a coisa mais bonita no Islão»). Mostrou-se também sensível ao perigo que representam a Arábia Saudita e o Paquistão. A insistência no Irão aparece, portanto, como escusada. E como um alinhamento excessivo com a política externa dos EUA. O que me parece desnecessário.

No fundo, Hitchens ainda tem algo de marxista: a convicção de que é viável uma «guerra permanente» contra os movimentos reaccionários activos no mundo. Mas é lamentável que não tenha retirado a lição do que isso significou no Iraque.

17 de Fevereiro, 2010 Carlos Esperança

Freiras carmelitas e liberdades individuais

A notícia de que as Carmelitas vão poder ligar o televisor para ver o Papa, quando da sua deslocação a Portugal, em Maio próximo, não surpreende quem acompanhe a vida religiosa, mas perturba os que se preocupam com a defesa dos direitos e liberdades individuais.

Não discuto se estas mulheres, que fizeram voto de silêncio, se encontram em clausura de livre vontade, se rezam por convicção e se anulam por vocação. A Irmã Lúcia, a mais antiga reclusa conhecida, morreu com odor a santidade e canonização garantida, depois de ter visto o Sol às cambalhotas, de ter falado com uma senhora muito bela, que lhe revelou segredos para o mundo inteiro, preocupada com a conversão da Rússia, e que, do cimo de uma azinheira da Cova da Iria, lhe pediu para divulgar o terço como o mais eficaz demonífugo.

Não me inquieta que a vidente tenha visitado o Inferno onde viu logo o administrador do concelho de Ourém que, por acaso, não frequentava a missa, nem que tenha previsto que um homem de branco seria baleado e que João Paulo II se tenha considerado o alvo dessa profecia.

O que me preocupa é a clausura, com a exclusiva excepção para votarem, certamente no partido que melhor defenda a família, que lhes é interdita, a obrigatoriedade da reclusão e o voto de silêncio, anormalidades a que podem pretender renunciar mas que a coacção conventual, o corte de laços com a família e com o mundo impedem definitivamente.

Será legítimo, num Estado democrático, a existência de cárceres privados, ainda que sob os auspícios da única religião verdadeira? Não deverá o Estado, à semelhança do que faz com creches e lares da terceira idade, exercer um papel fiscalizador que averigúe as relações de poder dentro desses cemitérios de gente viva, no interior de conventos onde as mais cruéis formas de relacionamento podem existir à margem de qualquer controlo?

Sabemos o que sucedeu na Irlanda com jovens metidas em conventos – por terem sido mães solteiras ou para serem afastadas das heranças –, eram vítimas de maus tratos e de tarefas repetitivas que as alienavam. Depois do julgamento dos tribunais que mandaram encerrar esses antros de violência e piedade cristã, não seria avisado que assistentes sociais, médicos e psicólogos ouvissem as reclusas fora do olhar assustador da madre superiora e do director espiritual?

Num país democrático não pode haver feudos onde a mais leve suspeita de violência se possa levantar e onde o Estado se desinteresse pela vida de quem alienou direitos que a consciência humana e as leis consideram irrenunciáveis.

13 de Fevereiro, 2010 Carlos Esperança

O bom abade Jean Meslier

Um século antes de Nietzsche e várias décadas antes do marquês de Sade foi um padre ateu, vigário de aldeia que viveu no norte da França entre os anos de 1664 e 1729 que, no manuscrito intitulado «Memória dos pensamentos e dos sentimentos de Jean Meslier», concluído em 1720, e nas Cartas aos curas, preconizou uma sociedade ideal fundamentada no ateísmo.

O abade Meslier, indignado com a opressão e as injustiças sociais praticadas contra os camponeses, durante o reinado de Luís XIV, foi um autor radical, incisivo, comunista e ateu, mas manteve as suas ideias no mais absoluto sigilo, pois sabia que, não existindo vida para além da morte, devia preservar a única e irrepetível que lhe coube.

Os seus escritos onde nega de forma inequívoca o dogma da criação do universo e, por conseguinte, as ideias de divindade, transcendência e ordenação divina da natureza, só foram conhecidos postumamente. Foi um revoltado, por razões políticas e sociais, com sermões materialistas, mas calcula-se o escândalo provocado pelo seu ateísmo, quando foi conhecido, e pelas diatribes contra Cristo, que descreveu como louco, fanático, ignorante e charlatão, indivíduo astuto que se aproveitou da credulidade e do desespero de pessoas ignorantes para estabelecer o seu império.

Foi, aliás, imensamente crítico para com a religião, que considerou um artifício humano, nefasto expediente dos espertalhões e um eficiente instrumento de dominação utilizado por reis, sacerdotes e demais parasitas para submeterem e manipularem as populações miseráveis e abatidas pelo sofrimento.

O abade Meslier é um expoente do Iluminismo francês cujo manuscrito, se não fosse tão prolixo e de estilo rebarbativo, era merecedor de ombrear com as obras de Montesquieu, Rousseau e Voltaire, na filosofia política das Luzes que originou a Revolução Francesa.