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Categoria: Catolicismo

15 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O Natal de um ateu

Já me têm perguntado: “como é o Natal de um ateu?”. É uma curiosidade motivada pela ideia generalizada de que a sociedade está dividida em segmentos. Há o segmento religioso, o segmento político e o segmento futebolístico (no mínimo…). E também há quem pense que em cada segmento as pessoas funcionam de modo diverso das outras.

Para satisfazer os curiosos… cá vai:

Não posso falar pelos ateus em geral, porque cada pessoa é ela própria e não o decalque de quaisquer outras (consideração válida para ateus e religiosos); como os meus amigos sabem, religiosamente sou ateu, politicamente sou de Esquerda, e em futebol… sou contra! Não gosto de futebol, nunca joguei a bola nem entrei num estádio e não vejo campeonatos, nem pela televisão. Costumo dizer aos meus amigos que, para mim, o futebol está ao nível de Deus… não existe!

Quanto ao Natal… é uma festa religiosa das sociedades cristãs. Cada um de nós, embora seja dotado de raciocínio próprio, é sempre o resultado do meio em que nasceu – cresceu e foi educado – não lhe podendo fugir. O Natal e a Páscoa são festas religiosas do meio que me fez, mas também são profanas. A Páscoa nunca teve significado no meu meio familiar; é um Domingo como qualquer outro… sempre assim se procedeu em minha casa porque “a ressurreição” (no figurino em que os religiosos cristãos a apresentam) não tem sentido.

Já o Natal é a “Festa da Família”. É um dia em que se reúnem familiares mais chegados, habitualmente separados por factores profissionais ou de residência distante, num jantar comunitário (designado por Consoada, palavra derivada do latim Consolata que quer dizer “refeição partilhada”) onde se sacrifica um bacalhau salgado, já sacrificado no Mar do Norte, regado com azeite de Trás-os-Montes e acompanhado de um bom vinho. Há sobremesas doces e distribuição de prendas, e findo o serão vou dormir sem assistir “à missa do galo”.

Imagem da Unsplash

Portanto, retirando a missa e as orações dos Católicos (que nem todos cumprem), o meu Natal de ateu é igual ao Natal de um religioso!

As datas religiosas da Igreja Católica, como Páscoa e Natal, têm a ver com a vida de Jesus Cristo, enquanto ícone deífico dos cristãos… mas também estão ligadas à Natureza, aos equinócios do Inverno e da Primavera. Toda a vida dos Seres Humanos é baseada, em primeiro lugar, na Natureza, e depois na sociedade e no seu folclore próprio e sazonal, que pode ser laico ou religioso, mas que é, sempre, folclore inerente a cada grupo social, que a Antropologia, a Etnologia e a Sociologia, estudam e explicam.

O Pinheiro e o Presépio

Nos meus tempos de miúdo ia cortar, numa bouça próxima de casa, um pequeno pinheiro recém-nascido, que enfeitava com bugalhos forrados com prata retirada dos maços de cigarros (encontrados no lixo e no chão da rua) rematando a obra com bocadinhos de algodão a fingir de neve (se tivesse vinte e cinco tostões para comprar pequenas bolas de vidro, coloridas e muito frágeis, e dois pacotinhos de minúsculos chocolates amarrados com uma fita de seda, para pendurar na árvore… era uma festa e a obra ficava espectacular!) sem ter consciência de que a tradição da árvore de Natal estaria ligada às crenças dos povos pagãos do norte da Europa, principalmente à celebração do Solstício de Inverno – a noite mais longa do ano – como homenagem à Natureza adormecida.

Já o Presépio encerra uma outra história para além da relação com o Solstício de Inverno. Uma breve consulta ao Novo Testamento mostra-nos que de entre os evangelistas que nos falam da história de Jesus nenhum deles narra a cena que estamos habituados a ver designada por Presépio. Mateus (2:11) diz-nos que os reis magos “entrando na casa acharam o menino com Maria”. Logo, o estábulo da tradição não existe nesta referência, já que o local do nascimento seria “uma casa”.

Marcos e João omitem o nascimento de Jesus, referindo-o já como adulto, quando é baptizado nas águas do rio Jordão por João Baptista.

Lucas (2:7) já nos diz que Maria “deu à luz o seu filho primogénito e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

A necessidade de José e Maria terem um lugar para pernoitar, devia-se ao facto de se terem deslocado de Nazaré, onde viviam, para Belém, na obrigação de se recensearem, no cumprimento de um decreto do imperador César Augusto que obrigava ao recenseamento de todos os cidadãos; e o casal partira para o local quando Maria já estaria num estado avançado de gravidez.

A imagem do Presépio que hoje figura na maioria das casas e nas montras das lojas na época natalícia, teve origem numa ideia de Francisco de Assis que, em 1223, festejou o Natal fora da igreja, montando uma manjedoura na floresta de Greccio, Itália, colocando junto dela um boi e um burro como elementos tradicionais de um estábulo.

O povo não entendeu de imediato o significado daquela encenação, mas durante a Idade Média o costume espalhou-se e, em 1567, a Duquesa de Amalfi mandou montar um grandioso Presépio com 116 figuras representando o nascimento de Jesus Cristo com a adoração dos reis magos, dos pastores e com anjos a cantar.

A partir do século XVIII o costume espalhou-se pelas casas dos crentes, mantendo-se até hoje… e convenhamos que o Presépio, enquanto decoração natalícia, fica muito bem nas montras das lojas e nos centros comerciais, nesta época de chamamento ao consumo desenfreado… conotando uma festa de cariz religioso, com o consumismo.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

1 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O mistério da água na Criação

Neste momento tenho em mãos a finalização de um projecto de livro onde abordo o Génesis bíblico sob o ponto de vista de um leitor laico da Bíblia.

Interpreto os textos bíblicos com o conhecimento do meu tempo (e apenas daquele conhecimento que detenho, ou imagino deter, porque sei que não sei tudo) sem esquecer que os autores das narrativas bíblicas não o possuíam, e só puderam registar o conhecimento que tinham no tempo e no lugar em que as escreveram há cerca de 3000 anos. Obviamente, os seus saberes (no âmbito das minhas premissas) seriam muitíssimo mais limitados do que são os de qualquer um de nós (dos interessados pelo mesmo tema), três milénios depois.

De acordo com isto, o que se narra no Génesis mereceu-me a apreciação que faço no referido projecto de livro, dando conta de que a simplicidade com que a “Criação divina” é descrita na Bíblia se assemelha a um conto infantil dos mais puros, cujas acções narradas não precisam de coerência, aparecendo do nada sem qualquer ligação com a realidade das coisas.

O infantil leitor não tem qualquer dúvida sobre a verdade do conto entendendo-o como verdade sem necessitar de o ver explicado.

Uma narrativa deste tipo não pode ser negada, porque é ficção poética… e é bonita!…

Como tal, não pede explicação nem merece contestação. Seria uma estupidez contestar um poema!

A liberdade criativa dos poetas, dos escritores e dos artistas em geral, não tem limites. A dos autores dos textos bíblicos também não… e devemos entendê-los num enquadramento temporal, geográfico, social e político, que hoje temos muita dificuldade em imaginar.

Porém, para os intrinsecamente crentes, isto não é poesia… é da melhor realidade histórica a merecer crédito imediato!

E é aí que começa a crítica que tais crentes merecem (não a poesia da Criação), por parte de quem ultrapassa as interpretações de fé, aceita a poesia, mas não permite que lha dêem como sendo notícia de um acontecimento real.

Uma narrativa deste tipo não pode ser contestada enquanto texto poético. Contestá-la seria uma atitude tão sem nexo como é afirmá-la… não se contestam brincadeiras de criança, nem lendas, nem poemas.

As lendas são para serem lidas e apreciadas nas suas poéticas, e apreendidas as lições subliminares que, eventualmente, possam conter, não sendo líquido que todas as contenham.

O Génesis nada mais é do que isso, e na sua apreciação devemos considerar as circunstâncias em que foram registadas estas ideias com a presunção de serem reais, não esquecendo que os autores do Velho Testamento as copiaram de narrativas da civilização Suméria, na pretensão (e presunção) de escreverem a história do povo judeu como sendo o “povo eleito de Deus”.

Porém, como as religiões gostam de afirmar a “realidade contida na palavra de Deus”, neste meu exercício lúdico de imaginação pura que transcrevo na hipótese de livro e que aqui comento, encaro a “veracidade da narrativa” conforme a vontade daqueles que a afirmam. Consequentemente, coloco no referido projecto de livro o rosário de dúvidas que tal “realidade” me suscita, sem pretender nada mais que não seja, simplesmente, fazer um exercício lúdico.

Vejamos: o Génesis diz-nos que Deus criou o mundo em nove etapas, ou tarefas. Quase dia sim, dia não, obrava duas delas, num total de seis criações, e as restantes três contaram com um dia para cada uma.

As tarefas do primeiro dia incluíam a criação “dos céus e da terra, da luz e da separação do dia e da noite”. No segundo dia foi criado “o firmamento”, e só no terceiro dia se procedeu “à separação da terra e do mar” (sendo o mar composto por água… é aqui que está o berbicacho!… Já volto ao assunto).

A grande obra de Deus iniciou-se com a tarefa de criar estes dois primeiros elementos: os céus e a terra. No contexto da criação do mundo entendo o termo Terra como substância constituinte do solo do planeta (Land, em inglês), e não no seu todo enquanto planeta (Earth, em inglês), porque Deus terá criado o mundo por etapas, e a terra (Land) foi uma delas. Se o termo Terra referisse o planeta (Earth) não haveria nada mais para criar depois dele, porque o planeta compreende um todo, incluindo o solo, a água, a atmosfera e todas as formas viventes, vegetais e animais que lhe são próprias, pelo que a obra ficaria completa na primeira tarefa.

É de notar que esta primeira criação foi obrada às escuras, pois a luz ainda não havia sido criada (e o termo céus, no plural, é enigmático). Portanto, após a primeira criação, não havia nada mais do que céu (não se sabendo bem o que isso seja) nas alturas, e rocha, terra e pó, no abismo.

Porém, prevalece este mistério: O início do Génesis começa por afirmar que “o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Génesis: 1;2)… que águas?!… De onde brotaram elas?!… Se foi o mesmo Deus quem as criou, os escribas esqueceram-se de registar tão importante e vital criação!

Imagem gerada por IA.

Se o Génesis não refere a criação da água, mas afirma a sua existência após a primeira criação (os céus e a terra), devemos aceitá-la como existindo prévia e independentemente da obra e da vontade de Deus?!… E em que recipiente se encontrava ela?!…

Coisa estranha… mesmo para um poema!…

21 de Novembro, 2024 Carlos Silva

Mensagem de Natal da IC na RTP

Imagem: RTP

Atribuir à Igreja Católica ou a qualquer outra confissão religiosa tempo de antena em canais de televisão públicos, pagos pelo contribuinte, viola o princípio constitucionalmente definido da Laicidade da República Portuguesa.

Havendo um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, segundo o qual “toda a publicidade destinada a promover uma confissão religiosa, ou que tenha por objeto ideias religiosas, deverá ser considerada ilícita, incorrendo o infrator em responsabilidade contraordenacional”, não se compreende, porque não foi tomada qualquer ação por quem de direito.

Se ao Provedor (a) do Ouvinte e do Telespectador compete “representar e defender, no contacto com as Empresas de Serviço Público de Rádio e de Televisão, as perspetivas dos Ouvintes e dos Telespectadores diante da oferta radiofónica e televisiva”, o que é que o mesmo fez para evitar tal ilicitude?

Católicos, evangélicos, muçulmanos, hindus, judeus, budistas… qualquer crença têm o direito de transmitir a suas “mensagens”, mas, obviamente, nos locais e canais próprios, para os seus fiéis seguidores, ou para aqueles que veneram amigos imaginários e paguem o dízimo ou esmola… não para a população em geral e muito menos para pessoas minimamente lucidas e racionais, que normalmente estão vacinadas contra os seus dogmas.

Não o podem fazer numa televisão pública paga por todos os contribuintes, sobretudo aqueles que respeitam a separação e laicidade do Estado.

Não é lícito!… muito menos moral, o Estado favorecer, publicitar e patrocinar uma religião específica (IC) a quem atribui inúmeras regalias e sobretudo isenções de impostos.

Já chega de discursos “politiqueiros” … “jornadas religiosas” … “lutas contra o aborto” … “lutas contra a eutanásia” … “lutas contra a homossexualidade” …

(…)

A RTP, enquanto órgão de informação, tem obrigação de oferecer aos seus telespectadores e contribuintes um serviço público livre e independente do poder político, económico e religioso.

AGORA ATEU (II), 2023-12-24

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento

6 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Papa Francisco “tropeça” no seu discurso!…

Considero o Papa Francisco I (F1) um elemento renovador da Igreja Católica (IC) pelas atitudes humanistas que tem tomado, de entre as quais se conta a condenação dos abusos sexuais perpetrados no seio da sua igreja por sacerdotes defensores do amor e que tão mal fazem a jovens, abusando-os sexualmente. Jovens que, mercê da violação, têm uma vida de adultos limitada e consumida pela recordação de uma infância destruída por quem os devia proteger.

Qualquer homem, por muito defensor da Justiça, pode incorrer em erro. A prová-lo está o facto de haver juízes com a sua actividade suspensa pela má prática enquanto juristas. Mas quando esse homem é sacerdote, o erro será mais grave porque é (ou pode ser) motivado por uma educação seminarista que molda “agentes religiosos” (em vez de “homens íntegros”), na auto-consideração de serem exemplos morais.

CNN Chile

Motivado pela sua própria educação seminarista, F1 não pode fugir ao fundamentalismo religioso que o moldou e, mercê disso, pode, em alguns momentos, ofuscar o seu discurso que eu elogio.

Desta vez F1 disse algo que merece a reprovação da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) da qual sou vice-presidente.

Após visitar a Bélgica, país onde o aborto continua a ser uma questão política, com mais de 500 pessoas a sofreram abusos sexuais por parte de membros da IC, F1 não usou o seu “critério humanista” que eu aprecio. Em vez disso deitou mão à sua “formação seminarista” e debitou um discurso – que eu também reprovo – chamando assassinos (com todo o peso negativo que a palavra contém) aos médicos que cumprem a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, que a AAP critica numa declaração enviada aos órgãos de comunicação social, com o título: “Associação Ateísta Portuguesa considera perigosas as palavras do Papa relativamente ao aborto”, e que é do seguinte teor:

«A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera negligentes e ignóbeis as palavras do Papa Francisco sobre o aborto, proferidas recentemente no regresso de uma visita à Bélgica, uma vez que apelidou os médicos que procedem à interrupção voluntária de gravidez (IVG) de assassinos. Mais concretamente, e citando a Euronews, o Papa disse: “Permitam-me o termo: assassinos. São assassinos. E isto é indiscutível. Estão a matar uma vida humana”. Se a posição da Igreja Católica sobre o aborto não espanta ninguém, por não ser uma novidade, as palavras agora proferidas são de uma enorme gravidade não só porque têm o potencial de colocar os crentes cristãos contra os médicos, como ainda são uma interferência de um chefe religioso nas decisões políticas de um outro país. Sabendo que as palavras geram ações, apelidar os médicos de assassinos pode mesmo levar a que fundamentalistas cristãos da Bélgica se sintam legitimados a atacar os profissionais que realizam esses actos médicos, ou instalações clínicas, como aliás acontece nalguns países. Esta posição de Francisco pode também ter consequências para Portugal, uma vez que, segundo as notícias, são muitos os médicos que se recusam a proceder à prática da IVG alegando objeção de consciência, podendo estar em causa uma motivação religiosa. Lembramos que Francisco tem direito a exprimir a sua opinião, mas não lhe é reconhecida qualquer autoridade para influenciar a política ou a legislação de outros países soberanos. A AAP esclarece que as leis de interrupção voluntária da gravidez protegem a saúde das mulheres, por criarem condições seguras em ambiente médico, e porque contribuem na realidade para uma diminuição do número de situações de aborto. Além disso, a IVG tem lugar durante um período temporal em que o feto ainda não é considerado uma vida humana».

Este discurso recente de F1 tem outras nuances que me parecem negativas: concretamente, oPapa foi questionado por jornalistas sobre as próximas eleições nos EUA, e respondeu que “entre dois males” os americanos deveriam votar no “mal menor” quando forem escolher entre o candidato que quer deportar migrantes (Donald Trump) e aquele que apoia o direito ao aborto (Kamala Harris). Assim, para o Papa, tem mais valor a deportação de migrantes e todas as mentiras políticas de Trump (que, a ser eleito, tornará o mundo num lugar bem mais perigoso para se viver) do que as propostas mais honestas, pacíficas e humanistas, de Kamala!…

Esta atitude papal é baseada na falsa defesa de uma vida que ainda não o é!…A prática da IVG acontece quando o ser humano a ser gerado por aquela gravidez ainda não passa de um projecto. Tal como um projecto arquitectónico não é um edifício, uma pasta de sangue num ovário também não é um ser humano (prova-o o facto de nunca se ter realizado o funeral de um aborto!).

Com todos os males que possam caracterizar F1 enquanto agente da IC, continuo a considerá-lo o melhor Papa que a História recente regista… o que não impede Mário Bergoglio de tropeçar no seu discurso e se estatelar ao comprido… mostrando que o seu lado humanista pode ser distorcido pelas posições tradicionais da Igreja que representa e que estão implantadas bem fundo no seu cérebro como “chip” difícil de retirar.

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

13 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Peculiar Natureza da Redenção por Proxy

Criado com o DALL-E

Penso que não será injusto afirmar que o cristão comum orgulha-se da curiosa ideia, frequentemente distorcida, de que o cristianismo e o Novo Testamento realizaram, de forma altamente misteriosa, um milagre que redefiniu a personalidade do Deus do Velho Testamento.

O Deus dos Judeus. Um Deus ciumento que castiga, que cobiça, que não perdoa, que mata e manda matar indiscriminadamente.

Um Deus que ordena violar, escravizar, aniquilar e conquistar tudo e todos – e a ferro e fogo – aqueles que se atravessem no caminho da tribo escolhida por Ele; ou assim dizem eles. Um Deus que brinca com a sua criação como se fosse o dono de um casino, mas reservado apenas para autistas profundos.

Não será imprudente da minha parte assumir, com a mesma convicção, que a grande parte do mundo cristão vê a sua versão deste mesmo deus dos Israelitas – Yahweh –, como sendo mais empática, tolerante, amorosa e, acima de tudo, dotada de eterna compaixão e benevolência pela sua criação. As incríveis metamorfoses desse mesmo Deus, que, pela sua natureza omnisciente e omnipresente, deveria ser imutável.

Pergunte-se a qualquer cristão quais são os principais preceitos religiosos que, sendo minimamente digno da Sua graça, é obrigado a acreditar. Este não será um artigo exploratório sobre a obscura escatologia cristã – já lá estive, e não, obrigado – mas um desses preceitos será, sem dúvida, o conceito de redenção vicária, ou expiação por proxy ou representativa, como eu gosto de chamar.

A base deste conceito é a transferência de responsabilidade moral. É como se alguém pudesse cometer um crime – de qualquer gravidade – e, em vez de ser punido, outra pessoa sofresse a penalidade no seu lugar, libertando o verdadeiro perpetrador de todas as consequências – espirituais, morais e quiçá físicas.

Novamente, não seria de má fé da minha parte afirmar que isto constitui um desafio direto à nossa noção básica de justiça, e subverte claramente a verdadeira importância da responsabilidade individual, algo essencial para uma sociedade moderna e ética.

A suposta chegada do Jesus do Novo Testamento na história da humanidade – apresentado como amável, dócil e gentil, com uma mensagem de amor eterno e universal – veio, na minha humilde opinião, apenas mascarar de moralidade aquilo que, por natureza, não pode ser moral. Foi também Ele quem trouxe ao mundo a fantástica ideia do Inferno e sofrimento eterno.

Ele é a figura central desta história. Sem o simbolismo do suposto sacrifício Dele, o cristianismo não existiria. Não assim, não como o conhecemos, muito menos sem a ideia de que os pecadores arderão para sempre nas profundezas do pior sítio do cosmos.

Para um cristão, é igualmente necessário acreditar que este mesmo Filho, enviado por um Pai agora mais manso – supostamente sem as conhecidas características psicopatas –, foi torturado de uma maneira verdadeiramente cruel. Foi escoltado, arrastado, exibido pelas nauseabundas ruas de uma Jerusalém antiga, repleta de superstição e miséria humana, até ao seu suposto e mortal fim.

Um culminar meticulosamente planeado, orgulham-se os cristãos ainda hoje. Um fim horrível arquitetado pelo Pai, agora um Ser mais piedoso e tolerante. Parte integrante de uma profecia lunática que tinha de ser concretizada – a necessária morte do Filho, do Seu Filho. E este, segundo as escrituras do cristianismo, morre lentamente, com sérias dúvidas quanto à parca capacidade do seu gentil Pai em fazer planos.

É interessante, diria eu, que durante milénios, e ainda hoje, tenham existido intensos debates sobre se Jesus é o filho – fisicamente humano, mortal –, o Filho – uma mescla de carne divina e física –, ou Deus em si. Perdoem-me, mas dispenso discutir o papel do Espírito Santo nesta já amálgama esquizofrénica de entidades.

Não será possível, no entanto, concluir que o Cristianismo, uma religião que prega amor universal, compaixão e justiça, baseia-se numa narrativa de sofrimento e sacrifício? Como pode, então, uma fé que valoriza a a bondade e a moralidade fundar-se num acto que, em qualquer outro contexto, e visto sob qualquer outra perspectiva, seria considerado brutal, desnecessário e inumano?

Temos o dever de relembrar ao mundo que o Cristianismo celebra a crucificação como um acto supremo de amor divino, mas que, na sua essência, não deixa de ser um sacrifício humano – algo que normalmente condenaríamos com profunda repulsa.

Qualquer um de nós, se estivesse presente, teria a obrigação de impedir tal demonstração de injustiça e estupidez. Não há nada que justifique a suposta crueldade infligida a Jesus – um evento para o qual não existem evidências concretas de ter acontecido, nem sequer da existência da pessoa em questão.

Não há problema algum que tenha alguma vez incomodado a humanidade para o qual o sacrifício humano tenha sido a resposta certa, ou sequer uma resposta para seja o que for. Jesus, a ter existido, morreu efectivamente em vão, como tantos outros milhões antes dele, e biliões depois.

Até o cristão moderado devia perceber que este conceito de redenção vicária não encontra eco algum na realidade que experimentamos. Na vida real, as acções têm consequências directas e tangíveis. Não desaparecem porque alguém sofreu horrivelmente no nosso lugar há aproximadamente 2000 anos.

A moralidade, tal como a entendemos na ética moderna, exige que cada indivíduo enfrente as consequências dos seus próprios actos. A ideia de que estas consequências possam ser simplesmente transferidas é uma ilusão demasiado perigosa, e uma das sementes mais venenosas que inspirou as maiores atrocidades da história da humanidade.

No mundo secular, onde cada vez mais valorizamos a autonomia e a responsabilidade individual, a ideia de que podemos ser absolvidos dos nossos piores erros através do sofrimento de um semelhante não é apenas incrivelmente ultrapassada, mas um verdadeiro horror moral. Em vez de procurar escapatórias mitológicas, deveríamos enfrentar as nossas falhas de frente, aprender com elas e melhorar.

Será que a moralidade cristã, construída sobre a ideia de que o sofrimento de um pode redimir todos, é realmente bela? Divina? Justa? A ironia é difícil de ignorar: uma fé que prega a justiça e a compaixão baseia-se, paradoxalmente, num acto que subverte esses mesmos princípios. Tinha, e continua a ter, tudo para correr bem.

Acreditar no Cristianismo, e inevitavelmente nesta mensagem de redenção vicária do pecado original – outro conceito maravilhoso –, onde podemos ser ilibados da responsabilidade pelos nossos actos mais cruéis, macabros, bizarros e inumanos através da tortura e morte de um rabi excêntrico, provavelmente epiléptico, na antiga Palestina, não me parece ser a melhor maneira de viver.

Refutar ideias religiosas como esta é um passo decisivo rumo à verdadeira emancipação do espírito humano. É um esperançoso impulso para um caminho que nos libertará das algemas mentais que nós próprios criámos, permitindo-nos finalmente respirar o ar puro de uma vida vivida sem ilusões.

3 de Agosto, 2024 João Nascimento

O Lamento da Existência

Gerado por Dall-E.

Porque é que existe maldade humana no mundo? Porque é que as pessoas sofrem? Porque é que as crianças suportam o horror inimaginável de serem violadas pelos próprios pais, depois mortas, desmembradas e descartadas como lixo?

Porque é que a vida é tão incrivelmente injusta? Porque é que nós, seres humanos, muitas vezes morremos miseravelmente e sozinhos?

Enquanto os apologistas cristãos tentam encontrar maneiras cada vez mais surpreendentes de desviar estas perguntas prementes sobre a frágil existência humana, nós, os descrentes, os ateus, os humanistas seculares, oferecemos uma resposta mais direta: somos primatas. Primatas superiores, mas ainda assim apenas mais um ramo na árvore da evolução, com um longo caminho pela frente, espero eu.

Como Charles Darwin escreveu, carregamos, todos nós, a humilde marca da nossa origem, e isto permanece uma verdade incontestável, quer gostemos ou não. As nossas glândulas supra-renais são demasiado grandes, os nossos lobos pré-frontais demasiado pequenos, e os nossos órgãos reprodutivos parecem ter sido construídos por um comité administrativo com objetivos claramente mal delineados.

Uma combinação que, sozinha ou em conjunto, levará certamente a alguma infelicidade, desordem e inevitável caos. Somos demasiado apaixonados por ideias, e normalmente só sabemos se são más ou boas quando já é tarde demais para refletir antes de agir.

Todos temos a habilidade de reconhecer padrões, e usamo-la desde o princípio em praticamente tudo. Em tudo o que nos rodeava, descobrimos uma maneira, subtil e automática, de construir realidades, à nossa medida, que nos ajudaram a compreender os vários ciclos da natureza, incluindo os nossos. 

Ajudou-nos a interpretá-los e a tirar ilações tão necessárias. E, permitiu-nos dar uma utilidade prática ao aparente caos à nossa volta. Aprendemos a construir a nossa realidade, que tem aquela tendência chata de ser um bocado diferente em cada um de nós.

Já houve uma altura em que a religião e a dimensão do sobrenatural poderiam ter tido uma palavra a dizer. Um género de filosofia insana, solipsista, carente, temente, ignorante, que tentou fornecer-nos as respostas que ninguém tinha, mas as quais todos ansiavam ter.

A doença e tudo o que assolava a humanidade, os fenómenos naturais, eventos geológicos, eventos humanos, políticos; tudo podia ser explicado recorrendo ao obscurantismo religioso. Não havia grande distinção entre a dimensão do sobrenatural e a realidade.

E, também, segundo estudiosos daqueles tempos mais antigos, se algumas pessoas morriam num povoado qualquer derivado a surtos de atacantes microscópicos, por exemplo, foi porque os judeus envenenaram os poços.

Quando uma catástrofe natural, como o terramoto que atingiu o Haiti em 2010, tira milhares de vidas, nós, ateus, entendemos que não se deve a qualquer interferência divina. Reconhecemos que vivemos num planeta ainda em fase de arrefecimento, e que atribuir tais eventos a uma causa sobrenatural não é boa ideia, no mínimo.

Atrevo-me a dizer, também, que culpar um evento natural na homossexualidade das pessoas não é só incrivelmente estúpido, como também se desvia descaradamente do tão amado conceito de livre arbítrio.

Considera isto: se Deus nos deu o livre arbítrio, não será matar-nos com catástrofes naturais uma violação dessa liberdade, mesmo que nos envolvamos em comportamentos pecaminosos? Se Deus está realmente a punir as pessoas causando tais mortes em massa, tem de haver algo extraordinariamente de errado com Ele.

Não concordas?

Outra pergunta, e esta eu fazia constantemente a mim próprio há umas décadas: será que o tão amado livre-arbítrio não perde o significado quando é dado? Quer dizer, “Deus, o Senhor dos Senhores, deu-me livre-arbítrio”. Detectam a ironia aqui, ou sou só eu?

Se Ele interfere, contradiz o pacto com a humanidade, destruindo qualquer noção de livre arbítrio. Como justificas então a morte de um recém-nascido às mãos de um dos seus pais? Ou a morte de um bebé sob os escombros de uma casa, após um terramoto? Se ainda consideras que estas tragédias são causadas pelos majestosos poderes de Deus, não terás tu também uma problemática a resolver na tua mente?

Usar Deus para explicar o mundo natural foi um dos grandes erros da humanidade. No entanto, seria arrogante da minha parte vilificar o desgraçado do Homo sapiens que nasceu com tudo contra ele. Sozinho, entregue às intempéries de um cosmos que nem sequer sabe que ele existe. Não quereria saber se deixasse de existir.

Contudo, já não vivemos na pura ignorância, e existem certas técnicas lógicas que nos fornecem as ferramentas de que necessitamos para nos protegermos das algemas mentais criadas por nós. Acredito que a religião seja apenas a principal dessas algemas.

A Navalha de Ockham, por exemplo, ajuda a libertar a mente para encontrar soluções reais para os verdadeiros problemas. Christopher Hitchens afirmava que este conceito filosófico era a morte da religião. Tendo a concordar.

Afirmar que Deus, ou a suposta imoralidade da sociedade, é a culpada por eventos naturais trágicos é apenas uma forma de ignorar as verdadeiras causas do sofrimento humano e animal, e permitir que persistam de formas cada vez mais variadas e, por sua vez, mais insidiosas.

Não há nada no mundo natural ou no nosso comportamento que exija uma explicação sobrenatural. Novamente: Deus é responsável por todo o mal, ou não é. Ele é indiferente ao nosso sofrimento, ou é a entidade mais sádica do cosmos.

A questão é que não tens de escolher entre nenhum destes extremos.

Pensa nisso.