Se o sr. Domingues tivesse escrito que os africanos são «cretinos», seria racista. Se tivesse designado os judeus por «quadrilha de idiotas», seria anti-semita. Se tivesse chamado «estúpidos» aos brasileiros ou aos chineses, seria xenófobo. Se o Público tivesse editado um artigo aludindo à «burrice» católica, dez bispos gritariam «a ICAR está a ser perseguida». Se o alvo fossem os muçulmanos, haveria uma crise internacional. Se um militante do PS (ou de outro partido) tratasse, nos jornais, os do PSD (ou de outro partido) de «estúpidos», «cretinos» e «idiotas», seria excluído do debate público. No entanto, este género de linguagem ordinária é permitido a um grupo específico de portugueses, os sacerdotes católicos. Haverá justificação para se ser eticamente menos exigente com estes senhores? Eu penso que não.
O artigo referido veio na sequência de uma célebre campanha do jornal Público, durante a qual o militante clerical António Marujo tentou convencer os leitores de que iam laicistas a casa das pessoas impedi-las de fazer presépios ou de sairem para a «missa do galo». A campanha era montada a partir de falsidades e meias-verdades, e duvido que Frei Gambozino Domingues não o soubesse. Foi grosseiro gratuitamente.
Por um misto de paternalismo e comiseração por quem ganha a vida a vender uma banha da cobra chamada «ressurreição», a contar patranhas sobre as leis da natureza e sobre acontecimentos históricos, e a meter-se na vida dos outros, muitas pessoas tendem a ter padrões éticos mais baixos para os sacerdotes católicos. É um erro. Qualquer padre pode compreender que a «ressurreição» é treta, e que não é por querer agradar a divindades abstractas que se deve ajudar as pessoas concretas. Resta acrescentar que certos ingénuos e ingénuas acham Frei Gambozino «tolerante». Eu não percebo se os insultos que profere são toleráveis para essas pessoas. Para mim, não são.
[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]
A minha vizinha Efigénia (pseudónimo que uso para evitar agravar-lhe o mal), amiga da missa e da hóstia, ficou doente.
No período que precedeu o Referendo da IVG papou a missa diária, deixou queimar o arroz e a massa três vezes, vazou-lhe a sopa outras tantas e pegou fogo o fogão quando se distraiu a rezar a salve-rainha. Até o bolo de chocolate que fizera para o filho, que vinha de fim-de-semana, se lhe reduziu a carvão quando debitava o terço no oratório do quarto.
A D. Efigénia já me disse que era uma pena eu não ir à missa, tão boa pessoa, até reza pela minha conversão e não desanima de ver-me subir as escadas da igreja da paróquia, entregue a uns frades depois de começarem a escassear os padres seculares.
A D. Efigénia nunca pensou perder o Referendo, era pela vida, sabia que a Senhora de Fátima andava a desfazer-se em lágrimas de sangue, espécie de menstruação ocular, e que não permitiria que as forças do mal vencessem.
Aliás, ela bem sabe como os portugueses são atreitos ao medo do Inferno, embora este tenha sido abolido, e como sentem a falta das cantorias e do padre no funeral. Sorria feliz com o Cânone 1331 que excomungaria os que votassem SIM no Referendo: «não poderiam casar, baptizar-se nem ter um funeral religioso».
Julgava a boa da D. Efigénia que o medo era suficiente para dar a vitória à Senhora de Fátima, ao seu amado filho, ao pai do Céu e a todos os que se preocupam com pecados.
Quando viu que 2.338.053 desprezaram as suas orações, missas, novenas, terços e outros pios demonífugos começou a cismar que Deus não existe, a senhora de Fátima é uma burla, os anjos não voam, rastejam, e os padres são funcionários de uma empresa cujos produtos não têm certificado de garantia nem prazo de validade.
A D. Efigénia, continua a benzer-se, mas até julga que alguns defensores do Não são proprietários de clínicas clandestinas e que a despenalização do aborto lhes vai acabar com o negócio.
Entre a salvação da alma e a reflexão, a D. Efigénia hesita e aflige-se, adoece e cisma, mas nunca mais rezou um pai-nosso. Diz que tem muitos na conta e não resultaram. Finalmente, convenceu-se de que o aborto não é um sacramento e pode ser feito sem a ajuda do padre.
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