8 de Abril, 2004 André Esteves
Um estado debaixo de deus, será para todos?
A regra dourada: “Age com os outros, como gostarias que eles agissem contigo”
Assistimos recentemente à apresentação de um recurso no supremo tribunal americano, para a modificação do chamado juramento de fidelidade conhecido em Portugal como juramento à Bandeira: a “pledge of allegiance”.
Ao contrário dos países de direito romano, o sistema legal americano, permite a qualquer cidadão americano recorrer aos tribunais para pedir a modificação de uma lei que considera injusta. Se o supremo concordar com o recurso, por voto dos seus juizes, é estabelecido um precedente que deve ser considerado ao aplicar-se a lei, ou até obrigando os estados da federação americana e o congresso americano a modificá-la. (uma versão interna dos recursos e precedentes existe na lei portuguesa, mas é exclusiva ao regulamento interno dos tribunais e logo de acesso exclusivo à elite dos juizes)
Aliás, até aqui podemos ver o dedo maléfico da religião.. o direito romano, que cresceu para lidar com a multiplicidade de povos do império romano, originalmente inclua a figura de recurso directo ao imperador. Com a queda do império e a entrada na idade das trevas, a igreja institui-se como único meio de interferência na lei pública, debaixo do seu olhar moral… A audiência passou a ser ao papa, mas o aparelho da igreja tratou de o corromper, seleccionando e controlando o acesso ao papa imperador. (com as excepções históricas que nós portugueses temos e com resultados anedóticos nos dias de hoje…)
O juramento à bandeira foi a invenção de um pastor baptista, convertido ao socialismo, Edward Bellamy. Bellamy achava importantíssimo educar os jovens e as crianças nos valores base da república americana. Na Liberdade, Justiça, Igualdade e Fraternidade…
Assim teve a ideia de criar um juramento aos valores republicanos e à república americana.
Na sua versão original:
‘I pledge allegiance to my Flag and the Republic for which it stands, one nation, indivisible, with liberty and justice for all.’
que em português, seria:
«Eu presto fidelidade à minha bandeira e à República que ela representa, uma nação, indivisível. com liberdade e justiça para todos.»
Bellamy seria eleito presidente da comissão de supervisionamento das escolas da Associação Nacional da Educação, com um programa baseado na adopção do seu juramento e com o apoio de campanha de vários jornais progressistas.
Bellamy concebeu o juramento, para, primeiro, reforçar a nação americana, saída da guerra civil com o sul esclavagista e segundo, instruir os jovens sobre seus direitos e responsabilidades como cidadãos da república.
O Juramento à Bandeira ganharia a partir daí, uma vida própria. Qualquer grupo ideológico tradicional das repúblicas ocidentais encontra no juramento algo que lhe agradaria e que ao mesmo tempo, desagradaria.
O juramento sofreu algumas modificações, desde então, sendo a principal a junção da expressão «sob deus», pela influência,nos anos 50, do lobby conservador americano «Cavaleiros de Colombo». Pretendia-se sobressair a distinção dos Estados Unidos democráticos, como país temente a deus, da União Soviética comunista e ateia.
Este argumento, no original, era uma chanchada…
Afinal a maior diferença entre os dois estados, era exactamente na liberdade e justiça para todos. E a partir desse momento, deixou de o ser…
A maior parte dos portugueses tem uma visão extremamente estilizada e ignorante da América. A jovem república americana foi palco de movimentos sociais muito variados, embora não fugindo às dicotomias do mundo moderno, do campo e da cidade, da educação e da fé… As duas guerras mundiais e a guerra fria tiveram um enorme impacto na estrutura e composição política da América de hoje. (e nós, europeus com as nossas guerras acabamos por ser também, aí, responsáveis.) Na luta pela supremacia militar e ideológica da guerra fria, bem como na organização da resposta às guerras europeias, houve uma militarização e um cerrar de fileiras de toda a sociedade americana. “Ou pertences ao grupo, ou és um traidor…” e claro, na América profunda onde é que se falava com as massas?
A partir do púlpito…
É desta movimentação histórica que temos a América de hoje.
Com o fim da guerra fria, houve um “relaxar” da pressão social para «cerrar as fileiras», mas com os atentados do 11 de Setembro, a pressão anterior voltou, mas desactualizada. É que a religião, até agora o mecanismo para «cerrar as fileiras», é que está na causa de todos os actuais problemas…
E é neste contexto que surge o recurso ao Supremo Tribunal.
Michael Newdow, californiano, ateu militante, encontrou no actual juramento à bandeira, uma intromissão inadmissível da religião no estado, que se quer com «liberdade e justiça para todos».
Newdow é pai de uma menina, com uma mãe crente. As crenças da sua companheira afastaram-na dele.
E com ela, foi a sua filha. Além da influência que a mãe dá à criança, temos todos os dias, na escola, a filha de Michael a declamar e a jurar um juramento que lhe diz que o seu pai não é americano e que não quer «liberdade e justiça para todos».
Quem é que gostaria, que o estado dissesse aos nossos filhos que nós somos seus inimigos?
A única situação que encontro com paralelo, ironicamente, é a da Rússia estalinista, onde as crianças eram educadas para entregar os próprios pais, como inimigos do estado…
A apresentação do recurso por Newdow à frente dos juizes do Supremo Tribunal (menos um.. um dos juizes conservadores declarou-se publicamente contra o recurso e teve que ser afastado pois não tinha uma posição inicial isenta para poder arbitrar o caso) foi no final do mês passado.
Dentro de dez meses, teremos a decisão.
E a América começará a mudar… para o fim da tirania da opinião da maioria ou para algo muito pior…
Referências:
– A história do juramento http://history.vineyard.net/pledge.htm
– Uma pequena biografia de Mike Newdow http://www.restorethepledge.com/mike_newdow/
– Transcrição temporária do recurso