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Categoria: Catolicismo

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento

6 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Papa Francisco “tropeça” no seu discurso!…

Considero o Papa Francisco I (F1) um elemento renovador da Igreja Católica (IC) pelas atitudes humanistas que tem tomado, de entre as quais se conta a condenação dos abusos sexuais perpetrados no seio da sua igreja por sacerdotes defensores do amor e que tão mal fazem a jovens, abusando-os sexualmente. Jovens que, mercê da violação, têm uma vida de adultos limitada e consumida pela recordação de uma infância destruída por quem os devia proteger.

Qualquer homem, por muito defensor da Justiça, pode incorrer em erro. A prová-lo está o facto de haver juízes com a sua actividade suspensa pela má prática enquanto juristas. Mas quando esse homem é sacerdote, o erro será mais grave porque é (ou pode ser) motivado por uma educação seminarista que molda “agentes religiosos” (em vez de “homens íntegros”), na auto-consideração de serem exemplos morais.

CNN Chile

Motivado pela sua própria educação seminarista, F1 não pode fugir ao fundamentalismo religioso que o moldou e, mercê disso, pode, em alguns momentos, ofuscar o seu discurso que eu elogio.

Desta vez F1 disse algo que merece a reprovação da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) da qual sou vice-presidente.

Após visitar a Bélgica, país onde o aborto continua a ser uma questão política, com mais de 500 pessoas a sofreram abusos sexuais por parte de membros da IC, F1 não usou o seu “critério humanista” que eu aprecio. Em vez disso deitou mão à sua “formação seminarista” e debitou um discurso – que eu também reprovo – chamando assassinos (com todo o peso negativo que a palavra contém) aos médicos que cumprem a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, que a AAP critica numa declaração enviada aos órgãos de comunicação social, com o título: “Associação Ateísta Portuguesa considera perigosas as palavras do Papa relativamente ao aborto”, e que é do seguinte teor:

«A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera negligentes e ignóbeis as palavras do Papa Francisco sobre o aborto, proferidas recentemente no regresso de uma visita à Bélgica, uma vez que apelidou os médicos que procedem à interrupção voluntária de gravidez (IVG) de assassinos. Mais concretamente, e citando a Euronews, o Papa disse: “Permitam-me o termo: assassinos. São assassinos. E isto é indiscutível. Estão a matar uma vida humana”. Se a posição da Igreja Católica sobre o aborto não espanta ninguém, por não ser uma novidade, as palavras agora proferidas são de uma enorme gravidade não só porque têm o potencial de colocar os crentes cristãos contra os médicos, como ainda são uma interferência de um chefe religioso nas decisões políticas de um outro país. Sabendo que as palavras geram ações, apelidar os médicos de assassinos pode mesmo levar a que fundamentalistas cristãos da Bélgica se sintam legitimados a atacar os profissionais que realizam esses actos médicos, ou instalações clínicas, como aliás acontece nalguns países. Esta posição de Francisco pode também ter consequências para Portugal, uma vez que, segundo as notícias, são muitos os médicos que se recusam a proceder à prática da IVG alegando objeção de consciência, podendo estar em causa uma motivação religiosa. Lembramos que Francisco tem direito a exprimir a sua opinião, mas não lhe é reconhecida qualquer autoridade para influenciar a política ou a legislação de outros países soberanos. A AAP esclarece que as leis de interrupção voluntária da gravidez protegem a saúde das mulheres, por criarem condições seguras em ambiente médico, e porque contribuem na realidade para uma diminuição do número de situações de aborto. Além disso, a IVG tem lugar durante um período temporal em que o feto ainda não é considerado uma vida humana».

Este discurso recente de F1 tem outras nuances que me parecem negativas: concretamente, oPapa foi questionado por jornalistas sobre as próximas eleições nos EUA, e respondeu que “entre dois males” os americanos deveriam votar no “mal menor” quando forem escolher entre o candidato que quer deportar migrantes (Donald Trump) e aquele que apoia o direito ao aborto (Kamala Harris). Assim, para o Papa, tem mais valor a deportação de migrantes e todas as mentiras políticas de Trump (que, a ser eleito, tornará o mundo num lugar bem mais perigoso para se viver) do que as propostas mais honestas, pacíficas e humanistas, de Kamala!…

Esta atitude papal é baseada na falsa defesa de uma vida que ainda não o é!…A prática da IVG acontece quando o ser humano a ser gerado por aquela gravidez ainda não passa de um projecto. Tal como um projecto arquitectónico não é um edifício, uma pasta de sangue num ovário também não é um ser humano (prova-o o facto de nunca se ter realizado o funeral de um aborto!).

Com todos os males que possam caracterizar F1 enquanto agente da IC, continuo a considerá-lo o melhor Papa que a História recente regista… o que não impede Mário Bergoglio de tropeçar no seu discurso e se estatelar ao comprido… mostrando que o seu lado humanista pode ser distorcido pelas posições tradicionais da Igreja que representa e que estão implantadas bem fundo no seu cérebro como “chip” difícil de retirar.

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

13 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Peculiar Natureza da Redenção por Proxy

Criado com o DALL-E

Penso que não será injusto afirmar que o cristão comum orgulha-se da curiosa ideia, frequentemente distorcida, de que o cristianismo e o Novo Testamento realizaram, de forma altamente misteriosa, um milagre que redefiniu a personalidade do Deus do Velho Testamento.

O Deus dos Judeus. Um Deus ciumento que castiga, que cobiça, que não perdoa, que mata e manda matar indiscriminadamente.

Um Deus que ordena violar, escravizar, aniquilar e conquistar tudo e todos – e a ferro e fogo – aqueles que se atravessem no caminho da tribo escolhida por Ele; ou assim dizem eles. Um Deus que brinca com a sua criação como se fosse o dono de um casino, mas reservado apenas para autistas profundos.

Não será imprudente da minha parte assumir, com a mesma convicção, que a grande parte do mundo cristão vê a sua versão deste mesmo deus dos Israelitas – Yahweh –, como sendo mais empática, tolerante, amorosa e, acima de tudo, dotada de eterna compaixão e benevolência pela sua criação. As incríveis metamorfoses desse mesmo Deus, que, pela sua natureza omnisciente e omnipresente, deveria ser imutável.

Pergunte-se a qualquer cristão quais são os principais preceitos religiosos que, sendo minimamente digno da Sua graça, é obrigado a acreditar. Este não será um artigo exploratório sobre a obscura escatologia cristã – já lá estive, e não, obrigado – mas um desses preceitos será, sem dúvida, o conceito de redenção vicária, ou expiação por proxy ou representativa, como eu gosto de chamar.

A base deste conceito é a transferência de responsabilidade moral. É como se alguém pudesse cometer um crime – de qualquer gravidade – e, em vez de ser punido, outra pessoa sofresse a penalidade no seu lugar, libertando o verdadeiro perpetrador de todas as consequências – espirituais, morais e quiçá físicas.

Novamente, não seria de má fé da minha parte afirmar que isto constitui um desafio direto à nossa noção básica de justiça, e subverte claramente a verdadeira importância da responsabilidade individual, algo essencial para uma sociedade moderna e ética.

A suposta chegada do Jesus do Novo Testamento na história da humanidade – apresentado como amável, dócil e gentil, com uma mensagem de amor eterno e universal – veio, na minha humilde opinião, apenas mascarar de moralidade aquilo que, por natureza, não pode ser moral. Foi também Ele quem trouxe ao mundo a fantástica ideia do Inferno e sofrimento eterno.

Ele é a figura central desta história. Sem o simbolismo do suposto sacrifício Dele, o cristianismo não existiria. Não assim, não como o conhecemos, muito menos sem a ideia de que os pecadores arderão para sempre nas profundezas do pior sítio do cosmos.

Para um cristão, é igualmente necessário acreditar que este mesmo Filho, enviado por um Pai agora mais manso – supostamente sem as conhecidas características psicopatas –, foi torturado de uma maneira verdadeiramente cruel. Foi escoltado, arrastado, exibido pelas nauseabundas ruas de uma Jerusalém antiga, repleta de superstição e miséria humana, até ao seu suposto e mortal fim.

Um culminar meticulosamente planeado, orgulham-se os cristãos ainda hoje. Um fim horrível arquitetado pelo Pai, agora um Ser mais piedoso e tolerante. Parte integrante de uma profecia lunática que tinha de ser concretizada – a necessária morte do Filho, do Seu Filho. E este, segundo as escrituras do cristianismo, morre lentamente, com sérias dúvidas quanto à parca capacidade do seu gentil Pai em fazer planos.

É interessante, diria eu, que durante milénios, e ainda hoje, tenham existido intensos debates sobre se Jesus é o filho – fisicamente humano, mortal –, o Filho – uma mescla de carne divina e física –, ou Deus em si. Perdoem-me, mas dispenso discutir o papel do Espírito Santo nesta já amálgama esquizofrénica de entidades.

Não será possível, no entanto, concluir que o Cristianismo, uma religião que prega amor universal, compaixão e justiça, baseia-se numa narrativa de sofrimento e sacrifício? Como pode, então, uma fé que valoriza a a bondade e a moralidade fundar-se num acto que, em qualquer outro contexto, e visto sob qualquer outra perspectiva, seria considerado brutal, desnecessário e inumano?

Temos o dever de relembrar ao mundo que o Cristianismo celebra a crucificação como um acto supremo de amor divino, mas que, na sua essência, não deixa de ser um sacrifício humano – algo que normalmente condenaríamos com profunda repulsa.

Qualquer um de nós, se estivesse presente, teria a obrigação de impedir tal demonstração de injustiça e estupidez. Não há nada que justifique a suposta crueldade infligida a Jesus – um evento para o qual não existem evidências concretas de ter acontecido, nem sequer da existência da pessoa em questão.

Não há problema algum que tenha alguma vez incomodado a humanidade para o qual o sacrifício humano tenha sido a resposta certa, ou sequer uma resposta para seja o que for. Jesus, a ter existido, morreu efectivamente em vão, como tantos outros milhões antes dele, e biliões depois.

Até o cristão moderado devia perceber que este conceito de redenção vicária não encontra eco algum na realidade que experimentamos. Na vida real, as acções têm consequências directas e tangíveis. Não desaparecem porque alguém sofreu horrivelmente no nosso lugar há aproximadamente 2000 anos.

A moralidade, tal como a entendemos na ética moderna, exige que cada indivíduo enfrente as consequências dos seus próprios actos. A ideia de que estas consequências possam ser simplesmente transferidas é uma ilusão demasiado perigosa, e uma das sementes mais venenosas que inspirou as maiores atrocidades da história da humanidade.

No mundo secular, onde cada vez mais valorizamos a autonomia e a responsabilidade individual, a ideia de que podemos ser absolvidos dos nossos piores erros através do sofrimento de um semelhante não é apenas incrivelmente ultrapassada, mas um verdadeiro horror moral. Em vez de procurar escapatórias mitológicas, deveríamos enfrentar as nossas falhas de frente, aprender com elas e melhorar.

Será que a moralidade cristã, construída sobre a ideia de que o sofrimento de um pode redimir todos, é realmente bela? Divina? Justa? A ironia é difícil de ignorar: uma fé que prega a justiça e a compaixão baseia-se, paradoxalmente, num acto que subverte esses mesmos princípios. Tinha, e continua a ter, tudo para correr bem.

Acreditar no Cristianismo, e inevitavelmente nesta mensagem de redenção vicária do pecado original – outro conceito maravilhoso –, onde podemos ser ilibados da responsabilidade pelos nossos actos mais cruéis, macabros, bizarros e inumanos através da tortura e morte de um rabi excêntrico, provavelmente epiléptico, na antiga Palestina, não me parece ser a melhor maneira de viver.

Refutar ideias religiosas como esta é um passo decisivo rumo à verdadeira emancipação do espírito humano. É um esperançoso impulso para um caminho que nos libertará das algemas mentais que nós próprios criámos, permitindo-nos finalmente respirar o ar puro de uma vida vivida sem ilusões.

3 de Agosto, 2024 João Nascimento

O Lamento da Existência

Gerado por Dall-E.

Porque é que existe maldade humana no mundo? Porque é que as pessoas sofrem? Porque é que as crianças suportam o horror inimaginável de serem violadas pelos próprios pais, depois mortas, desmembradas e descartadas como lixo?

Porque é que a vida é tão incrivelmente injusta? Porque é que nós, seres humanos, muitas vezes morremos miseravelmente e sozinhos?

Enquanto os apologistas cristãos tentam encontrar maneiras cada vez mais surpreendentes de desviar estas perguntas prementes sobre a frágil existência humana, nós, os descrentes, os ateus, os humanistas seculares, oferecemos uma resposta mais direta: somos primatas. Primatas superiores, mas ainda assim apenas mais um ramo na árvore da evolução, com um longo caminho pela frente, espero eu.

Como Charles Darwin escreveu, carregamos, todos nós, a humilde marca da nossa origem, e isto permanece uma verdade incontestável, quer gostemos ou não. As nossas glândulas supra-renais são demasiado grandes, os nossos lobos pré-frontais demasiado pequenos, e os nossos órgãos reprodutivos parecem ter sido construídos por um comité administrativo com objetivos claramente mal delineados.

Uma combinação que, sozinha ou em conjunto, levará certamente a alguma infelicidade, desordem e inevitável caos. Somos demasiado apaixonados por ideias, e normalmente só sabemos se são más ou boas quando já é tarde demais para refletir antes de agir.

Todos temos a habilidade de reconhecer padrões, e usamo-la desde o princípio em praticamente tudo. Em tudo o que nos rodeava, descobrimos uma maneira, subtil e automática, de construir realidades, à nossa medida, que nos ajudaram a compreender os vários ciclos da natureza, incluindo os nossos. 

Ajudou-nos a interpretá-los e a tirar ilações tão necessárias. E, permitiu-nos dar uma utilidade prática ao aparente caos à nossa volta. Aprendemos a construir a nossa realidade, que tem aquela tendência chata de ser um bocado diferente em cada um de nós.

Já houve uma altura em que a religião e a dimensão do sobrenatural poderiam ter tido uma palavra a dizer. Um género de filosofia insana, solipsista, carente, temente, ignorante, que tentou fornecer-nos as respostas que ninguém tinha, mas as quais todos ansiavam ter.

A doença e tudo o que assolava a humanidade, os fenómenos naturais, eventos geológicos, eventos humanos, políticos; tudo podia ser explicado recorrendo ao obscurantismo religioso. Não havia grande distinção entre a dimensão do sobrenatural e a realidade.

E, também, segundo estudiosos daqueles tempos mais antigos, se algumas pessoas morriam num povoado qualquer derivado a surtos de atacantes microscópicos, por exemplo, foi porque os judeus envenenaram os poços.

Quando uma catástrofe natural, como o terramoto que atingiu o Haiti em 2010, tira milhares de vidas, nós, ateus, entendemos que não se deve a qualquer interferência divina. Reconhecemos que vivemos num planeta ainda em fase de arrefecimento, e que atribuir tais eventos a uma causa sobrenatural não é boa ideia, no mínimo.

Atrevo-me a dizer, também, que culpar um evento natural na homossexualidade das pessoas não é só incrivelmente estúpido, como também se desvia descaradamente do tão amado conceito de livre arbítrio.

Considera isto: se Deus nos deu o livre arbítrio, não será matar-nos com catástrofes naturais uma violação dessa liberdade, mesmo que nos envolvamos em comportamentos pecaminosos? Se Deus está realmente a punir as pessoas causando tais mortes em massa, tem de haver algo extraordinariamente de errado com Ele.

Não concordas?

Outra pergunta, e esta eu fazia constantemente a mim próprio há umas décadas: será que o tão amado livre-arbítrio não perde o significado quando é dado? Quer dizer, “Deus, o Senhor dos Senhores, deu-me livre-arbítrio”. Detectam a ironia aqui, ou sou só eu?

Se Ele interfere, contradiz o pacto com a humanidade, destruindo qualquer noção de livre arbítrio. Como justificas então a morte de um recém-nascido às mãos de um dos seus pais? Ou a morte de um bebé sob os escombros de uma casa, após um terramoto? Se ainda consideras que estas tragédias são causadas pelos majestosos poderes de Deus, não terás tu também uma problemática a resolver na tua mente?

Usar Deus para explicar o mundo natural foi um dos grandes erros da humanidade. No entanto, seria arrogante da minha parte vilificar o desgraçado do Homo sapiens que nasceu com tudo contra ele. Sozinho, entregue às intempéries de um cosmos que nem sequer sabe que ele existe. Não quereria saber se deixasse de existir.

Contudo, já não vivemos na pura ignorância, e existem certas técnicas lógicas que nos fornecem as ferramentas de que necessitamos para nos protegermos das algemas mentais criadas por nós. Acredito que a religião seja apenas a principal dessas algemas.

A Navalha de Ockham, por exemplo, ajuda a libertar a mente para encontrar soluções reais para os verdadeiros problemas. Christopher Hitchens afirmava que este conceito filosófico era a morte da religião. Tendo a concordar.

Afirmar que Deus, ou a suposta imoralidade da sociedade, é a culpada por eventos naturais trágicos é apenas uma forma de ignorar as verdadeiras causas do sofrimento humano e animal, e permitir que persistam de formas cada vez mais variadas e, por sua vez, mais insidiosas.

Não há nada no mundo natural ou no nosso comportamento que exija uma explicação sobrenatural. Novamente: Deus é responsável por todo o mal, ou não é. Ele é indiferente ao nosso sofrimento, ou é a entidade mais sádica do cosmos.

A questão é que não tens de escolher entre nenhum destes extremos.

Pensa nisso.

30 de Julho, 2024 João Nascimento

Da Insanidade das Coisas

Image gerada com o Dall-E

Então, és uma cristã, ou um cristão conforme o caso, e és uma pessoa devota que vive de acordo com os mandamentos do Deus das escrituras. Quiçá grites em alto e bom som que tens uma relação pessoal com o teu Deus, com o teu Jesus, tão chegada, tão confortável. Afirmas ser isso que o diferencia de todas as outras religiões. Falsas religiões, dizes tu.

Alguma vez te perguntaste, no entanto, se estás de facto à altura do título de verdadeiro cristão, de verdadeiro fiel? Já te questionaste sobre o que realmente tens de acreditar, dizer e fazer para merecê-lo? Já leste as Bíblias de capa a capa? Alguma vez te debruçaste, de corpo e alma, sobre os escritos dos primeiros santos?

Se o tivesses feito, saberias que a moderação religiosa não passa de uma tendência moderna. Ser um cristão de cafeteria não é realmente o que se espera de ti na tua religião. No fundo, deves saber que tens de ser mais louco do que pensas para acreditar nas coisas ridículas que te foram ensinadas pela igreja. Pelos teus pares, pelos teus pais, pelos teus professores.

Sei, de igual forma, que estás ciente de que o compromisso exigido é muito maior, e as crenças muito mais radicais do que o que a sociedade moderna frequentemente apresenta.

Nos primeiros dias do Cristianismo, quando havia apenas algumas pessoas muito estranhas a auto-flagelar-se com talheres enferrujados, a passar fome voluntariamente porque era assim que Deus gostava, e a alucinar ao lado do fantasma de Jesus desde o amanhecer até ao cair da noite, este tipo de fanatismo não era propriamente assunto para conversas familiares à hora do jantar.

Muito pelo contrário, os primeiros cristãos eram desprezados e ridicularizados, usados como anedotas nos ensaios dos grandes pensadores do mundo clássico que tiveram a ousadia de sobreviver. Eles, os que outrora ensinaram o mundo, tiveram a audácia de olhar o verdadeiro mal nos olhos e publicamente ridicularizá-lo.

Estas pessoas, eventualmente, tornaram-se hooligans vorazes e verdadeiras ferramentas de opressão usadas para subjugar os seus semelhantes, percorrendo as ruas a conduzir inquisições sagradas em nome de um Deus que exige absolutamente tudo de ti, e nada te dá.

Pior, cria-te originalmente e inescapavelmente doente, e ordena-te que fiques bem.

Pergunta-te, agora, se o Cristianismo teria sobrevivido até hoje, pelo menos na sua forma atual, se não fossem os traços violentos e mentalmente perturbados daqueles primeiros cristãos, e considera a seguinte proposição:

Se não fossem as pessoas com real poder na altura, com dinheiro e verdadeira influência, a usarem os dotes daqueles primeiros devotos para intimidar, extorquir, invadir, destruir, matar, e conquistar – e a verem a verdadeira utilidade de um tipo de pensamento assim -, não existiria Cristianismo como o conheces, muito menos Catolicismo ou outra qualquer variante.

Antes desta mudança de paradigma, os primeiros cristãos eram apenas mais um grupo de tolos excêntricos e fanáticos a deambular pelas iluminadas cidades do mundo clássico.

Alguma vez ouviste falar de Pacómio? Este senhor construiu um dos primeiros mosteiros cristãos, e esta citação de Catherine Nixey no seu livro Heresia, acredito ser, entre muitas, a essência da Igreja Católica:

Um dos primeiros mosteiros cristãos tinha nascido — e começou a encher-se, rapidamente. Ano após ano, mais e mais homens cristãos (e, mais tarde, mulheres) reuniram-se em torno de Pacómio para dedicar as suas vidas ao trabalho e à oração. A sua vida era de rigor religioso regimentado. Como as regras bastante austeras do anjo ordenavam, cada homem deveria ‘rezar doze vezes por dia, doze vezes à noite, e na nona hora, três vezes’, num total de trinta e nove orações por dia. Tão poucas? Pacómio perguntou. É necessário, explicou o anjo, fazer concessões para os fracos. Aqueles que se juntaram a Pacómio — e, talvez surpreendentemente, muitos o fizeram — assumiram uma vida de austeridade notável. O descanso, a conversa e a liberdade individual foram todos reduzidos. Nas refeições, os monges comiam em silêncio; enquanto trabalhavam — cavando, talhando e tecendo cestos — recitavam versos bíblicos, para que as suas mentes não divagassem; quando dormiam, dormiam em cadeiras verticais feitas de tijolo, para que não se tornassem demasiado confortáveis. Todos eram atletas de austeridade, torturando-se nesta vida para que pudessem saborear a glória na próxima. E, no entanto, apesar das suas intenções divinas, é claro que, por vezes, uma discórdia demasiado humana ameaçava a paz. O primeiro rascunho das leis monásticas de Pacómio, entregue por aquele anjo, pinta uma imagem idealista da vida dos monges. Os homens de Pacómio deveriam, explicava o documento angelical, realizar os seus deveres abertamente e com ‘uma expressão radiante’. É uma imagem bonita.

A ilusão da religião moderada só aparenta ser real porque o pensamento religioso, este, ali acima naquela citação de Nixey, foi domesticado pela maior parte do mundo secular, esmagado pelo pensamento crítico e pela Filosofia, e quase vencido pela ciência. Este lado fofinho que a igreja ostenta hoje em dia, este andar de pantufas, de fininho, é uma mera máscara, e sendo que deviam defender a verdade em qualquer circunstância, evidência da sua cobardia.

A verdade para mim importa.

Seria imprudente esquecermos quando a igreja católica, o Vaticano, os padres e as freiras, e todos os membros de todos os cleros, de todas as religiões do mundo alguma vez já inventadas pela mente humana, tinham realmente o poder. Eles afirmavam responder somente perante Deus, sem humanos como pares, sem autoridade senão a do altíssimo.

Esta mensagem nunca mudou, nunca irá mudar, só irá moldar-se, adaptar-se, e colar-se ao paradigma social, corrompendo-o para além do compreensível, normalizando-o.

Nisto, toda a religião tem a sua culpa, à sua especial maneira, não ficando só para a católica o prémio de maior cretina dos milénios já vividos. A religião deturpa as relações humanas, envenenando-as e à nossa integridade ao mais alto nível; quebra-a, espezinha-a, e transforma-a em algo odioso, agressivo, solipsista, carente, infantil, malicioso, invejoso, e capaz de tudo para marcar a sua posição.

Um dos primeiros exercícios mentais que fiz em criança, sendo doutrinado no Catolicismo, foi perguntar repetidamente a mim mesmo se eu também deveria ter o QI de um bocado de granito, ou se todos aqueles adultos estavam enganados, ou a mentir-me e a eles próprios. Não conseguia reconciliar isto de forma positiva e tornei-me agnóstico muito cedo na minha vida.

Agora sou um humanista secular, e um infiel, um descrente, um ateu. Apenas mais um sapiens entregue às intempéries do cosmos, e como diria Christopher Hitchens, somente um primata, a meio cromossoma de distância de ser um chimpanzé.

Eu não tenho vergonha do passado da minha fraternidade. E tu, fiel, consegues dizer o mesmo?

17 de Junho, 2024 Onofre Varela

A Liberdade Que Abril Nos Deu

Que Histórias se contam na Bíblia?

A minha experiência de ser silenciado pelo poder religioso e político em tempo de Democracia, aconteceu pela primeira vez em 1978 no jornal O Primeiro de Janeiro (PJ). Portanto, já com a Liberdade de Expressão instalada há quatro anos pela Revolução dos Cravos, e instituída há dois anos pela publicação da Constituição da República Portuguesa (1976).

Andava eu a ler o livro “A Bíblia e os Extraterrestres”, do advogado francês e perito em Língua Hebraica, Pierre-Jean Moatti, acabado de ser editado (pela Via Editora, Lisboa, 1978) e cujo conteúdo me remeteu para a leitura da Bíblia procurando comprovar as citações do autor.

Em Êxodo 19:16-20, é narrada a descida de Deus sobre o Monte Sinai do seguinte modo que me pareceu espectacularmente cinematográfico: “E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando” (?!). Fiquei curioso e intrigado!… Deus precisava de fazer um cagaçal de tal tamanho para se mostrar à malta?!… Esta imagem fantástica remeteu-me para a descida de uma nave espacial, com fogo e fumo dos jactos, mais um ruído de motores de tal modo ensurdecedor e potente que fez tremer o monte!…

Nesse tempo eu tinha iniciado uma rubrica onde escrevia semanalmente um texto com o título genérico OVNI’s EXISTEM, onde comentava as observações de Objectos Voadores Não Identificados, que estavam tão em voga e era raro o dia em que não houvesse notícia dando conta de uma estranha observação nos céus em qualquer parte do mundo.

Módulo Lunar, o engenho espacial que permitiu ao Homem pisar outro planeta. Repare-se no seu aspecto zoomórfico. O habitáculo e módulo de subida sugere-nos uma cabeça. As suas janelas triangulares são dois olhos de expressão agressiva, e a porta de entrada uma boca ameaçadora pronta a morder. O andar de descida é um corpo munido de possantes membros que o fixam ao chão.

Impressionado com a leitura da Bíblia e do livro de Pierre-Jean Moatti (que me remetia para a ideia de termos sido visitados, em tempo tão recuado, por seres oriundos de outras paragens cósmicas) publiquei no dia 5 de Novembro de 1978, o primeiro artigo de uma série de três, com o sugestivo título: “A Verdade da Bíblia (1) – Os Colonos que Vieram do Cosmos” com uma ilustração legendada (e publicada aqui).

Quando, no dia da publicação, entrei ao serviço no início da tarde, o director chamou-me. Na sua secretária tinha o jornal aberto na página onde saiu o meu artigo. Perguntou-me o que queria dizer aquele número um entre parêntesis. Ficou a saber que referia o primeiro artigo de uma série de três.

A sua reacção foi peremptória: proibiu-me de escrever mais sobre qualquer tema que abordasse a Bíblia, ou qualquer outro assunto relacionado com religião. Alegou ter recebido “telefonemas de leitores indispostos com o meu texto e não queria perder leitores”.

Assim ficou aquela série, de três artigos, pela publicação do primeiro!… Com o correr do tempo percebi que “os telefonemas de leitores indispostos com o meu texto” não era mais do que uma desculpa “de mau pagador”… fui-me apercebendo de factos que me levaram a concluir que aquilo não foi mais do que o cumprimento dos recados da Igreja levados ao director por um lacaio da seita Opus Dei que várias vezes por mês reunia com ele (e também com o director do JN) ao início das madrugadas!…

Tinham passado quatro anos após o 25 de Abril, e dois sobre a publicação da Constituição da República Portuguesa onde se afirmam as liberdades de expressão e de culto… mas o raciocínio daquele director ainda não se adaptara ao novo regime e parecia obedecer a ordens eclesiásticas.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

28 de Abril, 2024 Onofre Varela

Ser ou Não Ser

Um amigo facebookiano postou um desabafo de religioso sentindo-se agredido no seu raciocínio. Dizia ele que “Para alguns, ser católico é ser palerma… e ser ateu é ser esclarecido, moderno, intelectualmente superior”. O meu amigo virtual não se sinta assim, tão negativamente tratado, porra!… Uma das questões que muitas vezes me coloco, é esta: Porque é que um licenciado (médico ou advogado, por exemplo) tem do conceito de Deus a mesma convicção de um servente de pedreiro analfabeto? Será que o licenciado não aprendeu nada, ou o analfabeto sabe muito?!… Não é verdade que a crença em Deus pertença aos ignorantes. Se lhe der jeito para se sentir melhor com o seu raciocínio, pense que o ignorante pode ser o ateu.

Foto de Marc-Olivier Jodoin na Unsplash

O saber e a crença podem coabitar (e coabitam) na mesma mente. A religiosidade é natural. É um atributo humano e a ideia de Deus está alojada no cérebro de todos nós. O berço de cada um, o meio em que cresce e é educado, pode ditar o interesse e o valor que cada indivíduo dá à ideia do divino. O culto de Deus está presente nas famílias desde que se nasce (pelo baptismo na igreja da paróquia), na celebração religiosa da Comunhão (como referente da passagem da meninice para a juventude), no casamento frente ao altar, e mais tarde no baptismo e na Comunhão dos filhos, até ao enterramento depois de finado, com funeral presidido por um sacerdote que encomenda a alma do defunto ao Altíssimo!…

Toda a vida do temeroso crente é votada à religiosidade, e isso tem o seu peso na vida de cada um de nós, pois não há quem possa fugir à ética social e religiosa presente na construção das suas origens e do seu dia-a-dia. Para além desta verdade antropológica e sociológica, há o comércio religioso nas lojas que as igrejas são (veja-se Fátima), prestando assistência à alma a qualquer hora do dia. Igrejas, capelas e alminhas de parede estão mais disseminadas pelo país do que as caixas Multibanco (o deus-dinheiro). Qualquer produto religioso que se mostre de interesse geral (ou mesmo sem se mostrar; a fé basta) passa a ser comercializado, a alimentar indústrias, a ser massivamente publicitado e consumido, tal como a Coca-Cola, os hambúrgueres e as telenovelas (veja-se a seita IURD).

O “produto-Deus” está colado a nós. Tem a mais valia de nos acompanhar desde o Paleolítico, com reforço na Idade do Ferro, acrescentado pelo medo dos castigos divinos induzidos na Idade Média e embelezado com a espectacularidade da Arte Renascentista. Na nossa civilização a história de Deus já vem de longe, desde a Idade Clássica, importadora dos enigmáticos deuses da Mesopotâmia, e acompanha-nos nos momentos mais emblemáticos das nossas vidas, o que, por si só, exerce muita influência no nosso modo de ser.

Mas há muitíssimo mais por detrás da ideia de Deus!… Também serve interesses políticos, sociais e económicos, o que tem muito peso e demasiada importância para os mandantes deste mundo. 

Agora já percebe porque é que a ideia de Deus também habita as cabeças com raciocínio superior ao de um servente de pedreiro analfabeto?!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)