Loading

Categoria: Laicidade

19 de Maio, 2009 Carlos Esperança

A virgem, o clero e o Cristo-Rei

Adivinhava-se o fracasso das comemorações pias do 50.º aniversário do monumento ao Cristo-Rei. A inauguração contou com todos os que tinham medo de faltar, a presença do ditador e a influência política da Igreja. Foi no tempo em que a alma era objecto de mais cuidado e a fé adubada pelo medo, a conveniência e o obscurantismo.

A viagem da imagem de Fátima não logrou atrair multidões de devotos e comprometeu o relançamento do santuário que o tempo e a descrença transformaram em miradouro deficitário. Das quinhentas mil pessoas que na viagem da Virgem a Lisboa, em 2005, a aguardaram a debitar ave-marias e salve-rainhas apareceram agora cem mil, metade da clientela aguardada. Não foram as pessoas que procuraram a senhora de Fátima, foi esta que veio à procura dos lisboetas e passou pela rua da Prata com uma só colcha à janela, colcha que, por sorte, ainda aguardava a ida à lavandaria.

A abertura do santuário em Almada foi um negócio arriscado e os ventos não correm de feição para o reanimar. A liberdade é inimiga da fé e há locais mais estimulantes para o ócio do que o espaço lúgubre de um santuário que celebrou a aliança da ditadura com a Igreja num local hostil à primeira e indiferente à segunda.

Bispos, com a tristeza estampada no rosto, pareciam lojistas à espera de encerrarem. Os padres que há cinquenta anos exibiam vaidosos as sotainas e a tonsura traziam agora as vestes talares escondidas e paramentaram-se, embaçados, no salão nobre do ministério das Finanças. A evocação do Papa deixava apáticos os peregrinos e o cardeal Saraiva Martins parecia ter trocado a celebração festiva por um velório e não explicou se a fé exige a devoção à mãe que viajou de Fátima ou ao filho que se ergue em Almada.

Alguns bispos usaram ainda a voz soturna para referirem a Virgem Maria como a rainha de Portugal, esquecidos de que o espírito republicano vacinou os portugueses contra os títulos nobiliárquicos. A confusão de objectivos deixou os crentes confusos quanto ao pretexto das celebrações. Ninguém sabia se a festa era destinada ao filho ou à mãe, se o que estava em causa era o pregador de Nazaré ou a mulher do carpinteiro que o arcanjo Gabriel notificou da gravidez.

As presenças do presidente da República e do presidente da Assembleia da República foram anunciadas para as cerimónias, troféus a exibir de joelhos e de mãos postas, dois dignitários a trocarem a laicidade do estado por indulgências e a assumirem as funções públicas em devoção particular para que não foram sufragados. Lá estiveram na missa, com o grave precedente de terem encabeçado a comissão de honra das comemorações da cura do olho esquerdo da D. Guilhermina, queimado com salpicos de óleo de fritar peixe, por intercessão do herói de Aljubarrota que a Igreja exumou para a canonização.

As duas figuras do Estado têm todo o direito às suas convicções particulares mas não podem representar e afrontar os que não são crentes ou crêem em mitos diferentes. E foi deplorável a participação das Forças Armadas de um estado laico nas cerimónias religiosas apesar do mau exemplo das referidas figuras do Estado.

A senhora de Fátima viajou num barco da Marinha em vez dos transportes públicos a expensas do santuário de Fátima

19 de Abril, 2009 Ricardo Alves

Fim da educação religiosa na Macedónia

Entre os países ex-comunistas do leste da Europa, há aqueles onde a religião voltou em força (caso da Polónia), e aqueles que estão prestes a abandoná-la totalmente (caso da República checa).

Soube-se agora que o Tribunal Constitucional da Macedónia decidiu anular um artigo da Lei da Educação que permitia o ensino da religião nas escolas públicas. A religião será ensinada onde deve sê-lo: em casa e nos templos religiosos.

Sem dúvida um sinal positivo: há pelo menos uma república ex-jugoslava que parece ter tirado conclusões do divisionismo religioso que ensanguentou a região nos anos 90. Permitir a segregação religiosa na escola pública é sempre um erro.

9 de Abril, 2009 Carlos Esperança

O peregrino D. Aníbal I e a laicidade traída

coche_joao_v1No próximo dia 26, parte para Roma um luzidio séquito chefiado por Sua Sereníssima Majestade D. Aníbal I, acolitado pelo presidente das cortes, D. Jaime Gama, o ministro dos Negócios Exteriores da Propagação da Fé, D. Luís Amado, o Condestável D. Valença Pinto, o cardeal do reino D. José Policarpo, o Superior da CEP e portador do hissope, D. Jorge Ortiga, o Superior da Ordem do Carmo em Portugal, padre Agostinho Marques de Castro, e o estribeiro-mor, Sr. Duarte Pio, especialista em solípedes que se ajoelham – autor, aliás, de um opúsculo de referência sobre a devoção dos cavalos de D. Nuno –, de quem se reclama familiar. De D. Nuno, claro.

O cortejo é composto por devotos que exaltam D. Nuno e exultaram quando ele, na paz da longa defunção, acudiu ao olho esquerdo de D. Guilhermina, atingido por salpicos ferventes de óleo de fritar peixe. Era o prodígio que faltava para a canonização de quem foi mais destro a matar castelhanos do que a pôr pensos. Após o milagre, por prudência e pela idade, D. Guilhermina trocou os fritos pelos cozidos.

A embaixada é inferior à que D. João V enviou a Clemente XI mas D. Aníbal I não é esbanjador nem procura de Bento XVI o título de «Senhor Fidelíssimo», ainda que o mereça no que se refere à fé e à constância matrimonial.

O reino anda aturdido com a honra da canonização do taumaturgo com provas dadas na especialidade de oftalmologia. É pena continuar morto, mas sendo uma ofensa para a razão é um orgulho para a fé que continue a pelejar, agora no ramo dos milagres.

Falta D. Guilhermina na peregrinação, para contar aos fidalgos como, perante a dor da queimadura, não se lembrou de Gil Vicente com palavras que, não sendo adequadas à salvação da alma, aliviam a dor, e se lembrou de evocar o bem-aventurado Condestável que o clero autóctone ansiava canonizar desde os tempos da Cruzada Nun’ Álvares.

Os ilustres peregrinos não vão a Roma bajular o Papa, vão agradecer a deus a cura do olho esquerdo da D. Guilhermina de Jesus.

Quando a luzidia embaixada regressar à Pátria, com os joelhos doridos das genuflexões, a pituitária irritada do incenso e os corpos enegrecidos pelo fumo das velas, espera-se que o país rasteje de júbilo por mais uma farsa pífia e tantas genuflexões pias.

5 de Abril, 2009 Ricardo Alves

O regresso (oportunista?) do Condestável

Quem conhece a História da 1ª República e do papel que desempenhou no apressar do seu final uma organização chamada «Cruzada Nacional Nuno Álvares Pereira», não pode deixar de ficar incomodado por ver na «Comissão de Honra» da «Canonização» desse cavaleiro medieval o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o ministro dos Negócios Estrangeiros e o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.

Evidentemente, não se questiona o direito individual a acreditar em intercessões de além-túmulo seja de quem for, mesmo com a finalidade comezinha de curar uma queimadela de óleo de fritar peixe. Simplesmente, quem ocupa altos cargos de um Estado democrático e laico apenas deveria participar neste género de homenagem, se a consciência a isso o obriga, como cidadão privado e discreto, sob risco de estar a comprometer-se numa manobra que poderá ter aproveitamentos políticos e religiosos perigosos e indesejáveis.

Um Estado laico não patrocina crenças nem religiões; não promove igrejas nem cultos. A «canonização» de Nuno Álvares Pereira deveria ser um mero assunto privado entre os crentes católicos e a sua igreja, que decidiu certificá-lo com poderes de curandeiro post mortem, na curiosa data de 26 de Abril. Que algumas das principais figuras do Estado endossem esta campanha clerical, a pouco mais de um ano do centenário da implantação da República, demonstra que não têm memória histórica da exploração nacionalista que o Estado Novo fez desta figura, e que não compreendem que a laicidade não é a mera separação entre Estado e igreja.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

11 de Fevereiro, 2009 Ricardo Alves

Arredai!

Desde o Concílio Vaticano 2º que a ICAR aceita a laicidade no sentido da autonomia «administrativa» do Estado perante as igrejas (mas só porque insistimos muito, mesmo muito, durante séculos) mas, todavia, continua sem aceitar a laicidade no sentido da autonomia ética da sociedade perante a cultura cristã. Os mais mediáticos dos conflitos contemporâneos entre política e religião, da legalização da IVG aos casamentos entre homossexuais, têm aqui a sua origem.

A laicidade, ao contrário do que argumentam equivocadamente os clericais, não é simples «autonomia administrativa», ou seja, separação entre registo civil e ficheiros canónicos, entre poder democrático e cargos de nomeação do Vaticano, entre receitas públicas e remunerações do clero. É também a distinção entre regras legais para todos, e conceitos morais para os que são religiosos.

A ICAR tem todo o direito de não casar homossexuais. Tem também o direito de os excomungar. Já duvido de que tenha o direito de despedir alguém a quem pague salário – por esse alguém ser homossexual.

A laicidade garante a liberdade de expressão para todos. Até para os que gostariam de a restringir, ou que a ela se opuseram historicamente. A ICAR pode portanto bradar contra os casamentos entre homens, ou entre mulheres, ou entre pessoas estéreis. Está no seu direito. Como nós estamos no nosso ao criticar os argumentos apresentados e a sua fundamentação.  Por exemplo, que «detrimento» resulta para as famílias existentes do reconhecer-se novos tipos (legais) de família? Ou qual será o prejuízo para a «crise» de uma medida legislativa que cria novas famílias? Ou ainda, porque será a «família homossexual» mais «antropologicamente errada» do que o celibato? Finalmente, será que não compreendem que o que se deve mesmo dizer às novas gerações é que «sejam o que quiserem»?

Evidentemente, tudo isto me parece pouco relevante. Apesar de se anunciarem indicações de voto especificando os partidos políticos «catolicamente correctos», já vai sendo tempo de ignorar a ICAR nestes debates. Nos dois referendos sobre a IVG, mostraram a sua inigualável capacidade de envenenar o debate público com panfletos terroristas, imagens sanguinolentas, manipulação de crianças, abuso das plataformas públicas que lhes oferecem (geralmente, para outras finalidades) e, não esquecer, as atoardas sobre as famigeradas «leis naturais». Querem fazê-lo em eleições legislativas? Se sim, convém recordar que há limites legais às intervenções de sacerdotes em campanhas eleitorais. Mas o melhor é mesmo arredarem, porque já não há pachorra.

A terminar, não posso deixar de registar como uma novidade positiva as declarações de dirigentes do PS sobre este assunto. Não vi a mesma clareza aquando dos referendos à IVG. Só falta que Pedro Silva Pereira diga que a ICAR não deve meter o bedelho nesta questão. Mas não deve tardar, penso eu…

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

6 de Fevereiro, 2009 Carlos Esperança

Cala-te, cardeal!

Na sequência de um acidente de automóvel, a italiana Eluana Engalo encontra-se há 17 anos descerebrada, ligada à máquina e alimentada por sondas. Está, desde então, em estado vegetativo.

Em boa verdade esta mulher morreu aos 21 anos nesse trágico acidente. Não admira que o pai tenha pedido aos tribunais autorização para lhe ser desligada a máquina que artificialmente mantém o corpo inerte a respirar.

O tribunal compreendeu o drama inútil do pai, obrigado a velar um cadáver que respira, durante 17 anos, e autorizou que desligassem a máquina. O mínimo que se esperaria de pessoas civilizadas era o silêncio e o respeito pelo drama de quem pediu para lhe deixarem enterrar a filha.

Uma sociedade liberta de sectarismos ideológicos deve decidir quem e como libertar alguém da condenação à vida e deve, sobretudo, respeitar a vontade do próprio ou, neste caso, de quem ama e tem o direito de decidir por quem não o pode fazer.

Do Vaticano veio um grito de intolerância através do cardeal Losano Barragan: «Parem essa mão assassina» – anatematizando a decisão de desligar a máquina. Quem é pai não pode deixar de gritar:

– Cala-te, cardeal!

1 de Fevereiro, 2009 Carlos Esperança

Se for verdadeira esta notícia sobre o projecto de lei acerca da assistência religiosa nas Forças Armadas, trata-se de um injustificável atentado à separação entre o Estado e as igrejas.

Um Estado laico que seja respeitador da liberdade religiosa, como é o nosso, pode e deve facultar e facilitar aos interessados e às igrejas a assistência religiosa nas instituições públicas (desde os hospitais às forças armadas); mas não lhe cabe assumir missões religiosas, não podendo oficializar aquela assistência, que deve ser exclusiva responsabilidade e encargo das igrejas.

A nomeação oficial dos “capelães”, a sua graduação em oficiais, a sua remuneração pelo Estado, como se fossem servidores públicos –, nada disso é congruente com os requisitos da laicidade.

Vital Moreira in Causa Nossa

28 de Janeiro, 2009 Ricardo Alves

Ideias e pessoas

Quem escreve sobre religião tem que explicar ciclicamente que criticar ideias não é atacar pessoas.

Em princípio, deveria ser bem simples: dizer que «Deus» não existe, que as «aparições» de Fátima são um disparate ou que o Islão é liberticida não deveria ofender ninguém. Quem crê em «Deus» não é automaticamente um tolo, quem acredita nas «aparições» de Fátima não tem que ser um cretino, e ser islâmico não acarreta ser um fascista ou um fanático bombista.

Infelizmente, muitos religiosos sentem-se pessoalmente ofendidos quando as suas ideias são criticadas. E se compreendo que a religião é importante para quem é profundamente crente, tenho dificuldade em entender que queiram resguardar da crítica o que não é mais do que ideias. Eu não me sinto ofendido quando me dizem que a democracia é um desastre, que a laicidade é opressão ou que a ciência é perigosa. Não concordo, e respondo. Porque todos erramos. Quando defendo a democracia, a laicidade ou a ciência, posso errar ou não me explicar bem. E os argumentos só melhoram quando criticados.

Ou será que a religião é tão frágil que não sobrevive à crítica?

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

24 de Dezembro, 2008 Carlos Esperança

Laicidade ameaçada

«O ministro da Administração Interna, na cerimónia de inauguração da carreira de tiro em Ponte de Lima, pediu a bênção para aquela estrutura […] A nova carreira de tiro não teve bênção mas o Vigário Geral da Diocese, evocando a Sagrada Escritura, elevou uma súplica a Deus para que a paz reine entre os homens e que das armas se possam fazer instrumentos de desenvolvimento da humanidade.» [Diário do Minho]

Ver notícia aqui.