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Categoria: Catolicismo

30 de Março, 2025 Onofre Varela

Indemnizações da Igreja às vítimas de pedofilia

Leio (em notícia divulgada pelo jornal Público na edição do último Domingo, 30 de Março) que a Igreja não garante indemnizações às vítimas de abuso sexual, perpetrado por sacerdotes católicos, até ao fim do corrente ano de 2025. Informa-se, ainda, que “as comissões de instrução têm sofrido atrasos e só metade das 69 pessoas que pediram indemnizações foi ouvida”… e que a Igreja está aberta a novos pedidos. 

Afigura-se-me estranho que a Igreja se afirme “aberta a novos pedidos” se não consegue resolver os pedidos que já tem em carteira desde que se iniciou o processo da possibilidade de indemnizar as suas vítimas!

Recorde-se que foi em 2013 que o Papa Francisco criou uma comissão especial no sentido de proteger as crianças vítimas de pedofilia por parte do clero. Foram registados casos e feitas denúncias de abusos sexuais em várias partes do mundo, de cuja lista fazem parte países como: Portugal, Brasil, Alemanha, Austrália, Espanha, Bélgica, França, Reino Unido, Irlanda, Canadá e Estados Unidos da América. As investigações não se limitam à Igreja Católica. Também se contam escândalos de abusos sexuais noutras religiões e cultos, como a Convenção Baptista, Igreja Episcopal dos Estados Unidos, Testemunhas de Jeová, Igreja Luterana, Igreja Metodista, Judaísmo Ortodoxo e Ultra-ortodoxo, Islão, várias escolas budistas e tibetanas, grupos de yoga e outros. Como se sabe, até no seio das famílias se contam crimes sexuais cometidos com crianças.

A “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica” iniciou os seus trabalhos em 2022, coordenados pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, investigando casos acontecidos desde 1950, que recomendou à Igreja “o reconhecimento da existência e extensão do problema e o seu compromisso na adequada prevenção futura, nomeadamente através do cumprimento do conceito «tolerância zero» proposto pelo Papa Francisco”.

Gerado com IA.

Esta Comissão Independente cessou funções com a “sensação de dever cumprido, mas também com a ideia certa de que este não é bem um final, porque mesmo tendo sido abertas algumas portas, interessa começar hoje mesmo um novo tempo de abertura em relação ao tema de abusos sexuais de crianças no seu todo”. De entre as vítimas de abusos sexuais pelo clero, confirmaram-se sete suicídios. “Quase metade dos inquiridos nega a existência de consequências físicas, mas 21,6% dos casos reportam-nas. Destes, verifica-se que grande parte tem origem emocional, perturbações de ansiedade e de humor depressivo, implicando alterações do sono, do padrão alimentar e da imagem do corpo e da vivência da própria sexualidade”.

Catarina Vasconcelos, membro da Comissão Independente, declarou que “não foi fácil escutar, registar e ler os relatos das vítimas”. Estima-se que 4303 crianças foram alvo de abusos sexuais na Igreja, para além das 512 que testemunharam, o que faz um total de 4815. Destas, 77% dos abusadores eram padres. Após ser extinta a Comissão Independente, a responsabilidade na continuação dos estudos sobre a pedofilia na Igreja e suas consequências, passou para a própria Igreja que, para o efeito, criou o Grupo VITA em 26 de Abril de 2023. É a partir da actuação desta nova organização (que por trás de si tem a Igreja Católica) que se espera a resolução da política de indemnizações… mas não se vislumbra o fim!

Será que ela existe para branquear os crimes sexuais da Igreja, encobrindo-os com a névoa do esquecimento?!… Esta organização não deveria de, obrigatoriamente, ser independente da Igreja?

22 de Março, 2025 Onofre Varela

«Onde estava Deus?»

O tempo que tem feito, com estragos e mortes em vários pontos do globo, lembrou-me que perante tal infortúnio há quem se pergunte: “Onde estava Deus, que permitiu tão nefasto acontecimento? Porque não evitou tal desastre se, afinal, ele tudo sabe e pode?”

São perguntas lícitas que qualquer crente pode fazer, mas não há respostas para elas. A pergunta só é formulada por quem crê, na convicção de a divindade ser real para além dos seus pensamentos. Na verdade Deus não podia estar no local do acidente, da catástrofe natural ou do crime, porque como ideia que é, só se encontra dentro da cabeça de quem nele crê. Fora da cabeça do crente não há Deus em lado algum. 

Penso que esta pergunta trágica do crente que se sente frustrado por não ver a intervenção divina naquilo em que, segundo o seu entendimento, deveria intervir, aconteceu aos judeus na segunda metade da década de 1940. Por essa altura o pensamento filosófico foi abalado por duas realidades brutais: duas guerras tinham preocupado o mundo, e a segunda delas carregava o peso do holocausto judeu, promovido pela Alemanha Nazi, mais o trágico fim do Japão no teatro de guerra, com o lançamento de duas bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, pelos EUA.

Quando os soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres, era o que restava dos prisioneiros judeus. O general Eisenhower fez questão de ver tudo com os seus próprios olhos e recomendou a quem tivesse máquinas fotográficas que registasse o maior número possível de imagens, pois haveria de surgir um dia em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam (premonitório!). 

Gerada com IA

Passado o natural estupor provocado pelo conhecimento das atrocidades cometidas na guerra, a realidade da condição humana, no contexto político, social e religioso da época, foi alvo de profundas reflexões que tiveram eco na década seguinte, prolongando-se para a de 1960, ultrapassando-a, até. A religião, como refúgio das almas, não podia, naturalmente, estar ausente dessas reflexões que acabaram por promover mudanças de atitudes. 

Não era possível explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos, nem eliminar a dor das vítimas. E os religiosos mais directamente atingidos pela tragédia da guerra sentiam legitimidade para perguntar: “Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!” 

Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira… mas tais perguntas não têm razão de ser! Elas não consideraram a História, a sociedade, nem a naturalidade das coisas naturais. São perguntas sem nexo, ao nível da mitologia que as provoca… logo, são irrespondíveis porque também são “ininterrogáveis” por uma mente esclarecida! 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) OV

9 de Março, 2025 Onofre Varela

Humor e Fé(2)

Herman José, em 1994, teve um programa no canal 1 da RTP, denominado Herman Zap!, de grande audiência e agrado nacional. Um dia, nas suas rábulas, criou uma Última Ceia de Jesus, humorística. Caiu o Carmo e a Trindade!… 

A Igreja Católica não achou piada nenhuma àquele excelente trabalho de comédia, e protestou. O bispo Maurílio Gouveia, então responsável por um gabinete que julgo denominar-se “Episcopado para a Comunicação”, apressou-se a dizer que “O programa ridicularizou o que há de mais sagrado na fé dos cristãos: a eucaristia”. A série de programas foi interrompida e realizaram-se mesas redondas debatendo a questão religiosa e a liberdade de expressão. 

Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PPD, declarou: “Vejo com preocupação que, sendo um canal de serviço público, nele se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como é a Igreja Católica”. Herman José mostrou-se surpreendido pela reacção da Igreja, e declarou: “Deus deve estar a rir-se às gargalhadas da mesquinhez de quem criticou o Herman Zap!”. 

RTP

Organizou-se uma mesa redonda na RTP onde se discutiu aquele programa televisivo de diversão transformado em tragédia nacional pela Igreja, e frei Bento Domingues pareceu-me ser, de entre os vários intervenientes, aquele que teve a opinião mais lúcida. Declarou ter visto o programa e não ter encontrado nele nada que beliscasse a sua fé. Confessou que até lhe achou graça: “Aquilo tinha a ver com o meu riso, não com a minha fé”, disse. 

Na madrugada do dia 24 de Dezembro de 2019 extremistas brasileiros atacaram à bomba, no Brasil, a sede da produtora de conteúdos televisivos “Porta dos Fundos”, como protesto pela transmissão televisiva de um “sketch” cómico com o título “A primeira tentação de Cristo”, na qual Jesus foi representado como um jovem que terá tido uma experiência homossexual, e também insinua que o casal bíblico Maria e José viveram um triângulo amoroso com Deus. 

Eu vi o programa e não vi nele a graça que, provavelmente, os seus autores pretendiam. Teve dois ou três momentos de humor, e o restante, para o meu gosto e de acordo com o excelente trabalho que já vi do mesmo grupo, era francamente mau. A qualidade daquilo era muito rasteira… mas, daí, até se lançarem bombas contra a empresa produtora do programa, vai uma distância abissal!… Pode-se gostar ou não gostar e criticar o programa. Se nos consideramos ofendidos apresentamos o nosso protesto às entidades competentes para julgar o caso, e esperamos que a Democracia e a Justiça façam o seu trabalho… mas um ataque à bomba é crime! 

Naquele momento da política brasileira (consulado de Jaír Bolsonaro), com as acções da Direita mais extremista apoiada por Bolsonaro, a liberdade de expressão e de criação artística estava seriamente comprometida. O seu próprio filho, Eduardo Bolsonaro, deputado por São Paulo, foi uma das figuras públicas a condenar o “sketch”. Os actores Gregório Duvivier e Fábio Porchat, responsáveis pela “Porta dos Fundos”, declararam: “Não nos vamos calar! Nunca!”. Eu apoio sempre qualquer luta a favor da liberdade de criação e expressão. Não admirei aquele trabalho, mas defendo a liberdade de o terem criado. 

Um dia depois do atentado, um grupo ultra-nacionalista intitulado “Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integrista Brasileira”, reivindicou a responsabilidade do acto criminosoo. O espírito que sobressai do nome deste grupo leva-me a entendê-lo como uma espécie de Ku-Klux-Klan e de agrupamento Nazi. Só grupos de tal índole atacam a liberdade de expressão, alegadamente em favor de um ultranacionalismo balofo e criminoso. 

(Continua) 

24 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

Sobre a Saúde Debilitada do Papa

Acompanhando o noticiário que dá conta da hospitalização de Francisco I (F1), padecendo de pneumonia nos dois pulmões, lamento o seu estado de saúde e coloco-me ao seu lado na esperança de que se liberte do mal, recupere rapidamente e regresse à sua vida normal.

A propósito, lembrei-me de que (já lá vão muitos meses), vi e ouvi num canal de televisão, um responsável político do CDS dizer algo parecido com isto, relativamente ao criticar da crença (cito de cor): “Se não é crente não tem o direito a dar opinião sobre a crença dos outros”. Tal frase mostra que quem a profere, muito provavelmente, deseja (como político extremado que é) cortar a voz a quem tem opinião diversa da sua.

Gerado com IA.

É evidente que não preciso de ser religioso para ter opinião sobre religião e religiosos, como não preciso de dar vivas ao rei para poder criticar a Monarquia. Só preciso de estar atento à evolução da História, ter opinião própria e viver numa sociedade que respeita a liberdade de expressão, para o poder fazer. Como ateu é evidente que tenho opinião formada sobre religião, e como humanista é mais do que evidente que espero o rápido restabelecimento da saúde de F1.

Sei que este meu “sentimento fraterno de ateu” relativamente ao Papa, não é partilhado por muitos religiosos!… Neste tempo em que ultra-conservadores de extrema-direita e muitos milionários norte-americanos apoiados por Donald Trump, mais tantos outros europeus e asiáticos com o mesmo pensamento mercantilista do comissionista que tomou o poder nos EUA, esperam o pior desfecho para a vida de F1.

No dia 5 de Outubro de 2019 o jornalista Miguel Araújo divulgou no Diário de Notícias o facto (ou a ideia) de haver uma guerra movida contra o Papa pelo sector fundamentalista da Igreja Católica que trata F1 como herege, e que conta com o apoio dos “principais financiadores do Vaticano”. São “insondáveis os caminhos das pressões junto dos senhores da Santa Sé”. Estes “senhores” têm o objectivo de, “algures num futuro mais ou menos próximo, preparar terreno para escolher um Papa que tenha uma visão do mundo que se oponha frontalmente à de um bispo de Roma como Francisco, um «esquerdista» como é apoucado, por denegrir «o deus do dinheiro», atacar um liberalismo económico desenfreado e as políticas desumanas dos Estados ocidentais para com os migrantes, apostando sempre no diálogo e nas pontes com aqueles que os ultra-conservadores querem ver expulsos da mesma mesa [como os homossexuais, as mulheres que abortam, os casais de união de facto, os divorciados e recasados, etc.]».

F1 está ciente desta conspiração interna que cresceu contra si. Por isso, no lote dos novos cardeais (então nomeados) se conta o português José Tolentino Mendonça, entre outros da sua confiança. Há uma facção fundamentalista na Igreja Católica que se coloca ao lado do deus-dinheiro, do poder económico, abandonando os pobres e maltratados, esperando o rápido fim de F1… que pode sobreviver (e espero que sobreviva) à pneumonia que o debilita neste momento…  mas pode não escapar à maldade que contra si se alberga na Santa Sé, que tendo tantos “santos”… provavelmente terá muito mais “demónios”!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

4 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

«Ateísmo-Cristão»

Em 1945, quando soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres era o que restava dos prisioneiros judeus. O general Eisenhower pediu a quem tivesse máquinas fotográficas para registar o maior número possível de imagens, pois haveria de vir um tempo em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam (premonitório!).

A realidade da condição humana foi alvo de profundas reflexões. A religião, enquanto refúgio das almas, não sabia explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos. Os crentes mais directamente atingidos pela tragédia, sentiam legitimidade para perguntar: “Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!”… Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira. Urgia assumir a necessidade da revisão de conceitos culturais e religiosos que tinham perdido todo o significado e o carisma que possuíam antes da guerra.

Foto de Frederick Wallace na Unsplash

Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão perito em história das religiões, era um dos intelectuais que alinhavam na nova atitude. Anunciou a necessidade da proclamação moderna do Evangelho “sem que os ouvintes se sintam obrigados a adoptar a mentalidade e a cultura dos homens do começo da era cristã”. Bultmann chamava a atenção para o facto de o Novo Testamento ser mitológico, e preocupava-se com a questão de como propor o verdadeiro conteúdo da mensagem cristã. “Esta exprimiu-se nos primeiros séculos segundo um determinado número de ideias, de imagens, de referências tomadas da cultura de então, cuja forma de pensar era mítica, isto é, apresentava as realidades divinas, transcendentes, em termos deste mundo. Ora, essa forma de pensar já não é a nossa!”.

Impunha-se a desmistificação da mensagem cristã tornando-a compreensível na simples e natural dimensão humana, abandonando a ideia de se ter em Jesus Cristo (JC) um mediador da divindade.

Mas Bultmann foi mais longe nas suas considerações. Argumentando que desde o século I o entendimento evoluiu de tal modo que a concepção do mundo e o aparecimento do Homem são matérias que já não podem ser consideradas da mesma maneira, defendia que a ressurreição de Cristo devia ser considerada como mito. Não a rejeitava enquanto mensagem de fé, mas entendia que deveria fazer-se a separação dos conceitos, já que, na realidade, JC não ressuscitou!…

O seu contemporâneo Thomas J. L. Altizer, também teólogo, navegava nas mesmas águas e propôs a ideia do “Ateísmo-Cristão”, fundamentando-se em estudos que lhe permitiam concluir que “o Deus soberano, absoluto, opressivo e transcendente, morreu em Jesus Cristo. Deus aniquilou-se a si próprio para que uma nova manifestação do espírito pudesse aparecer sob uma forma profana. A morte de Deus deveria ser saudada pelos cristãos como um acto redentor que liberta o homem da escravidão a uma divindade despótica que lhe permite aguardar, confiante, uma nova epifania do Espírito no mundo”.

Estas eram as preocupações de alguns homens de religião despoletadas pela guerra, pelos horrores e pelas atrocidades que se conheceram em 1945. Hoje, quando assisto a uma missa observando o que ali acontece, retrocedo para a Idade Média!… A Igreja não ouviu os seus influentes teólogos de há 80 anos.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

29 de Janeiro, 2025 Eva Monteiro

Nem só de religião vive o ateu

O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.

Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.

Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.

Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.

Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro.  Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?

O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.

Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.

Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:

Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.

Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.

Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.

27 de Janeiro, 2025 Onofre Varela

AINDA SOBRE OS “DOIS PAIS” DE JESUS

No último artigo abordei o sentimento de ofensa que alguém possa deter perante conversas ou escritos que contrariem o seu modo de encarar o mesmo assunto, quando tratado de um outro campo que não o seu. É um sentimento natural que deve ser entendido com a mesma naturalidade, e nunca se deve ver, num ponto de vista contrário ao nosso, um insulto… se não, não fazemos nada mais na vida que não seja “insultarmo-nos constante e mutuamente”, porque não há duas pessoas que detenham “pensamentos, entendimentos e sentimentos, fotocopiados”.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo, ao pretensamente ofendido, o texto que o meu interlocutor diz ter sido uma ofensa à sua fé. Na maioria dos casos fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Gerado por IA.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender as coisas. E quando essa ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o Bloco de Esquerda usasse aquela imagem e aquela frase (referidas no último artigo) sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias, e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação que choque com entendimento diverso. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico nem científico, mas sim uma “estória de fé” que, merecendo respeito, também merece reparo ou crítica, numa sociedade maior, livre e consciente. O respeito não quer dizer “come, cala e não opines”. Respeitemos, mas opinemos… é isto a Democracia e o cumprimento do respeito que ela decreta.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, do mito grego da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde… o que quer dizer: relações sexuais (naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade… e se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o religioso seguidista que desliga o seu motor de busca não procurando entendimento… e nunca o seu crítico. As lendas religiosas devem ser tomadas na sua realidade de lenda e de fé, respeitadas como tal, e nunca declaradas como “realidade sagrada” com ameaça de punição para quem não as aceite, como a Igreja fazia no tempo da Inquisição de má memória!

Por muito respeito que me mereçam os meus amigos crentes, eu tenho o direito de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico e a biologia implica sexo. A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas naturais e reais. 

17 de Janeiro, 2025 Onofre Varela

SENTIR-SE E SER-SE OFENDIDO

A clérigo sandeu parece-lhe que todo o mundo é seu”

(Provérbio Popular)

A propósito de o Papa Francisco I condenar populismos e defender divorciados e homossexuais (tal como “O Cidadão” noticiou no último dia 15 de Janeiro), mostrando ser a primeira vez que o Vaticano tem na Cadeira de São Pedro um clérigo verdadeiramente sensível e fraterno na defesa das liberdades individuais, limpando – com as suas atitudes e os seus discursos – a parte mais negra da História que a Igreja Católica escreveu durante séculos, lembrei-me de um caso ocorrido em Fevereiro de 2016. Já lá vai quase uma década, mas o sentimento de escândalo que ele provocou, continua actual; por isso considerei lembrá-lo aqui e agora.

Nessa ocasião, para assinalar a aprovação da lei que permite a adopção de crianças por parte de parelhas do mesmo sexo (eu prefiro usar o termo “parelhas” em vez de “casais”, porque “um casal” implica dois indivíduos de sexo diferente: um macho e uma fêmea. O termo “parelha” designa “um par”… neste caso, “um par de pessoas – duas pessoas”, que é o que é, e não um casal!) o Bloco de Esquerda (BE) criou um cartaz que gerou controvérsia, representando, em desenho, a figura (graficamente esbelta e religiosamente correcta) de Jesus Cristo, com a frase “Jesus também tinha 2 pais”. Esta mensagem, sob o ponto de vista histórico, científico e filosófico, é imaculada… não ofende ninguém e sublinha o que as religiões cristãs afirmam: Jesus é filho de Deus, e José é o seu pai adoptivo! Logo, tendo um pai adoptivo, não resta dúvida de que conta com dois pais… o adoptivo… e o outro!

(Bem… aqui, “o outro” , refere o “pai biológico”. Mas na estória cristã, a Biologia não está presente… aquilo não se entende… é uma confusão em que entra a figura de uma casta e branca pombinha, chamada “Espírito Santo”, como portadora do esperma divino que depositou no ovário de Maria… o que dificulta a compreensão do acto!… Os crentes afirmam esta “narrativa de fé” como sendo realidade, mas eu desconfio que quem a afirma não a entende e só a defende “por fé” sem se preocupar com as explicações que devia exigir para, só depois, poder defender… ou não!).

A aprovação da Lei da Adopção foi confirmada na Assembleia da República no dia 10 de Fevereiro, depois de Cavaco Silva (então presidente da República) a ter vetado. Em termos de religiosidade, não há diferença no tratamento das leis por parte de Cavaco e de Marcelo. Ambos são católicos e, na presidência de uma República laica (repito, em maiúsculas: LAICA) perfilam-se ao lado da Igreja, desaprovando tudo quanto a LAICIDADE REPUBLICANA diz dever ser aprovado.

A Constituição Portuguesa permite que um qualquer cidadão fiel a uma qualquer fé religiosa, seja eleito para presidir à República que é LAICA!… E permite-o, exactamente, por atribuir legalidade ao sentimento religioso, à sua fé e à sua livre expressão, quer se seja a favor, ou contra… correndo-se o risco de a LAICIDADE republicana não ser cumprida. São as idiossincrasias da Democracia!…

O BE, fazendo Juz à política de Esquerda que representa, concordou com a lei da adopção de crianças por parelhas do mesmo sexo, bem como concorda com o casamento homossexual, porque respeita a dignidade do Ser Humano e as vontades individuais. A Igreja Católica é que não alinha com tal respeito e contestou a lei por se sentir ofendida (esquecendo que estava a ofender a Liberdade e a Dignidade de quem quer ver a lei aprovada, em nome da sua própria Liberdade que o espírito do 25 de Abril lhe deu). Numa atitude de assumir a figura do “politicamente correcto”, o BE reconheceu ter sido um erro usar aquela mensagem e desculpou-se, retirando os cartazes, demonstrando usar de muito mais compreensão do que aquela de que a Igreja Católica se diz portadora.

Quero aqui dizer que quando alguém se sente ofendido, esse sentimento não é, por si só, prova de que o tenha sido realmente. “Sentir-se” não é o mesmo que “ser-se”. Eu posso sentir-me rico e ser pobre (ou vice-versa)!… Qualquer ofensa só é real se for exercida com a consciência de ofender. Se na sua origem não estiver a atitude de ofender, a ofensa não passa de um incidente que foi lido como ofensa pelo receptor, independentemente da intenção do emissor.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo e comentando, ao ofendido, o texto que o meu interlocutor diz ter sido uma ofensa à sua fé. Invariavelmente fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender as coisas. E quando esta ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o BE usasse aquela imagem e aquela frase, sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias (por isso há tantas seitas religiosas baseadas no mesmo Livro), e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação só porque choca com entendimento diverso. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico, nem natural… não passa de uma “estória de fé” que, merecendo respeito, também merece crítica numa sociedade maior, livre e consciente da Liberdade que tem.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia grega, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde. (Naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade.

A fé deve ser mantida por quem a tem, e respeitada por quem a não tem… mas não é matéria tabu! Nada o é. Numa sociedade maior (como é a nossa, liberta de ditaduras fundamentalistas religiosas) pode-se falar de tudo, seja elogiando ou criticando. E se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o seguidista de uma fé que desliga o seu motor de busca na procura de entendimento… e nunca o seu crítico.

Por muito respeito que me mereçam todos os crentes, eu tenho (tal como eles) o direito (e a obrigação) de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico, e a biologia implica sexo. 

A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas reais e naturais. 

22 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

Sobre a igualdade

O Cristianismo conseguiu impor-se graças a duas grandes ideias que constituem a linha de força que, em linguagem publicitária usada nos tempos em que fui criativo gráfico em agências de publicidade, podem ser referidas como “o eixo” das suas preocupações de marketing.

A primeira ideia tem a força da fé: é o desejo de vitória da vida sobre a morte, que no Cristianismo é simbolizada pela ressurreição. Constitui o motor da expansão do credo ao nível do irracional. A crença na ressurreição do corpo, num hipotético dia do juízo final, acrescentada da, também hipotética, viagem “pós-morten” que a alma empreenderia para junto do deus que enche de ventura aqueles que, em vida, só padeceram tormentos.

Foto de Jacob Amson na Unsplash

Esta suposta vida a usufruir depois da morte é a imagem de marca e a espinha dorsal que sustenta o Cristianismo ao nível do irracional, porque encerra o essencial da vontade de todos nós, que é a fantasia de contrariar a morte, prometendo-nos uma vida eterna no etéreo, sem necessidades materiais, onde o pobre e o rico serão, finalmente, iguais (derradeiro consolo!).

A segunda ideia contém força social e política ao apregoar a “igualdade entre os homens”. Igualdade reconhecida ainda em vida, o que acaba por ser uma ideia positiva… embora não seja biologicamente correcta!…

Na verdade científica os seres humanos “são semelhantes”, mas “não são iguais”. Os códigos genéticos são idênticos na forma, mas não são iguais no conteúdo. Cada um de nós é detentor de um código genético único, o que faz com que cada um seja, realmente, diferente do outro. Biologicamente, cada um de nós é único.

A igualdade apregoada deve ser entendida como conceito social: igualdade no tratamento e nas oportunidades, tal como a nossa Constituição regista.

O conceito religioso da igualdade (amarás o teu próximo como a ti mesmo) é referido no Velho Testamento (Levítico: 19; 11-18), foi relembrado nos Evangelhos (Mateus: 22;39) e já era sugerido no Código Hamurabi (na sociedade babilónica há cerca de 3.800 anos) onde os redactores da Bíblia foram beber a ideologia que transcreviam em nome de um deus hipotético…

É um conceito que se compreende e deseja sob o ponto de vista humanista na tentativa de se eliminar diferenças sociais. A originalidade ideológica do Cristianismo reside precisamente no lembrar desta ideia da universalidade do Ser Humano, negando discriminações na afirmação de que todos somos iguais, contrariando os sentimentos de classe, rácicos e nacionalistas que estão tão “na moda” hoje, usados pelos anti-humanistas radicais de Direita… que querem ser governo!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

15 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O Natal de um ateu

Já me têm perguntado: “como é o Natal de um ateu?”. É uma curiosidade motivada pela ideia generalizada de que a sociedade está dividida em segmentos. Há o segmento religioso, o segmento político e o segmento futebolístico (no mínimo…). E também há quem pense que em cada segmento as pessoas funcionam de modo diverso das outras.

Para satisfazer os curiosos… cá vai:

Não posso falar pelos ateus em geral, porque cada pessoa é ela própria e não o decalque de quaisquer outras (consideração válida para ateus e religiosos); como os meus amigos sabem, religiosamente sou ateu, politicamente sou de Esquerda, e em futebol… sou contra! Não gosto de futebol, nunca joguei a bola nem entrei num estádio e não vejo campeonatos, nem pela televisão. Costumo dizer aos meus amigos que, para mim, o futebol está ao nível de Deus… não existe!

Quanto ao Natal… é uma festa religiosa das sociedades cristãs. Cada um de nós, embora seja dotado de raciocínio próprio, é sempre o resultado do meio em que nasceu – cresceu e foi educado – não lhe podendo fugir. O Natal e a Páscoa são festas religiosas do meio que me fez, mas também são profanas. A Páscoa nunca teve significado no meu meio familiar; é um Domingo como qualquer outro… sempre assim se procedeu em minha casa porque “a ressurreição” (no figurino em que os religiosos cristãos a apresentam) não tem sentido.

Já o Natal é a “Festa da Família”. É um dia em que se reúnem familiares mais chegados, habitualmente separados por factores profissionais ou de residência distante, num jantar comunitário (designado por Consoada, palavra derivada do latim Consolata que quer dizer “refeição partilhada”) onde se sacrifica um bacalhau salgado, já sacrificado no Mar do Norte, regado com azeite de Trás-os-Montes e acompanhado de um bom vinho. Há sobremesas doces e distribuição de prendas, e findo o serão vou dormir sem assistir “à missa do galo”.

Imagem da Unsplash

Portanto, retirando a missa e as orações dos Católicos (que nem todos cumprem), o meu Natal de ateu é igual ao Natal de um religioso!

As datas religiosas da Igreja Católica, como Páscoa e Natal, têm a ver com a vida de Jesus Cristo, enquanto ícone deífico dos cristãos… mas também estão ligadas à Natureza, aos equinócios do Inverno e da Primavera. Toda a vida dos Seres Humanos é baseada, em primeiro lugar, na Natureza, e depois na sociedade e no seu folclore próprio e sazonal, que pode ser laico ou religioso, mas que é, sempre, folclore inerente a cada grupo social, que a Antropologia, a Etnologia e a Sociologia, estudam e explicam.

O Pinheiro e o Presépio

Nos meus tempos de miúdo ia cortar, numa bouça próxima de casa, um pequeno pinheiro recém-nascido, que enfeitava com bugalhos forrados com prata retirada dos maços de cigarros (encontrados no lixo e no chão da rua) rematando a obra com bocadinhos de algodão a fingir de neve (se tivesse vinte e cinco tostões para comprar pequenas bolas de vidro, coloridas e muito frágeis, e dois pacotinhos de minúsculos chocolates amarrados com uma fita de seda, para pendurar na árvore… era uma festa e a obra ficava espectacular!) sem ter consciência de que a tradição da árvore de Natal estaria ligada às crenças dos povos pagãos do norte da Europa, principalmente à celebração do Solstício de Inverno – a noite mais longa do ano – como homenagem à Natureza adormecida.

Já o Presépio encerra uma outra história para além da relação com o Solstício de Inverno. Uma breve consulta ao Novo Testamento mostra-nos que de entre os evangelistas que nos falam da história de Jesus nenhum deles narra a cena que estamos habituados a ver designada por Presépio. Mateus (2:11) diz-nos que os reis magos “entrando na casa acharam o menino com Maria”. Logo, o estábulo da tradição não existe nesta referência, já que o local do nascimento seria “uma casa”.

Marcos e João omitem o nascimento de Jesus, referindo-o já como adulto, quando é baptizado nas águas do rio Jordão por João Baptista.

Lucas (2:7) já nos diz que Maria “deu à luz o seu filho primogénito e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

A necessidade de José e Maria terem um lugar para pernoitar, devia-se ao facto de se terem deslocado de Nazaré, onde viviam, para Belém, na obrigação de se recensearem, no cumprimento de um decreto do imperador César Augusto que obrigava ao recenseamento de todos os cidadãos; e o casal partira para o local quando Maria já estaria num estado avançado de gravidez.

A imagem do Presépio que hoje figura na maioria das casas e nas montras das lojas na época natalícia, teve origem numa ideia de Francisco de Assis que, em 1223, festejou o Natal fora da igreja, montando uma manjedoura na floresta de Greccio, Itália, colocando junto dela um boi e um burro como elementos tradicionais de um estábulo.

O povo não entendeu de imediato o significado daquela encenação, mas durante a Idade Média o costume espalhou-se e, em 1567, a Duquesa de Amalfi mandou montar um grandioso Presépio com 116 figuras representando o nascimento de Jesus Cristo com a adoração dos reis magos, dos pastores e com anjos a cantar.

A partir do século XVIII o costume espalhou-se pelas casas dos crentes, mantendo-se até hoje… e convenhamos que o Presépio, enquanto decoração natalícia, fica muito bem nas montras das lojas e nos centros comerciais, nesta época de chamamento ao consumo desenfreado… conotando uma festa de cariz religioso, com o consumismo.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)