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Categoria: Laicidade

31 de Julho, 2014 Carlos Esperança

A burqa, o niqab e a laicidade

É surpreendente que cidade a cidade, país a país, a tolerante Europa comece a proibir os símbolos identitários que atingem sobretudo as comunidades muçulmanas. Várias vezes discuti o assunto, quando ainda não tinha o atual grau de premência, com o meu velho  condiscípulo do liceu da Guarda, Vital Moreira.

Os seus argumentos contra a proibição tinham o brilho da inteligência e da convicção e jamais me persuadiram, apesar de ambos defendermos a laicidade como exigência da democracia.

É difícil convencer alguém de que os crentes podem ser indulgentes, mas não o são as crenças, e de que há evidente afinidade entre crenças e ação. Os muçulmanos podem ser pacíficos, e geralmente são, mas não o são o livro que os intoxica nem os pregadores que os fanatizam.

Os cristãos já não assam judeus mas, quando frequentei a catequese, odiava-os. Muitas décadas depois de pensar que deus foi uma invenção dos homens e um instrumento do poder ao serviço das classes dominantes, aprendi que os quatro Evangelhos (Marcos, Lucas, Mateus e João) e os Atos dos Apóstolos têm cerca de 450 versículos abertamente antissemitas.

O sionismo não existiria se não existisse a crença no Armagedão e a demência da fé que devora os judeus de trancinhas que se esforçam por derrubar o Muros da Lamentações à cabeçada e se julgam o povo eleito com uma escritura notarial celeste que lhes outorga a Palestina.

Quanto ao Corão e aos horrores que Alá reserva aos infiéis basta a leitura na diagonal para nos apercebermos do fascismo islâmico contido nos versículos que são debitados nas pregações das mesquitas e recitados nas madraças. Não convém desconhecer que mais de cento e cinquenta versículos do Corão são dedicados à jihad.

As Cruzadas, a Inquisição, a Evangelização, o sionismo e o terrorismo islâmico seriam improváveis sem o livro que Saramago designou como “manual dos maus costumes”. O facto de os cristãos se comportarem hoje com civilidade deve-se à repressão política sobre o clero, desde o Iluminismo, e não à bondade dos textos sagrados.
Em nome da liberdade defendo a interdição da burka e do niqab, sinais de submissão da mulher e instrumento de provocação contra a sociedade laica. Por cada mulher que quer usar livremente tais adereços há milhares que são obrigadas.

Provem-me que a Tora, a Bíblia e o Corão só defendem o bem, apesar de os intérpretes diplomados que insistem em convencer-nos, quando lhes convém, de que tais livros não dizem o que lá está.

Qualquer religião, filosofia ou ideologia política que despreze a igualdade entre homens e mulheres, não merece a minha consideração. E nenhuma religião respeita.

Soube-se hoje que o vice-primeiro ministro da Turquia disse que as “Mulheres não devem rir em público”.  O processo de reislamização em curso, impulsionado pelo PM Erdogan, a quem a Europa e EUA insistem em apelidar de «muçulmano moderado», vai a caminho da sharia.

28 de Julho, 2014 Carlos Esperança

DA LIBERDADE RELIGIOSA – O CASO DA PROCURADORA ADVENTISTA

Por

João Pedro Moura

Uma Procuradora do Ministério Público, adventista, reclamava há anos contra o seu trabalho profissional, ao sábado, que contrariava um princípio da sua confissão religiosa.
A sua reclamação não foi deferida pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), mas foi-o pelo Tribunal Constitucional, recentemente, como noticiou a imprensa.

Sumariamente, e sem entrar em pormenores, até porque desconheço os acórdãos, mas baseando-me no que li na imprensa, o STA indeferiu o seu pedido, alegando que os procuradores não têm flexibilidade laboral e que, como tal, a liberdade religiosa não poderia prevalecer sobre os deveres funcionais.

O TC contra-argumentou, alegando que os procuradores têm um horário flexível e por turnos, deduzindo que, assim, não haveria razão para declinar o pedido de dispensa de trabalho ao sábado.
Mais disse o TC que a liberdade religiosa não era um princípio abstrato e que, para ser exercida, havia que dar condições aos religionários e suas pretensões.

Todavia, o TC não tem razão, como eu irei fundamentar, seguidamente:

1- O exercício da liberdade religiosa jamais poderá colidir com o exercício profissional, sob pena de se prejudicar uma profissão, isto é, sob pena de se prejudicar os beneficiários de tal profissão e/ou os colegas da mesma profissão ou serviço.
A ser alguém prejudicado, e o prejuízo social é o melhor indicador de razões, então que seja o religionário, pois que só se prejudica a ele (e que prejuízo?!) e não as outras pessoas usufrutuárias do serviço ou os eventuais colegas do religionário reclamante de benesse profissional.

2- Assim, num conjunto de procuradores afetos a determinada comarca ou serviço judicial, se houver um adventista, ou mesmo 2 ou 3 ou mais, reclamadores do privilégio de folga religiosa ao sábado e a serem satisfeitos por legislação própria, irá levar à sobrecarga dos outros procuradores e fazê-los trabalhar mais ao sábado, numa regra decerto constrangente para estes últimos, pois que quereriam continuar a trabalhar ao sábado quando fosse o turno deles e não quando fosse o turno deles mais o dos religionários privilegiados…

3- Imaginemos agora uma sociedade onde se praticasse o conceito de liberdade religiosa, à moda do TC, em que um conjunto de muçulmanos reclamavam para não trabalharem à sexta-feira…
Tínhamos, por exemplo, um professor islâmico isento à sexta-feira, a que acrescia a folga normal ao sábado e ao domingo…
…Ou um procurador, militar, polícia, bombeiro, enfermeiro, médico, islâmicos, a reclamarem por folga à sexta… e a obrigar, assim, os outros, não-muçulmanos, a trabalharem mais nesse dia…

4- Imaginemos esse conjunto de profissionais, agora do quadrante judaico e daquelas igrejas cristãs fundamentalistas, tal como a adventista, todos a pedirem isenção de trabalho ao sábado, prejudicando o outro conjunto de colegas, que se obrigariam a trabalhar mais nesse dia, contra a sua vontade…

5- Imaginemos uma igreja, defensora contumaz de folga ao domingo, e que congregasse a maioria duma população sequaz, pessoas essas recusando-se a trabalhar ao domingo!…
Seria interessante chegar ao domingo e ver tudo fechado: cafés, restaurantes, bombeiros, polícias, militares, jogos desportivos, serviços de saúde, lojas comerciais, tudo…
… Ou estarem abertos alguns serviços ou algumas lojas, em modo de défice de pessoal…

6- Ao que chegaria o conceito de que a liberdade religiosa passaria pela sobrecarga de trabalho dos outros, em certos dias, para que suas excelências, os religionários fanáticos e contumazes, nos seus preceitos religiosos, tivessem o privilégio de folga, mas os outros não, mesmo que estes quisessem, sem presunção religiosa, continuar a folgar em modo normal…

7- Aqui há tempos, foi uma candidata a advogada, também adventista, que se recusou a fazer uma prova ao sábado. Isto é, para que sua excelência tivesse a benesse e o privilégio de não fazer tal prova ao sábado, ela e os outros teriam que fazer de segunda a sexta, ou então, ter-se-ia que fazer uma prova específica para sua excelência, a adventista, noutro dia, obrigando os fazedores de provas a trabalhos redobrados, que certamente não gostariam de fazer…

8- Para estes males, existe a laicidade, que é o reconhecimento da religiosidade, sem outorga de privilégio a ninguém, pois que o privilégio de uns seria o ónus doutros.
As pessoas deverão ter liberdade religiosa, desde que esta não colida com o funcionamento normal dos serviços e da própria sociedade.
A não ser assim, está-se a colocar a liberdade religiosa acima do restante direito, beneficiando uns e prejudicando outros.

9- A base mínima do entendimento social e fundamento da agregação de pessoas é o direito que as une a todas e que passa pelo funcionamento de serviços comuns, como saúde, educação, habitação, trabalho, lazer, etc.
O direito e a consequente respeitabilidade cívica está aí!
A liberdade religiosa, concomitantemente, é uma parte do direito, que se subpõe ao direito geral e às liberdades gerais, não podendo, portanto, subjugá-las.

6 de Julho, 2014 Carlos Esperança

Em nome da liberdade (3)

Sinto-me um nano-micro-mini intelectual, espécie de especialista em coisa nenhuma, o opinante que faz suposições sobre realidades variadas sem aprofundar uma única. Não me demito de opinar, de me interrogar e de desafiar os outros para me acompanharem nas inquietações, dúvidas e enganos. Cada um de nós só se levanta se tiver caído antes e, em cada tombo, aprender a erguer-se de novo.

Por cada preconceito que enjeito adoto outro, por cada amarra de que me liberto aparece uma nova corrente que me prende. A liberdade é o caminho estreito, entre vias sinuosas de vários constrangimentos, que não poemos desistir de procurar e defender.

Ameaçam a liberdade a fome, a sede, o medo e o preconceito, mas a grande ameaça é a violência que se lhes junta, o sectarismo de quem se julga detentor de verdades únicas, a vindicta de quem vê nos adversários inimigos e nos livres-pensadores réprobos a abater.

As religiões são frequentemente detonadoras do ódio, fautoras de guerras, guardiãs dos velhos preconceitos e inimigas da liberdade, apesar da bondade de muitos crentes e dos golpes de rins dos exegetas.

Todas as religiões consideram falsas as outras e o Deus de cada uma delas. No fundo todos somos ateus porque quem se reclama ateu só considera falsa mais uma religião e um Deus mais. Sem recorrer no conceito grego de ateísmo, veneração de deuses de uma cidade diferente, hoje todos somos ateus em relação a Zeus, Amon, Júpiter ou boi Ápis.

A crença ou a descrença não fazem as pessoas boas ou más. Há exemplos deploráveis de umas e de outras. Trágico é pretender que o que foi escrito na Idade do Bronze, por homens de tribos patriarcais, seja a palavra de um Deus que demorou muitas centenas de milhares de anos a revelar-se e apenas soprou o barro quando o género humano se reproduzia há muito pelo método popular ainda hoje em uso.

Um Deus feito à imagem e semelhança dos homens, dos homens de tempos onde a luta assegurava a sobrevivência, imbuíram os livros sagrados do espírito violento, xenófobo, vingativo, misógino e homofóbico, incompatível com a modernidade.

Não vem mal ao mundo que as pessoas substituam a reflexão e o espírito crítico pela fé, direito que o Estado moderno deve garantir, mas torna-se intolerável o carácter prosélito que devora os crentes, a demente obsessão de impor aos outros o que cada um julga ser a verdade divina, perpétua e imutável, pela violência, quando necessária.

Um Deus que se preocupa com as normas de conduta, da alimentação ao vestuário, das orações aos jejuns, da liturgia à sexualidade, sobretudo com a última, especialmente a das mulheres, não pode andar à solta, sem que o Estado refreie os guardiões e defenda da sua ira quem prefira, ao risco perpétuo de perder a alma, a fugaz apoteose da vida.

A laicidade é a vacina que defende a Humanidade dos confrontos religiosos na disputa do mercado da fé. A globalização ameaça reduzir a um único os credos em confronto.

5 de Julho, 2014 Carlos Esperança

Em nome da liberdade (2)

Talvez não possamos referir-nos à liberdade e à cultura, devendo antes falar de culturas e liberdades, pelo respeito que é devido à diversidade e idiossincrasias no Planeta, mas não podemos negar os caminhos que a Humanidade percorreu ao longo dos séculos e os avanços nos direitos humanos cuja Declaração Universal só foi adotada, pelas Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

O que não podemos aceitar, em nome de uma cultura ou da tradição, é a tortura, a pena de morte, o esclavagismo, a discriminação de género ou mutilações rituais, quer se trate da excisão do clitóris, de amputações ou de crucificações pias, voluntárias ou não.

Há valores civilizacionais que limitam as liberdades e, no entanto, devem ser impostos. Incoerência? – Talvez. Julgue-os cada um, segundo a sua cultura e os seus preconceitos.

Vacinas, instrução e normas de higiene devem ser obrigatórias, tal como a igualdade de todos, perante a lei. Não podemos, em nome do multiculturalismo, aceitar a punição de quem renuncie a uma religião e opte por outra ou nenhuma. Não equiparamos a fé e a razão, a civilização e a barbárie, a tradição e os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este código, tão difícil de aceitar, devia ser de cumprimento universal e obrigatório, sujeitando a sansões quando violado.

Chamem arrogância e prepotência ao comportamento dos países civilizados que exigem fidelidade às normas de conduta que a modernidade e o cosmopolitismo impõem. Pais que vendem filhas, na Europa acabam na prisão e em outras partes do Mundo exercem um direito. Será legítimo coartar a liberdade de venderem as filhas? Claro que é, embora não entendam que, estando esse direito consagrado nos livros sagrados, lhes possa ser vedado por homens ímpios e vagamente jacobinos.

Em Salamanca, na velha Universidade, um general franquista, Millán Astray, mutilado no corpo e no espírito, gritou “morra a inteligência, viva a morte!”, e o reitor, católico e conservador, culto e humanista, Miguel de Unamuno, retorquiu, corajoso: «Não! Viva a inteligência! Morram os intelectuais ruins!», em homenagem à vida e à inteligência cuja defesa tomou perante a beata mulher de Franco, o execrável e acéfalo futuro ministro da Propaganda do genocida e uma infindável plateia de fascistas onde não faltava o bispo.

Foi em nome da liberdade que Unamuno, grande filósofo e intelectual, continuou: «Este é o templo da inteligência e eu sou o seu sumo sacerdote! Vós estais profanando este recinto sagrado. Tenho sido sempre, digam o que disserem, um profeta do meu próprio país. Vencereis porque tendes de sobra a força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir e, para persuadir, falta-vos algo que não tendes: a razão e o direito. Mas parece-me inútil refletir no que pensais, em Espanha».

Os militares fascistas sacaram das pistolas e a vida de Unamuno foi salva pelo braço de
Carmen Polo, a mulher do genocida Francisco Franco, enquanto Millán Astray gritava, “Tire o braço da senhora!”

Nesse mesmo dia, o Conselho Municipal decretou a expulsão de Unamuno.

Viva a vida! – repito eu –, em apoteose a um bem único e irrepetível.

4 de Julho, 2014 Carlos Esperança

Em nome da liberdade

As suscetibilidades pias são um episódio na escalada contra a laicidade. A substituição do direito divino pela soberania popular foi um passo para a democracia e uma grande deceção para o clero.

A liberdade é um bem escasso. Limitada pela opressão dos Estados, tolhida pelo medo individual e fanatismo religioso, precisa de quem a defenda contra tudo e contra todos.

A publicação de caricaturas de Maomé desatou, há anos, a ira do Islão e os desacatos, ameaças e violência do fascismo islâmico. Os cristão opor-se-ão ao escárnio do calvário de Cristo ou da virgindade de Maria, e a liberdade de expressão regressará ao escrutínio dos clérigos que ao longo dos séculos oprimiram a Humanidade.

Recordamo-nos do trauma das perseguições da inquisição, da celeuma do preservativo colocado em sítio menos óbvio – o nariz de João Paulo II –, pelo cartoonista António e do assassínio de um médico por um pastor evangélico, na sequência da prática de um aborto, nos EUA.

Temos o direito de caricaturar Deus, afirmou então, em França, o jornal France Soir, após a publicação dos desenhos de Maomé: «OUI, on a le droit de caricaturer Dieu».

Se nos deixarmos tolher pelo medo, não tarda que o poder seja de novo confiscado pelo clero, que sempre reivindicou procuração divina, e que sejam postos em causa direitos, liberdades e garantias arduamente conquistados ao longo dos séculos.

Dar publicidade aos testemunhos de irreverência, humor e heresia não é provocação aos crentes, é um ato de cidadania em defesa da liberdade de criação, uma ousadia contra a chantagem, uma advertência de quem resiste ao medo, à violência e às bombas.

Não faltarão cobardes a dizer que «deve haver um certo cuidado» e que «talvez não seja sensato». A pusilanimidade não conhece limites.

Defender o direito à blasfémia é um ato de solidariedade para com criadores artísticos, órgãos de comunicação social que os acolhem e países que não se vergam à histeria da fé e ao fascismo religioso. É também uma forma de homenagear Salman Rushdie cuja condenação à morte teve do Vaticano, do arcebispo de Cantuária e do Rabino Supremo de Israel uma posição favorável ao aiatola Khomeini quando, na sua piedosa demência, o condenou à morte, pelo abominável crime de…ter escrito um livro.

Se os crentes, de qualquer fé, por mais idiota que seja, entenderem caricaturar os ateus, apelidá-los de burros, idiotas e patetas, estão no seu direito. Todos temos de aprender a tolerar o direito de opinião dos que discordam de nós, por mais injustos e provocadores que sejam. O direito de expressão tem de estar acima do direito à repressão.

Quando o grotesco Califado com que gerações de jihadistas sonharam acaba de nascer entre a Síria e o Iraque, e os facínoras da fé instauram o Estado islâmico nos territórios que controlam, não há caricaturas e insultos que bastem, urge repor a salubridade nos territórios que as mesquitas e madraças ameaçam tornar insalubres. Por todos os meios.

24 de Junho, 2014 Carlos Esperança

Resposta a um inquérito académico

Qual julga ser o impacto do 25 de abril no processo de estabelecimento da liberdade religiosa em Portugal?

Resposta – Antes do 25 de abril de 1974 não havia liberdade em Portugal. Vivia-se em ditadura e a própria Igreja católica, cúmplice do regime, silenciosa perante o exílio do bispo do Porto, António Ferreira Gomes, não gozava de total liberdade. A Concordata obrigava a que a nomeação de bispos fosse submetida ao Governo que podia recusar os nomes propostos.

Nas colónias, graças ao Acordo Missionário, os bispos e padres católicos eram uma espécie de funcionários do Estado. Os bispos eram equiparados em vencimento e categoria a Governadores de Distrito. Essa situação, além da repressão policial e da sintonia entre o poder político e religioso, tornava-os reféns felizes da ditadura.

Nas escolas primárias as aulas de Religião católica eram obrigatórias, tal como nos liceus, até ao 5.º ano, isto é, a doutrinação católica era obrigatória durante 9 anos, apesar do ensino ser obrigatório apenas durante 4, e, durante muitos anos da ditadura, apenas 3 anos de escolaridade para as raparigas.

O judaísmo podia ter mesquitas mas era-lhes proibido abrir portas para a rua. O acesso fazia-se por uma porta que dava para um quintal na única que conheci, em Lisboa.
As restantes igrejas cristãs eram discriminadas e o acesso às escolas do Magistério Primário ou às Escolas de Enfermagem era, na prática, impedido aos seus membros. O atestado de batismo católico e o atestado de bom comportamento passado pelo pároco católico era «documento» obrigatório em algumas escolas de Enfermagem.

Os privilégios da Igreja católica eram grandes. O casamento canónico era quase obrigatório e produzia efeitos civis, impossibilitando o divórcio.

As restantes Igrejas, mesmo as protestantes, eram objeto de constrangimentos sociais e de vigilância policial pela sinistra polícia política –a PIDE. Em suma, não havia liberdade religiosa em Portugal, havia conivência entre Salazar e o seu amigo e ex-colega cardeal Cerejeira na liquidação de todas as liberdades.

O 25 de abril de 1974, ao desmantelar o aparelho repressivo da ditadura, permitiu a explosão de várias confissões religiosas sem qualquer perseguição ou discriminação como viria a ser consagrado na Constituição da República, cuja separação do Estado e das Igrejas está consagrada e não pode ser objeto de revisão.

3 de Junho, 2014 Carlos Esperança

Espanha – o render da guarda do rei-pai e da rainha-mãe

Felipe de Borbón e a sua consorte Letizia Ortiz serão em breve, respetivamente o rei e a rainha de Espanha. Talvez os últimos, apesar da honrosa linhagem da futura rainha.

A abdicação do rei-pai e, por inerência, a passagem a rainha-mãe da indulgente esposa, transmite por herança uterina ao filho varão o fausto e o poder simbólico que, num país laico, vai passar por uma catedral com borrifos de água benta de um hissope brandido vigorosamente por um cardeal da Igreja católica.

Franco, que se cumpliciou com o Opus Dei, que o iluminou, deixou à Espanha o regime que nunca foi sufragado, e que terá de expirar de uma só vez, porque as monarquias não estão sujeitas a votações periódicas e democráticas.

O direito divino é o anacronismo que a inércia e as cumplicidades suspeitas perpetuam. Talvez por isso, hoje , em Madrid, e um pouco por toda a Espanha, desfraldaram-se bandeiras da República. Não foi a semente a germinar, foi o fruto maduro de quem não se conforma com poderes não escrutinados, de quem não distingue os glúteos de uma rainha das nádegas de uma camponesa, de quem não vê na anatomia de um útero real as diferenças do órgão em que qualquer mãe gera um filho.

Viva a República.

22 de Maio, 2014 David Ferreira

A questão religiosa

Retirado de: “Almanaque Republicano” (http://networkedblogs.com/X58gQ)

JOSÉ D’ARRIAGA. “A Questão Religiosa”, Livraria de Alfredo Barbosa de Pinho Lousada (Largo dos Loyos, 50), Porto 1905, XIV+106 p.

Do Prefácio do autor, que, em vésperas da queda da monarquia, alerta para o verdadeiro inimigo da inteligência e do progresso:

« … Combatendo a reacção religiosa, não queremos attentar contra as crenças dos que a promovem e sustentam, mas trazer a paz e harmonia a todas as seitas por meio da tolerancia, que constitue a base fundamental das sociedades contemporaneas.

Não é este opusculo um grito de guerra, como o são as obras publicadas pelas associações catholicas: é mais um brado a favor da tranquillidade dos povos, tão perturbada n’estes ultimos tempos pela reacção religiosa […].

A campanha das associações catholicas consiste em guerrear nos paizes catholicos todas as religiões estranhas, oppondo-se ao livre exercicio dos seus cultos, e pedindo aos governos medidas de rigor contra ellas. Pretende manter em nossos dias os antigos fóros e privilegios da igreja catholica, os quaes foram origem do antigo regimen absoluto, e da intolerancia religiosa, que produziu os autos de fé, os carceres da Inquisição e cruzadas expurgatorias, etc.

A mesma reacção religiosa préga o exterminio dos que não pensam com a igreja catholica, dos que não acceitam seus dogmas e preceitos, dos livres pensadores, e de todos os que sahiram do gremio catholico. […]»

9 de Maio, 2014 Carlos Esperança

Algumas considerações sobre a Concordata de 2004

A cerimónia de despedida do núncio apostólico em Lisboa, em 2002, deixou as piores apreensões sobre os bastidores das negociações da Concordata.

O então MNE, Martins da Cruz, prometeu aí o que não podia nem devia –, o reforço da influência da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no domínio «do ensino, da assistência social, da cultura, nos múltiplos domínios em que nos habituámos a ver uma Igreja ativa e empenhada em contribuir para a solução de problemas nacionais».

É sempre através das redes de ensino e socorro social (lares, hospitais, escolas, creches, templos) que as Igrejas se infiltram para controlar o quotidiano dos cidadãos. A tragédia dos países islâmicos, onde a religião tem hoje a mesma influência que a ICAR tinha na Europa na Idade Média, devia fazer refletir os crentes e os não crentes. E, com total impunidade, afirmou ainda: «Como católico considero um privilégio ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros no momento desta importante negociação», como se a religião se devesse explicitar, num Estado laico.

O país livrou-se do ministro mas não se livrou da Concordata. A experiência de 1940 devia ter-nos vacinado contra a reincidência. A própria ICAR, que sofreu o ónus de se tornar refém da ditadura fascista, associada à repressão de meio século, devia evitar a tentação de reivindicar privilégios embora ninguém, que deles beneficie, admita tê-los.

A atual Concordata foi negociada à sorrelfa e foi difícil aceder-lhe, durante alguns dias, depois de assinada. Não tendo sido possível discutir o texto que, depois de ratificado, se tornou direito interno português, diretamente aplicável, é indispensável um movimento da opinião pública para a sua denúncia e um Governo que sobreponha os interesses do Estado laico às convicções religiosas dos seus membros.

A religião não se impõe por tratados. A propagação da fé não se confia aos Estados. O mundo islâmico é o exemplo trágico. A Concordata não pode converter-se num tratado de Tordesilhas que submeta à órbita do Vaticano um espaço a que a Cúria trace o meridiano. A subserviência à tiara não augura nada de bom para um futuro que se quer plural e essa revisão ficou à mercê do promíscuo contubérnio entre ministros de Deus e de Durão Barroso. O resultado está aí.

A ICAR nunca sofreu qualquer limitação ao exercício do múnus nestes quarenta anos de democracia. Que mais pretende ou deseja proibir? A Concordata fere princípios de universalidade e de igualdade de direitos e de obrigações, que a lei geral estabelece e acautela; opõe-se à lei geral na medida em que a ICAR exige tratamento especial naquilo que lhe diz respeito; e enuncia deveres religiosos como se o princípio da separação não impusesse ao Estado total alheamento em relação a esses «deveres».

Por ser bizarro, cita-se o n.º 2 do Art.º 15: «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vinculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio».

Se não fosse ridículo, o dever de reciprocidade, imporia um n.º 3 com esta redação: «A República Portuguesa, reafirmando a doutrina do Estado sobre o casamento civil, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio civil o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade canónica de requerer o matrimónio religioso».

Esta Concordata ofende a soberania portuguesa, é dispensável e, talvez, só o facto de ter sido assinada entre Durão Barroso e o cardeal Angelo Sodano, apenas duas pessoas, tenha evitado a primeira frase da de 1940: «Em nome da Santíssima Trindade».