8 de Abril, 2017 Carlos Esperança
Os fiéis defuntos e os cadernos eleitorais (Crónica)
Quando as doces catequistas da minha infância me iniciaram no ódio aos hereges, ateus, maçons, comunistas e judeus, ensinaram-me igualmente a rezar pelos fiéis defuntos.
Cedo me tornei o melhor aluno da catequese, qualidade a que não seriam alheias as três refeições diárias e o inevitável lanche de que não usufruíam os condiscípulos que iam descalços à catequese e referiam as barrigadas de fome dos dias piores.
Talvez por isso, eu era mais sensível aos horrores do Inferno, ao abandono das almas do Purgatório, às delícias do Paraíso e a outras lucubrações metafísicas. A fome e o frio de outros garotos tornavam-nos desinteressados. Não entendia a necessidade da missa para defuntos que já gozassem o Paraíso ou para quem penasse no Inferno, dada a ausência de circulação entre os dois destinos. Mas as catequistas diziam que, na dúvida, se devia rezar por todos. E todos rezávamos, eu e os que, descalços e com fome, tiritavam nas pedras da igreja, entre o altar e o transepto, nas noites frias de inverno.
Sempre pensei que fiéis defuntos, com direito a missa dedicada nos dias 2 de novembro, fossem os mortos irrecuperáveis, os que não trocavam a defunção por uma ressurreição. Salvo no dia de Juízo Final, quando no Vale de Josafat, regressado à Terra, viesse Cristo julgar os vivos e os mortos, como o credo romano ensinava. Descobriria que não era a fidelidade à defunção que os elegia, mas a anterior fidelidade à Igreja.
Mais tarde, quando acompanhava a minha mãe aos atos eleitorais, passei a ter uma outra interpretação dos fiéis defuntos, julgando que eram aqueles mortos que, sem abdicarem da defunção, eram convocados pelo presidente da mesa eleitoral para votarem na União Nacional quando, à leitura do nome, o presidente da mesa se benzia e o secretário metia o respetivo voto na urna. Eram, de facto, defuntos fiéis a Salazar. Nem a morte os impedia do cumprimento do dever cívico na única lista a sufrágio.
Depois dos catorze anos, perdido o medo do Inferno e o interesse pelo Paraíso, alheado da fé e da liturgia, deixei de pensar nos fiéis defuntos, mesmo quando a opção ateísta se impôs. Só voltei a pensar nos fiéis defuntos, há poucos anos, quando soube do interesse autárquico por eles.
Os fiéis defuntos adicionam 5% do ordenado do PR ao de vários edis e deles dependem as dotações orçamentais das autarquias e o nível do salário dos seus elementos. Sem a sua persistente permanência nos cadernos eleitorais, e nos censos populacionais, eram muitos os que perdiam e só beneficiava o erário público que, por ser público, serve para benefício privado.
Os fiéis defuntos merecem que as associações autárquicas lhes mandem rezar a missa.
Coimbra, 25-07-2013 (Publicado em Ponte Europa)