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Categoria: Política

5 de Abril, 2025 Onofre Varela

A importância do Humor nas nossas miseráveis vidas…

«Se o homem não compreende a graça, está perdido! Deixa de ser verdadeiramente inteligente, mesmo que tenha todos os talentos».

Estas palavras do grande escritor russo Anton Tchekov são frequentemente citadas como prova de que o sentido de humor é um elemento importante da inteligência.

Quando alguns políticos e religiosos (principalmente estes… de entre outras castas de “gentinha”) se insurgem contra considerações bem humoradas sobre os seus actos cometidos em sociedade, estão a sublinhar a imensa falta que têm da inteligência referida por Tchekov.

Uma das principais funções do humor consiste em garantir-nos a estabilidade psicológica nas situações difíceis. É isto mesmo que se observa hoje com tantas piadas nas redes sociais referindo a actuação política do perigoso, patético, piadético, bobo, ignorante, estulto, estúpido, fátuo, idiota, imbecil, inepto, lerdo, néscio, palerma, parvo e tolo, também reconhecido pelo nome aproximado a um desenho animado de Walt Disney; Donald Trump… à frente da governação da maior potência do mundo, para cuja função usa um minúsculo resquício de massa cinzenta mal amanhada, que foi o que lhe calhou no refugo da sorte do seu nascimento, nivelando-o pelo pensamento mais irracional de líderes tribais mais rascas e fatelas, oriundos de países da profunda África mais selvagem, ou de perdidas ilhas polinésias para lá do cu do mundo!

Para que um caricaturista, cartunista ou sátiro das personalidades públicas, consiga desempenhar o seu papel de crítico social, ele tem de saber apreciar correctamente os acontecimentos… mas, logo a seguir, terá de se desligar deles ou procurar um ponto de observação suficientemente distanciado para não ser maleficamente atingido pelos actos que lhe vão merecer a crítica que escreve ou desenha.

Só assim se consegue reestruturar o sentimento e ultrapassar as emoções desagradáveis, tornando-nos capazes de sorrir com aquilo que, ainda há poucochinho… nos dava vontade de chorar.

Há uma extensa literatura publicada sobre Bernard Shaw, o ilustre autor dramático irlandês, cujo sentido de humor o tornou lendário. Um dos vários casos que lhe são atribuídos, conta assim:

«Um dia, o escritor, então já de idade bastante avançada, foi atirado ao chão por um ciclista demasiado impetuoso. Por felicidade, nada de mais grave aconteceu. Quando o culpado do acidente, confuso, pediu desculpas, Bernard Shaw interrompeu-o: “Você tem realmente pouca sorte. Com um pouco mais de energia, teria entrado na História como o meu assassino».

Poucos são aqueles que saberiam manter o sangue frio em tal situação e debitar um discurso de humor em vez de recorrer à raiva, ao insulto e a recriminações perfeitamente inúteis para aquele acontecimento específico e naquele dado momento.

Portanto, fique-se com esta, prezado(a) leitor(a): uma das funções do sentido de humor consiste em assegurar um estado de espírito equilibrado em situações que, de satisfatório… nada têm!

Não há nada melhor do que aprendermos a rir e nós próprios, em vez de nos considerarmos os mais certos e seguros de tudo quanto é coisa ou é gente neste mundo… ou no outro!… 

30 de Março, 2025 Onofre Varela

Indemnizações da Igreja às vítimas de pedofilia

Leio (em notícia divulgada pelo jornal Público na edição do último Domingo, 30 de Março) que a Igreja não garante indemnizações às vítimas de abuso sexual, perpetrado por sacerdotes católicos, até ao fim do corrente ano de 2025. Informa-se, ainda, que “as comissões de instrução têm sofrido atrasos e só metade das 69 pessoas que pediram indemnizações foi ouvida”… e que a Igreja está aberta a novos pedidos. 

Afigura-se-me estranho que a Igreja se afirme “aberta a novos pedidos” se não consegue resolver os pedidos que já tem em carteira desde que se iniciou o processo da possibilidade de indemnizar as suas vítimas!

Recorde-se que foi em 2013 que o Papa Francisco criou uma comissão especial no sentido de proteger as crianças vítimas de pedofilia por parte do clero. Foram registados casos e feitas denúncias de abusos sexuais em várias partes do mundo, de cuja lista fazem parte países como: Portugal, Brasil, Alemanha, Austrália, Espanha, Bélgica, França, Reino Unido, Irlanda, Canadá e Estados Unidos da América. As investigações não se limitam à Igreja Católica. Também se contam escândalos de abusos sexuais noutras religiões e cultos, como a Convenção Baptista, Igreja Episcopal dos Estados Unidos, Testemunhas de Jeová, Igreja Luterana, Igreja Metodista, Judaísmo Ortodoxo e Ultra-ortodoxo, Islão, várias escolas budistas e tibetanas, grupos de yoga e outros. Como se sabe, até no seio das famílias se contam crimes sexuais cometidos com crianças.

A “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica” iniciou os seus trabalhos em 2022, coordenados pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, investigando casos acontecidos desde 1950, que recomendou à Igreja “o reconhecimento da existência e extensão do problema e o seu compromisso na adequada prevenção futura, nomeadamente através do cumprimento do conceito «tolerância zero» proposto pelo Papa Francisco”.

Gerado com IA.

Esta Comissão Independente cessou funções com a “sensação de dever cumprido, mas também com a ideia certa de que este não é bem um final, porque mesmo tendo sido abertas algumas portas, interessa começar hoje mesmo um novo tempo de abertura em relação ao tema de abusos sexuais de crianças no seu todo”. De entre as vítimas de abusos sexuais pelo clero, confirmaram-se sete suicídios. “Quase metade dos inquiridos nega a existência de consequências físicas, mas 21,6% dos casos reportam-nas. Destes, verifica-se que grande parte tem origem emocional, perturbações de ansiedade e de humor depressivo, implicando alterações do sono, do padrão alimentar e da imagem do corpo e da vivência da própria sexualidade”.

Catarina Vasconcelos, membro da Comissão Independente, declarou que “não foi fácil escutar, registar e ler os relatos das vítimas”. Estima-se que 4303 crianças foram alvo de abusos sexuais na Igreja, para além das 512 que testemunharam, o que faz um total de 4815. Destas, 77% dos abusadores eram padres. Após ser extinta a Comissão Independente, a responsabilidade na continuação dos estudos sobre a pedofilia na Igreja e suas consequências, passou para a própria Igreja que, para o efeito, criou o Grupo VITA em 26 de Abril de 2023. É a partir da actuação desta nova organização (que por trás de si tem a Igreja Católica) que se espera a resolução da política de indemnizações… mas não se vislumbra o fim!

Será que ela existe para branquear os crimes sexuais da Igreja, encobrindo-os com a névoa do esquecimento?!… Esta organização não deveria de, obrigatoriamente, ser independente da Igreja?

22 de Março, 2025 Onofre Varela

«Onde estava Deus?»

O tempo que tem feito, com estragos e mortes em vários pontos do globo, lembrou-me que perante tal infortúnio há quem se pergunte: “Onde estava Deus, que permitiu tão nefasto acontecimento? Porque não evitou tal desastre se, afinal, ele tudo sabe e pode?”

São perguntas lícitas que qualquer crente pode fazer, mas não há respostas para elas. A pergunta só é formulada por quem crê, na convicção de a divindade ser real para além dos seus pensamentos. Na verdade Deus não podia estar no local do acidente, da catástrofe natural ou do crime, porque como ideia que é, só se encontra dentro da cabeça de quem nele crê. Fora da cabeça do crente não há Deus em lado algum. 

Penso que esta pergunta trágica do crente que se sente frustrado por não ver a intervenção divina naquilo em que, segundo o seu entendimento, deveria intervir, aconteceu aos judeus na segunda metade da década de 1940. Por essa altura o pensamento filosófico foi abalado por duas realidades brutais: duas guerras tinham preocupado o mundo, e a segunda delas carregava o peso do holocausto judeu, promovido pela Alemanha Nazi, mais o trágico fim do Japão no teatro de guerra, com o lançamento de duas bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, pelos EUA.

Quando os soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres, era o que restava dos prisioneiros judeus. O general Eisenhower fez questão de ver tudo com os seus próprios olhos e recomendou a quem tivesse máquinas fotográficas que registasse o maior número possível de imagens, pois haveria de surgir um dia em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam (premonitório!). 

Gerada com IA

Passado o natural estupor provocado pelo conhecimento das atrocidades cometidas na guerra, a realidade da condição humana, no contexto político, social e religioso da época, foi alvo de profundas reflexões que tiveram eco na década seguinte, prolongando-se para a de 1960, ultrapassando-a, até. A religião, como refúgio das almas, não podia, naturalmente, estar ausente dessas reflexões que acabaram por promover mudanças de atitudes. 

Não era possível explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos, nem eliminar a dor das vítimas. E os religiosos mais directamente atingidos pela tragédia da guerra sentiam legitimidade para perguntar: “Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!” 

Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira… mas tais perguntas não têm razão de ser! Elas não consideraram a História, a sociedade, nem a naturalidade das coisas naturais. São perguntas sem nexo, ao nível da mitologia que as provoca… logo, são irrespondíveis porque também são “ininterrogáveis” por uma mente esclarecida! 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) OV

16 de Março, 2025 Onofre Varela

Humor e Fé (3 e Fim)

Os religiosos que se sentem ofendidos com uma comédia quando ela brinca com elementos da sua crença, devem protestar nos locais próprios que os regimes democráticos têm para esse fim. No caso do atentado brasileiro (comentado no último artigo) duvido do sentimento cristão do grupo de criminosos-nacionalistas, cuja reacção foi atacar à bomba!… Este acto poderia estar relacionado com o regime político de então, que permitia (ou instigava?) a violência, e tinha gente da IURD sentada no Parlamento, sendo que o próprio presidente (Bolsonaro) era afecto a essa seita dita evangélica, e por muitos apontada como criminosa. 

Os extremistas muçulmanos também reagiram com metralha contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015, matando 12 jornalistas-cartunistas, só porque não gostaram de uma crítica a Maomé! Os extremistas religiosos e patrióticos não pensam para além do tabu sacramental de Deus e da Pátria. Não têm sentido de humor, nem nenhum outro sentimento que não seja o da vingança estúpida e violenta. A interpretação que fazem dos textos religiosos é programada pelos gurus das seitas, e não pela sua capacidade de entendimento. 

Euronews

No caso da comédia brasileira, aludindo uma hipotética homossexualidade de Jesus, ressaltam alguns condicionamentos mentais dos crentes que os levaram à irritação, à fúria e ao crime. Desde logo, temos a própria homossexualidade que é condenada por si só e que os crentes rotulam de “pecado”. E depois… não lêem a Bíblia! Dizem ser o seu livro sagrado, mas não fazem a mínima ideia do seu conteúdo! 

No Novo Testamento (João: 13; 21-30) é narrada uma cena incluída no capítulo onde se encontra a célebre frase de Jesus: “Na verdade vos digo que um de vós me há-de trair”. Perante esta denúncia, os seus discípulos olharam-se, perplexos com o que o Mestre lhes dizia. A parte curiosa desta narrativa está nesta frase: “um dos seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus”. 

Quer dizer que Jesus só amava um dos discípulos (ou amava-o mais, ou de modo diferente, do que a todos os outros?), que por acaso era aquele que se encontrava ao seu colo, na posição de reclinado… isto é, deitado… o que presumia alguma intimidade para além da amizade. Simão Pedro fez sinal a esse jovem a quem Jesus amava, para que perguntasse ao Mestre quem era aquele que o haveria de trair. O jovem aproximou a sua boca do rosto de Jesus e perguntou: “Senhor, quem é?”. 

Segundo esta narrativa, aquele a quem Jesus amava e que se reclinava sobre o seu seio, era seu confidente e porta-voz. Através dele os outros discípulos dirigiam-lhe as questões e ouviam a resposta (pelo menos naqueles versículos assim é). A interpretação desta passagem bíblica pode ser variada… e uma das variações, tão válida como qualquer outra, pode ser entendida como havendo uma relação íntima entre aqueles dois homens. 

Não é à toa que os autores teatrais tratam os assuntos históricos ou míticos. Eles lêem, estudam e investigam, para poderem fundamentar as suas estórias que passam em palco, na televisão ou no cinema. Ao contrário, os fundamentalistas bíblicos só têm uma interpretação – a radical – e baseados nela arrogam-se o direito de lançar bombas contra aqueles que, dando cumprimento ao seu trabalho de criar rábulas teatrais (ou cartunes, ou textos…), atingem um nível de raciocínio que está vedado aos agressores. Por isso se radicalizam… e Jaír Bolsonaro alimentou essa radicalização e apoiou tais actos!… 

Termino transcrevendo uma frase do meu camarada cartunista Zé Oliveira: “Produzir humor é um acto de inteligência. Produzir terror é um acto de estupidez bárbara”.

(Fim)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

4 de Março, 2025 Onofre Varela

Humor e Fé (1)

Estamos a viver tempos perigosos a nível mundial. O desrespeito pelo próximo parece ser lei, e a opinião pública é intoxicada por ideais extremistas escurecendo o futuro de cada um de nós, desrespeitando, totalmente, o Humanismo que devia fazer lei nas relações humanas e entre Estados. 

As actuais políticas económicas e de expansão territorial, estão, filosoficamente, muito perto das tristemente célebres “Cruzadas” que, entre os anos 1095 e 1291 (durante dois séculos) tiveram a missão de reconquistar Jerusalém (denominada “Terra Santa”) do domínio muçulmano, e cujo resultado redundou em morte e destruição. 

O que nos vai salvando os dias é a capacidade que todos nós temos de rir, e muitas vezes rimo-nos do nosso próprio infortúnio. Rir é um bom remédio para qualquer mal (tal como na tropa os comprimidos LM [Laboratório Militar] eram receitados para todos os males). 

Já li opiniões de agentes religiosos defendendo o sentido de humor, considerando-o, até, divino! Mas também já me deparei com opiniões de outros religiosos atacando o humor, considerando-o um sentimento menor, do qual as “pessoas de bem” se devem distanciar. 

Na minha juventude, integrado num grupo da JOC (Juventude Operária Católica) participei em diversões e actividades de palco no Patronato de Rio Tinto, Gondomar (muitos anos depois destruído para dar lugar ao Lar Paroquial da Terceira Idade), que tinha uma boa sala de espectáculos por onde passaram vários actores, de entre os quais recordo Mena Matos, um excelente humorista e imitador, que fazia as vozes de todas as personalidades públicas da época, apresentando-as não só em palco, mas também aos microfones da rádio no programa de humor (e crítica social camuflada por causa da Censura) “A Voz dos Ridículos”. 

A minha participação era de cariz humorístico, fazendo “Stand up Comedy”, modalidade que hoje está na moda, mas que, na época, nem sequer existia com tal designação. Lembro que no final de um desses espectáculos, de sala cheia com aplausos e gargalhadas, o padre lá do sítio subiu ao palco para agradecer a músicos e cantores, mas com reservas para “o contador de anedotas”! 

Com um sorriso beato afivelado no rosto, aquele membro da Igreja elogiou os meus companheiros de palco e agradeceu as suas prestações no espectáculo, mas sublinhou “a indelicadeza do humor” naquele espaço paroquial. Ouvi-o, e ri. Naquele tempo (fins da década de 1960, ainda a meia dúzia de anos de acontecer o 25 de Abril) pouco mais podia fazer perante um discurso beato, que não fosse rir! 

Garanto que o meu humor, apresentado sob a designação de “anedotas”, não tinha nada a ver com as anedotas do meu amigo, e nosso comediante actual, Fernando Rocha, que usa o vernáculo para provocar o riso, e de quem muitos gostam e outros tantos detestam por não tolerarem o palavrão que ele usa como marca distintiva do seu humor. 

Mas o palavrão existe, faz parte da linguagem do nosso Povo e funciona bem em determinados palcos e públicos por retratar os discursos de todos nós. É um humor perfeitamente lícito, e a visibilidade do palco e da televisão acaba por ser entendida como destruidora da clandestinidade, aferindo a legitimidade de se dizer palavrão em público (o que todos nós fazemos em privado) no sentido de fazer rir.

Há quem não goste!… Paciência… eu também não gosto de marisco… mas há quem diga que é muito bom!… 

Aqui chegado, também apelo à paciência dos meus leitores para esperarem pelo resto da prosa… é que este meu espaço tem limite, e já cheguei ao fim… na próxima semana continuarei o mesmo discurso. Até lá, façam por rir… e riam muito (vejam e oiçam o Fernando Rocha… ou discursos políticos!…).

(Continua)

24 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

Sobre a Saúde Debilitada do Papa

Acompanhando o noticiário que dá conta da hospitalização de Francisco I (F1), padecendo de pneumonia nos dois pulmões, lamento o seu estado de saúde e coloco-me ao seu lado na esperança de que se liberte do mal, recupere rapidamente e regresse à sua vida normal.

A propósito, lembrei-me de que (já lá vão muitos meses), vi e ouvi num canal de televisão, um responsável político do CDS dizer algo parecido com isto, relativamente ao criticar da crença (cito de cor): “Se não é crente não tem o direito a dar opinião sobre a crença dos outros”. Tal frase mostra que quem a profere, muito provavelmente, deseja (como político extremado que é) cortar a voz a quem tem opinião diversa da sua.

Gerado com IA.

É evidente que não preciso de ser religioso para ter opinião sobre religião e religiosos, como não preciso de dar vivas ao rei para poder criticar a Monarquia. Só preciso de estar atento à evolução da História, ter opinião própria e viver numa sociedade que respeita a liberdade de expressão, para o poder fazer. Como ateu é evidente que tenho opinião formada sobre religião, e como humanista é mais do que evidente que espero o rápido restabelecimento da saúde de F1.

Sei que este meu “sentimento fraterno de ateu” relativamente ao Papa, não é partilhado por muitos religiosos!… Neste tempo em que ultra-conservadores de extrema-direita e muitos milionários norte-americanos apoiados por Donald Trump, mais tantos outros europeus e asiáticos com o mesmo pensamento mercantilista do comissionista que tomou o poder nos EUA, esperam o pior desfecho para a vida de F1.

No dia 5 de Outubro de 2019 o jornalista Miguel Araújo divulgou no Diário de Notícias o facto (ou a ideia) de haver uma guerra movida contra o Papa pelo sector fundamentalista da Igreja Católica que trata F1 como herege, e que conta com o apoio dos “principais financiadores do Vaticano”. São “insondáveis os caminhos das pressões junto dos senhores da Santa Sé”. Estes “senhores” têm o objectivo de, “algures num futuro mais ou menos próximo, preparar terreno para escolher um Papa que tenha uma visão do mundo que se oponha frontalmente à de um bispo de Roma como Francisco, um «esquerdista» como é apoucado, por denegrir «o deus do dinheiro», atacar um liberalismo económico desenfreado e as políticas desumanas dos Estados ocidentais para com os migrantes, apostando sempre no diálogo e nas pontes com aqueles que os ultra-conservadores querem ver expulsos da mesma mesa [como os homossexuais, as mulheres que abortam, os casais de união de facto, os divorciados e recasados, etc.]».

F1 está ciente desta conspiração interna que cresceu contra si. Por isso, no lote dos novos cardeais (então nomeados) se conta o português José Tolentino Mendonça, entre outros da sua confiança. Há uma facção fundamentalista na Igreja Católica que se coloca ao lado do deus-dinheiro, do poder económico, abandonando os pobres e maltratados, esperando o rápido fim de F1… que pode sobreviver (e espero que sobreviva) à pneumonia que o debilita neste momento…  mas pode não escapar à maldade que contra si se alberga na Santa Sé, que tendo tantos “santos”… provavelmente terá muito mais “demónios”!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

9 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

Perdoar a quem nos agride

“A quem te bater na face direita, dá-lhe também a esquerda” (Mateus, 5: 39-42). Esta frase evangélica foi escrita num tempo em que a lei era “Olho por olho e dente por dente”. Convenhamos que a moral contida em Mateus é bastante mais positiva e pacífica do que o conflito que emerge da frase que então fazia lei e mandava tirar os olhos a quem cegasse alguém. As frases moralistas que podem ser encontradas nos Evangelhos têm de ser entendidas à luz do tempo em que foram registadas. Dois mil anos depois de Jesus Cristo (JC), as sociedades evoluíram, os Códigos Comportamentais também, e nós… bem… nós continuamos a ser os mesmos animais de sempre!

A nossa mentalidade pouco mudou com o decorrer dos séculos! Em termos de consciência, somos, hoje, os mesmos homens que escreveram a Bíblia e os Evangelhos. A técnica evoluiu; na escrita passamos das placas de barro para o papiro, deste para o pergaminho, depois para o papel e a seguir para o computador, mas a nossa mente bélica continua a mesma. Somos a última experiência da Natureza na vida do planeta. Temos menos de 200.000 anos… somos primitivos por mais evoluídos que, por vaidade, nos consideremos. Quando oferecemos “a outra face” a quem nos bate, partimos do princípio que o outro vai entender a nossa posição e sentir-se envergonhado por nos ter agredido. A nossa atitude pacífica contrasta de tal modo com a do agressor que, este, se for inteligente e sensível, vai sentir-se mal e pedir perdão pelo seu acto hostil, abandonando as suas incorretas atitudes. É esta a intenção da frase evangélica atribuída a JC e escrita por Mateus.

Mas… e os ditadores? São inteligentes e sensíveis? NÃO!… Se o fossem não seriam ditadores. É no quadro evangélico que eu entendo a frase do Papa Francisco I (F1) quando, há cerca de um ano, pediu ao governo ucraniano que tenha “a coragem da bandeira branca e de negociar com a Rússia”, acrescentando que “a palavra «negociar» é uma palavra corajosa […] quando percebemos que estamos derrotados e que as coisas não estão a correr bem, é preciso ter a coragem de negociar”. Obviamente, os ucranianos ficaram indignados ao interpretarem o discurso de F1 como um apelo à rendição do país perante a invasão russa. Putin regozijou-se com o apelo do Papa por o sentir do seu lado e fez saber que está disponível para negociações com a Ucrânia, numa atitude de exploração do mais fraco no conflito.

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Neste caso, eu só posso pensar o contrário do ditador e de F1! Quem tem de terminar a guerra é o país invasor que a começou… e não o país invadido que não faz guerra e apenas se defende! Sublinhando a sua maldade de invasor, Putin acrescentou ao seu discurso de “paz”, este “pacífico” recado dirigido a todo o mundo: “a Rússia está pronta para uma guerra nuclear”.

F1 (que considero ser o melhor Papa de todos quantos no último século se sentaram na cadeira de S. Pedro) tem de perceber que as frases evangélicas são para consumo caseiro dos fiéis cristãos, mas nunca serão consumidas, nem entendidas, pelo mau vizinho que é Putin (nem as entende Trump). Em resposta, a Polónia sugeriu a F1 que “encoraje Putin a retirar o seu exército da Ucrânia”. Por seu lado, Zelensky pediu ao Papa para apoiar o plano de Paz ucraniano onde se reitera a restauração da integridade territorial da Ucrânia, a retirada da tropa russa e a cessação das hostilidades. Este plano não está aberto a negociações, disse ele… e eu assino por baixo.

Vamos lá a ver, leitor. Raciocine comigo: o seu vizinho destrói-lhe a casa que é sua e mata a sua família. Depois quer que você “negoceie” com ele de acordo com a vontade dele, que nunca é a sua; ele propõe que você fique com o anexo do fundo do quintal, e ele ficará com tudo o resto que é seu. Só assim o seu vizinho lhe “garante” a Paz. Você aceita?… EU NÃO ACEITARIA! A “Paz” alcançada deste modo não é Paz; é um conflito latente e interminável. Não é por eu “dar a outra face” que vou viver bem e que o meu vizinho jamais me incomodará!… Este vizinho nunca retirará a sua bota do meu pescoço. Vamos aceitar “ultimatums” de todos os bandidos que nos invadem a casa e que nos matam a família? O que fazemos com um psicopata assassino? Ajoelhámo-nos perante ele, ou enclausurámo-lo?

Espero que o Mundo nunca deixe de se unir em favor dos invadidos e condene os invasores. O mesmo penso de Israel; terá de reconstruir a Palestina para os palestinos. Netanyahu merece ser preso… e Trump também!

4 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

«Ateísmo-Cristão»

Em 1945, quando soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres era o que restava dos prisioneiros judeus. O general Eisenhower pediu a quem tivesse máquinas fotográficas para registar o maior número possível de imagens, pois haveria de vir um tempo em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam (premonitório!).

A realidade da condição humana foi alvo de profundas reflexões. A religião, enquanto refúgio das almas, não sabia explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos. Os crentes mais directamente atingidos pela tragédia, sentiam legitimidade para perguntar: “Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!”… Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira. Urgia assumir a necessidade da revisão de conceitos culturais e religiosos que tinham perdido todo o significado e o carisma que possuíam antes da guerra.

Foto de Frederick Wallace na Unsplash

Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), teólogo alemão perito em história das religiões, era um dos intelectuais que alinhavam na nova atitude. Anunciou a necessidade da proclamação moderna do Evangelho “sem que os ouvintes se sintam obrigados a adoptar a mentalidade e a cultura dos homens do começo da era cristã”. Bultmann chamava a atenção para o facto de o Novo Testamento ser mitológico, e preocupava-se com a questão de como propor o verdadeiro conteúdo da mensagem cristã. “Esta exprimiu-se nos primeiros séculos segundo um determinado número de ideias, de imagens, de referências tomadas da cultura de então, cuja forma de pensar era mítica, isto é, apresentava as realidades divinas, transcendentes, em termos deste mundo. Ora, essa forma de pensar já não é a nossa!”.

Impunha-se a desmistificação da mensagem cristã tornando-a compreensível na simples e natural dimensão humana, abandonando a ideia de se ter em Jesus Cristo (JC) um mediador da divindade.

Mas Bultmann foi mais longe nas suas considerações. Argumentando que desde o século I o entendimento evoluiu de tal modo que a concepção do mundo e o aparecimento do Homem são matérias que já não podem ser consideradas da mesma maneira, defendia que a ressurreição de Cristo devia ser considerada como mito. Não a rejeitava enquanto mensagem de fé, mas entendia que deveria fazer-se a separação dos conceitos, já que, na realidade, JC não ressuscitou!…

O seu contemporâneo Thomas J. L. Altizer, também teólogo, navegava nas mesmas águas e propôs a ideia do “Ateísmo-Cristão”, fundamentando-se em estudos que lhe permitiam concluir que “o Deus soberano, absoluto, opressivo e transcendente, morreu em Jesus Cristo. Deus aniquilou-se a si próprio para que uma nova manifestação do espírito pudesse aparecer sob uma forma profana. A morte de Deus deveria ser saudada pelos cristãos como um acto redentor que liberta o homem da escravidão a uma divindade despótica que lhe permite aguardar, confiante, uma nova epifania do Espírito no mundo”.

Estas eram as preocupações de alguns homens de religião despoletadas pela guerra, pelos horrores e pelas atrocidades que se conheceram em 1945. Hoje, quando assisto a uma missa observando o que ali acontece, retrocedo para a Idade Média!… A Igreja não ouviu os seus influentes teólogos de há 80 anos.

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

17 de Janeiro, 2025 Onofre Varela

SENTIR-SE E SER-SE OFENDIDO

A clérigo sandeu parece-lhe que todo o mundo é seu”

(Provérbio Popular)

A propósito de o Papa Francisco I condenar populismos e defender divorciados e homossexuais (tal como “O Cidadão” noticiou no último dia 15 de Janeiro), mostrando ser a primeira vez que o Vaticano tem na Cadeira de São Pedro um clérigo verdadeiramente sensível e fraterno na defesa das liberdades individuais, limpando – com as suas atitudes e os seus discursos – a parte mais negra da História que a Igreja Católica escreveu durante séculos, lembrei-me de um caso ocorrido em Fevereiro de 2016. Já lá vai quase uma década, mas o sentimento de escândalo que ele provocou, continua actual; por isso considerei lembrá-lo aqui e agora.

Nessa ocasião, para assinalar a aprovação da lei que permite a adopção de crianças por parte de parelhas do mesmo sexo (eu prefiro usar o termo “parelhas” em vez de “casais”, porque “um casal” implica dois indivíduos de sexo diferente: um macho e uma fêmea. O termo “parelha” designa “um par”… neste caso, “um par de pessoas – duas pessoas”, que é o que é, e não um casal!) o Bloco de Esquerda (BE) criou um cartaz que gerou controvérsia, representando, em desenho, a figura (graficamente esbelta e religiosamente correcta) de Jesus Cristo, com a frase “Jesus também tinha 2 pais”. Esta mensagem, sob o ponto de vista histórico, científico e filosófico, é imaculada… não ofende ninguém e sublinha o que as religiões cristãs afirmam: Jesus é filho de Deus, e José é o seu pai adoptivo! Logo, tendo um pai adoptivo, não resta dúvida de que conta com dois pais… o adoptivo… e o outro!

(Bem… aqui, “o outro” , refere o “pai biológico”. Mas na estória cristã, a Biologia não está presente… aquilo não se entende… é uma confusão em que entra a figura de uma casta e branca pombinha, chamada “Espírito Santo”, como portadora do esperma divino que depositou no ovário de Maria… o que dificulta a compreensão do acto!… Os crentes afirmam esta “narrativa de fé” como sendo realidade, mas eu desconfio que quem a afirma não a entende e só a defende “por fé” sem se preocupar com as explicações que devia exigir para, só depois, poder defender… ou não!).

A aprovação da Lei da Adopção foi confirmada na Assembleia da República no dia 10 de Fevereiro, depois de Cavaco Silva (então presidente da República) a ter vetado. Em termos de religiosidade, não há diferença no tratamento das leis por parte de Cavaco e de Marcelo. Ambos são católicos e, na presidência de uma República laica (repito, em maiúsculas: LAICA) perfilam-se ao lado da Igreja, desaprovando tudo quanto a LAICIDADE REPUBLICANA diz dever ser aprovado.

A Constituição Portuguesa permite que um qualquer cidadão fiel a uma qualquer fé religiosa, seja eleito para presidir à República que é LAICA!… E permite-o, exactamente, por atribuir legalidade ao sentimento religioso, à sua fé e à sua livre expressão, quer se seja a favor, ou contra… correndo-se o risco de a LAICIDADE republicana não ser cumprida. São as idiossincrasias da Democracia!…

O BE, fazendo Juz à política de Esquerda que representa, concordou com a lei da adopção de crianças por parelhas do mesmo sexo, bem como concorda com o casamento homossexual, porque respeita a dignidade do Ser Humano e as vontades individuais. A Igreja Católica é que não alinha com tal respeito e contestou a lei por se sentir ofendida (esquecendo que estava a ofender a Liberdade e a Dignidade de quem quer ver a lei aprovada, em nome da sua própria Liberdade que o espírito do 25 de Abril lhe deu). Numa atitude de assumir a figura do “politicamente correcto”, o BE reconheceu ter sido um erro usar aquela mensagem e desculpou-se, retirando os cartazes, demonstrando usar de muito mais compreensão do que aquela de que a Igreja Católica se diz portadora.

Quero aqui dizer que quando alguém se sente ofendido, esse sentimento não é, por si só, prova de que o tenha sido realmente. “Sentir-se” não é o mesmo que “ser-se”. Eu posso sentir-me rico e ser pobre (ou vice-versa)!… Qualquer ofensa só é real se for exercida com a consciência de ofender. Se na sua origem não estiver a atitude de ofender, a ofensa não passa de um incidente que foi lido como ofensa pelo receptor, independentemente da intenção do emissor.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo e comentando, ao ofendido, o texto que o meu interlocutor diz ter sido uma ofensa à sua fé. Invariavelmente fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender as coisas. E quando esta ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o BE usasse aquela imagem e aquela frase, sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias (por isso há tantas seitas religiosas baseadas no mesmo Livro), e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação só porque choca com entendimento diverso. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico, nem natural… não passa de uma “estória de fé” que, merecendo respeito, também merece crítica numa sociedade maior, livre e consciente da Liberdade que tem.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia grega, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde. (Naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade.

A fé deve ser mantida por quem a tem, e respeitada por quem a não tem… mas não é matéria tabu! Nada o é. Numa sociedade maior (como é a nossa, liberta de ditaduras fundamentalistas religiosas) pode-se falar de tudo, seja elogiando ou criticando. E se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o seguidista de uma fé que desliga o seu motor de busca na procura de entendimento… e nunca o seu crítico.

Por muito respeito que me mereçam todos os crentes, eu tenho (tal como eles) o direito (e a obrigação) de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico, e a biologia implica sexo. 

A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas reais e naturais. 

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento