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23 de Maio, 2004 jvasco

Produtos Milagrosos

Eles prometem tudo!

Se precisarmos de sorte nos exames, de prender a pessoa amada, de encontrar emprego ou de nos curarmos de uma terrível doença, só temos de procurar estes mestres-curandeiros-espiritualistas que fica tudo resolvido num fechar de olhos. É preciso ter cuidado, pois são eles quem nos alerta que “anda muito charlatão por aí”, mas que eles conseguem resultados onde os outros falham.

Em Londres havia um que prometia que era capaz de fazer o filho nascer rapaz. Cobrava 500 libras, mas devolvia o dinheiro se o ritual não funcionasse. O ritual “funcionava” metade das vezes o que já era suficiente para obter uma média de 250 libras por cliente.

Foi com prazer que li no público que o astrólogo Baglu foi condenado a pagar 2000 contos pela Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria de Publicidade. É considerada ilegal “a publicidade que, explorando a ignorância, o medo, a crença ou a superstição dos destinatários, apresente quaisquer bens, produtos, objectos, aparelhos, materiais, substâncias, métodos ou serviços como tendo efeitos específicos automáticos ou garantidos na saúde, bem-estar, sorte ou felicidade dos consumidores ou de terceiros, nomeadamente por permitirem prevenir, diagnosticar, curar ou tratar doenças ou dores, proporcionar vantagens de ordem profissional, económica ou social, bem como alterar as características físicas ou a aparência das pessoas, sem uma objectiva comprovação científica das propriedades, características ou efeitos propagandeados ou sugeridos”.

O astrólogo recorreu para o tribunal constitucional alegando que tal proibição atenta contra diversos direitos fundamentais seus, tais como a liberdade de expressão e o direito a informar, bem como a sua liberdade de iniciar uma actividade económica. Mas não há dúvidas de que o direito à liberdade de expressão está condicionado, quer para evitar a difamação, quer para regulamentar a publicidade. No fim, o Tribunal Constitucional condenou astrólogo Baglu a pagar os tais 2000 contos com as custas e ainda uma taxa de justiça no valor de 1335 euros.

23 de Maio, 2004 Carlos Esperança

Portugal não abdica da referência a cristianismo na futura Constituição europeia

«A lista de signatários integra a Itália, Polónia, Lituânia, Malta, República Checa e Eslováquia. Segundo o porta-voz do ministério polaco dos Estrangeiros, Boguslaw Majewski, o documento está aberto à adesão de outros países» – lê-se no Jornal de Notícias.Como se vê, estes países constituem a fina flor dos arautos da democracia, os exemplos mais estrénuos na defesa da liberdade religiosa, a vanguarda histórica do respeito pelos direitos humanos.

Violentas ditaduras e a subserviência ao Vaticano são desgraças que lhes enchem a alma de orgulho e o passado de vergonha.

Portugal, cuja Constituição é omissa em referências religiosas, não se resigna a alardear, por intermédio dos elementos do Opus Dei que integram o Governo, o desejo de alterar o laicismo da Constituição actual, nostálgicos da Constituição de 1933 onde se afirmava que «Portugal é um país tradicionalmente católico».

O sonho maior de um beato é impor uma teocracia e este Governo recusa-se a ver o crepúsculo moral a que a sua aliança com o CDS o conduz.

O desvario teocrático que grassa no mundo islâmico foi o sinal de alerta que levou os países europeus a resistir aos apelos fanáticos de JP2 de introduzir a referência ao cristianismo na futura Constituição europeia, fartos de lhe ouvirem exaltar a santidade e o martírio numa conduta equivalente à dos ayatollahs. Mas não consideremos a vitória adquirida.

Não podemos consentir que a igreja se transforme no lupanar da liberdade, onde se prostitua a democracia com o incenso a servir de permanganato.

22 de Maio, 2004 Ricardo Alves

A luta continua, "Deus" para a rua

A primeira pedra no edifício das democracias modernas é a separação da igreja do Estado. Apenas quando os governantes deixaram de o ser “em nome de Deus” (que não sabiam como consultar) e passaram a sê-lo em nome do povo (e embora nem sempre o consultem), se criaram as condições para o advento das democracias modernas.

A actual obsessão do Vaticano e de alguns políticos conservadores com uma referência explícita, primeiro a “Deus”, e agora ao “património cristão” no Preâmbulo da Constituição Europeia parece assim uma tentativa pitoresca de regressão ao tempo da monarquia por direito divino.

Na verdade, a histeria em torno da “referência cristã” tem servido para esconder que a ICAR conseguiu uma importante vitória com a adopção do artigo I-51 da Constituição Europeia, que não apenas garante que a Constituição não afectará o estatuto das igrejas como garantido pelo direito nacional, mas também cria um mecanismo de consulta das igrejas nos processos legislativos europeus. Não por acaso, a Conferência dos Episcopados Europeus já declarou estar muito satisfeita com o actual projecto de Constituição…

22 de Maio, 2004 André Esteves

Interpretação bíblica a quente

Um casal de namorados americanos estudava e discutia a bíblia. Encontraram um versículo em que a vontade do senhor não se tornava clara.

Ele dizia assado. Ela replicava o contrário. A discussão cresceu em paixão e intensidade.

Cada um proclamava que se sentia cheio do espírito. O outro replicava que as palavras do senhor eram claras.

Transbordavam de fé!

Tanto que, enquanto fritava umas batatas durante a discussão, a mulher não aguentou mais…

Atirou o óleo a ferver na cara do companheiro.

A notícia do Fait Diver

21 de Maio, 2004 Carlos Esperança

Notas piedosas

Monarquia democrática – Eis uma piedosa expressão, ultimamente muito repetida, que não passa de um paradoxo que só a república consegue resolver.

Papa – Ao comemorar 84 anos ficou tão contente com a Concordata que, depois de ter ouvido Durão Barroso a dizer-lhe que tinha 3 filhos, lhe perguntou maldosamente se não ia em busca de uma menina. A esposa do primeiro ministro ruborizou-se piedosamente.

Espanha – Letícia Ortiz pode casar pela santa madre igreja católica apostólica romana (ICAR) porque o casamento civil anterior, segundo os bispos, é inexistente perante Deus. Fica-se a saber que, para a Igreja, um casamento sem missa nem eucaristia é como uma cópula sem penetração nem orgasmo.

Concordata – A comitiva que acompanhou Durão Barroso a Roma (cerca de 50) não foi dar qualquer prestígio ao acto que, aliás, não é motivo de orgulho. Uns foram por promessa, outros à cata de indulgências, bastantes por penitência e, TODOS, porque foi de borla.

AGÊNCIA ECCLESIA – Segundo D. Jacinto Botelho, presidente da Comissão Episcopal da Família, referindo-se à “grande diminuição da natalidade no nosso país”, condenou o egoísmo e o comodismo que estão na sua origem. Ninguém como os bispos para falarem do que sabem.

FEHÉR CURA MULHER – A morte do futebolista Fehér comoveu de tal forma uma mulher de Leiria, de 75 anos, que largou a cadeira de rodas e pôs-se de pé, depois de prometer rezar na sua campa, se Nossa Senhora a deixasse retomar o andar, como veio a acontecer – lê-se no Correio da Manhã. Vai-se deslocar à campa do atleta e, se rezar com muita fé, talvez deixe a bengala.

21 de Maio, 2004 André Esteves

O kitsch religioso da semana

Esta semana vou vos levar ao maravilhoso mundo da propaganda evangélica americana em banda desenhada: As publicações Jack Chick.

É um dos clássicos da minha infância e que me ensinou muito jovem, o significado do que é a propaganda. O formato é simples. Apresenta-se uma situação humana. O leitor identifica-se com o pecador. O pecador descobre Jesus. Jesus salva-o. Os títulos constituem também parte do método: «Como ficar rico», «As abelhas e os passarinhos», «Macacos, mentiras e a Sra Galinha», atraem o leitor pela sua inocência ou gula.

O próprio nome, «Chick Publications» é uma armadilha linguística. «Chicks» em calão americano, traduz-se em Garinas, ou seja «Livros de míudas», pelo que alguns jovens pegam nas BD’s a pensar que se tratam de pornografia soft…

Descrito assim, parece ser uma fórmula demasiado simples. Mas a sua simplicidade é o seu encanto e arma.

Utilizando a estratégia habitual da citação bíblica, ilustrada com pequenos factos históricos e contemporâneos mal cozinhados, Jack Chick conseguiu criar um estilo que é eficaz e provocante. A iconografia e grafismo reflectem as suas origens protestantes, bem como seguem certas regras teológicas, devido à preocupação protestante em não usar imagens, para evitar a idolatria. (Há quem argumente que estas bandas desenhadas SÃO idolatria.) Por exemplo, seguindo a crença que ver a face de jeovah é uma acto de blasfémia e de morte, Chick inventou um clássico, a figura do deus sem face, que podemos ver na imagem à vossa direita.

Para os leitores: crianças, pobres e pessoas simples, que são o alvo deste género de publicações, a aparente facilidade de leitura da banda desenhada confunde-se com a credibilidade da mensagem, e a dúvida e o medo insinuam-se facilmente.

Jack Chick é um desenhador americano, que conseguiu, graças ao seu talento de condensar a mensagem e de desarmar o leitor através da imagem choque (veja os demónios a viverem nos homossexuais, os professores malignos e os jovens perdidos ), enriquecer enormemente. Com o sentido prático americano, o proselitismo tornou-se capitalista.

Embora o leitor final não pague pelo folheto, são as igrejas que convencidas da eficácia do seu produto, lhe compram milhões de bandas desenhadas. As vantagens são óbvias. O acto de converter torna-se automático.

Não há discussão e confronto de pontos de vista. Distribuem-se os folhetos na rua, no trabalho, à porta da igreja, sem que seja necessário pôr os fundamentos da fé à prova. É a acção missionária em escala industrial para o mercado de almas.

A encontrar em qualquer igreja evangélica.

Algumas sugestões de leitura:

Os católicos romanos são cristãos?

Porque está maria a chorar?

A cidade do pecado

As abelhas e os passarinhos (em inglês)

Macacos, mentiras e a Sra Galinha (em inglês)

20 de Maio, 2004 jvasco

Sexo, nunca mais!

Ontem à noite houve um jantar de curso. Foram cerca de 100 pessoas ao jantar, o que é bastante bom para um curso que tem cerca de 200 pessoas no total (licenciatura em Engenharia Física Tecnológica do IST).

Após o jantar alguns de nós fomos sair ao bairro alto. Foi lá que algures, no meio de uma conversa qualquer, me chamaram a atenção uns cartazes que duas raparigas afixavam – eram cartazes sobre a peça de teatro em que elas participavam.

O cartaz chamou-me à atenção pois tinha algumas fotografias do Durão Barroso e outros políticos portugueses (de outros partidos) e uma fotografia em grande plano da N. Senhora. Tanto quanto me disseram a peça era sobre planeamento familiar, a mudança de mentalidades, o puritanismo, a nossa sociedade.

A peça chama-se “Sexo, Nunca mais!“. As companhias são a Art’ISPA e o Grupo CineArte.

O Texto e encenação é de Helder Costa.

O preço é uma moeda (à escolha do espectador).

Aconselhei-lhes o blogue prometendo também que publicitava a peça. Perguntaram-me qual a ideia de anunciar uma peça sem a ter visto, mas parece-me que a temática e o preço justificam uma visita curiosa. Espero ver a peça em breve e voltar a escrever para este blogue para dar a minha opinião a respeito dela.

Quando e onde é que a peça está em cena?

20 na Barraca – Teatro Cinearte (foi hoje…)

21 na Barraca – Teatro Cinearte

25 no ISPA

26 na Barraca – Teatro Cinearte

Todos estes dias às 21h.

20 de Maio, 2004 Carlos Esperança

O Hissope – conto piedoso

Corria tranquila a vida no convento, cumprido o tempo com orações e refeições frugais a horas certas. Da missa diária encarregava-se o padre Agostinho, confessor e director espiritual, com descrições do Inferno, pormenorizadas e convincentes, e de horrores ainda maiores do Mundo, criado por Deus e abandonado nas mãos dos homens. Falava de um ror de pecados inenarráveis que faziam zangar muito Nosso Senhor, cabendo às monjas recuperar-lhe o humor pela oração e sofrimento.

Nas longas horas de meditação, nas rezas colectivas ou individuais, davam-se graças por não partilharem esse espaço que o Director espiritual e a Madre Superiora eram os únicos a ter de transpor, protegidos pelas orações aflitas com que o convento inteiro os acompanhava.

Nessas horas de vigília mística transferiam a intenção habitual para a protecção dedicada e rezavam com a mesma acendrada devoção com que pediam pelas intenções do Santo Padre, sem se interrogarem quais eram essas intenções, pelo cumprimento da vontade divina se é que depois de tantos anos de Mundo ainda há vontade que resista, mas isto são pensamentos ímpios, reflexões de quem julga inútil a vida monástica e considera a oração mera ociosidade, sem lhe atribuir a eficácia e bondade sublinhadas por milagres que crentes de todas as religiões confirmam.

Agostinho, tal como o Santo de quem tomara o nome, possuía a mesma vontade e determinação de ser casto, esperando também que a idade lhe apaziguasse os desejos. Nutria igual desprezo pelas mulheres que lhe incendiavam os sentidos, tinha a mesma certeza de que eram uma encarnação do diabo, cujo cabelo e voz eram obscenos, inteligente reparo do santo, verdadeiras fontes de pecado que só a oração e o sofrimento podiam evitar. Talvez por isso era tão apreciado pelo prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, de quem tinha o privilégio de receber bênçãos especiais por altura das festividades canónicas.

Às vezes, enquanto administrava a sagrada partícula, adivinhava os corpos que os hábitos escondiam, os desejos que as orações atenuavam, os pensamentos pecaminosos de que os jejuns e a oração o libertavam. Mas era durante a confissão onde, por dever do múnus, perscrutava até ao mais íntimo da alma, que a efervescência o apoquentava sabendo bem que a culpa cabia às filhas de Eva que ali se genuflectiam carregando o desejo que os seus conselhos e as regras monásticas reprimiam para maior glória divina.

O P.e Agostinho já durante as confissões da Irmã Maria Imaculada tinha indagado dos pecados cometidos, ao menos por pensamentos e, perante o total desinteresse da penitente pelos ditos pecados, a tinha advertido que devia estar vigilante, que Satanás manifestava particular predilecção pelos pensamentos, janela de oportunidade para tresmalhar a alma de uma devota, mesmo, ou sobretudo, sendo freira e estando particularmente devotada à castidade. O convento não era, antes pelo contrário, refúgio seguro das arremetidas do demo. Ele próprio era testemunha, com o sangue a ferver-lhe perante o louvável desinteresse de Imaculada pela luxúria. E tudo isto apesar de o convento albergar uma relíquia tão rara e cobiçada pelos outros mosteiros ? uma pena do arcanjo Gabriel muito bem conservada num relicário de ouro cinzelado com pedras incrustadas, protecção de efeitos comprovados à honra do convento.

A Ir. Maria Imaculada do Sagrado Coração de Jesus Santíssimo, ou Ir. Maria Imaculada, ou Imaculada, simplesmente, deixados cair os apelidos e reduzida a um só nome dos que no acto de professar serviram para sepultar os profanos, rezava abundantemente. Sob os olhos indiferentes dum Cristo cansado das orações e da cruz dependurada num prego periclitante entalado na ranhura dos blocos de granito, rezava diariamente o terço, absorta e genuflectida, sem pressa de concluir o rosário que a Virgem recomendara à Irmã Lúcia, em Fátima, para conversão da Rússia e salvação do mundo.

Uma tarde, igual a tantas outras, enquanto rezava, apercebeu-se da sombra que penetrara a cela, através dum ligeiro vaivém da porta sem trinco, de uns braços potentes que a agarraram por trás, da mão que lhe esmagou os lábios, dum corpo que se colava ao seu enquanto a outra mão lhe percorria o hábito e lhe devassava a orografia do corpo esquecido.

Debateu-se em silêncio, esquecida a voz de que já se desabituara, incharam-lhe os olhos, acudiu-lhe o sangue à face, quando descobriu na estranha criatura que a enlaçava a figura do padre confessor que, num ápice, lhe despia apressadamente o hábito a caminho da satisfação das necessidades próprias sem cuidar das alheias. Despojada do hábito e reduzida aos hábitos menores, precária resistência à lascívia reprimida, em estado de estupor, suportou a arremetida. Apercebeu-se do corpo a ser derrubado sobre o leito, sentiu a arremetida ignóbil, a violência gratuita, a sanha animal, como quem aceita a penitência, como quem se resigna ao isolamento, ao silêncio e à oração, com o mesmo desprendimento da vida sem sentido que é fardo virado desejo, que é morte de que se faz a vida monástica, que é renúncia a pretexto da salvação.

Debateu-se primeiro, quedou-se depois, desinteressada, com uma dor intensa a penetrá-la, um ferro em brasa a percorrer-lhe as entranhas, imobilizada com força imensa como se pudesse fugir, primeiro, ou o quisesse tentar, depois. O ódio que a clausura sublimara foi o sentimento primeiro, logo seguido da indiferença que os movimentos alheios poderiam ter conquistado para a cumplicidade. Não teve tempo. Pela primeira vez o olhar se detivera no tecto da cela para voltar à enxerga onde jaziam fluidos cujo sangue que não podia provir das chagas do Cristo metálico e indiferente, imobilizado na cruz da parede.

Na violação da freira pôs o padre a mesma violência perversa do proselitismo. Desta feita não foi a fé que procurou impor, apenas buscou aliviar o cio.

Na metamorfose do êxtase esqueceu a alma cujo destino incerto e distante não interfere na pacificação espiritual que os corpos conquistam na tumultuosa explosão dos sentidos. Mas ali não houve arrebatamento, apenas conquista e saque dum corpo devastado, espada enterrada em bainha que a fúria abriu e devassou, um corpo esmagando a alma de outro na pressa de servir-se.

O abuso sexual foi o resultado das pulsões primárias dum indivíduo anacrónico que não fizera a catarse da violência.

Agora até o místico tugúrio da anacoreta tinha virado palco de profanas fantasias que o carácter confessional dos parceiros transformara em incestuosas investigações eróticas da geografia de um corpo flagelado. O êxtase parece tanto mais sublime quanto maior tiverem sido a dor, a abstinência, o desejo e o recalcamento. Mas na circunstância faltou o tempo, a sabedoria e a sedução. Não foi a mulher que o sevandija procurou mas o vaso em que se aliviou.

A SIDA, o medo que lhe infundia, foi o pretexto que a si próprio o padre ofereceu para buscar na freira o consolo cujas consequências temia nas rameiras, a violação o prémio que se atribuiu pelos longos meses de castidade sofrida . Ao menos não adicionou à fraqueza da carne o pecado suplementar do preservativo. Desagradara igualmente a Deus mas não ofendera tanto o Santo Padre.

Apaziguados os desejos, libertos os humores, a freira pensou arrancar a lâmina que a rasgou e acabou guardando entre as mãos, essa arma que a ofendera, inútil, pegajosa, mole, onde adivinhava um hissope fundido pelo vigor da aspersão. E nem sentia sequer revolta, medo ou vergonha. Começava a deixar-se percorrer por uma estranha sensação de prazer igual à flagelação, parecida com a do cilício, mas sem dor, sem sofrimento, sem necessidade de se imobilizar. Ousou mesmo uma discreta massagem como se de uma relíquia se tratasse, relicário igual, quem sabe, a outro muito jovem donde foi extraído o santo prepúcio.

Deixou vaguear os olhos pelo próprio corpo que há muito não via, pousou-os no outro corpo de que sempre afastara os pensamentos, deteve-se nas diferenças de ambos e pensou que tudo se poderia ter passado sem violência, devagar como quem reza, com gestos ritmados como se batesse no peito em acto de contrição. Mas o ímpeto que a magoou foi talvez o tributo indispensável à tranquilidade que agora sentia. Quem sabe se não devia ao tumulto o prazer que experimentava! Não era violenta a clausura que extasiava? Não embriagavam os jejuns? Não fazia a dor dos cilícios percorrer o corpo, todo o corpo, de um doce calor de inebriante felicidade?

A dor que sentira, a humilhação que sofrera, a vergonha que a prostrara, eram a fonte donde começava a jorrar uma ponta de felicidade. Estranhos caminhos da natureza, complicadas formas de ventura, a escrava conformada a procurar o caminho do perdão.

Continuou a segurar a arma que a trespassara, tomava-lhe o peso, acariciava-a e sentiu que a coisa mole ganhava dureza, assumia forma, tomava cor. Sentiu-se confusa, fechou os olhos, deixou-se escorregar para o chão e aguardou. Outra vez a dor e o fogo a percorrerem-lhe as entranhas, agora já sem violência, um corpo sobreposto em movimentos ritmados, a dor a esbater-se, o próprio corpo a ensaiar o acompanhamento do outro, uma indizível felicidade a percorrê-la, uma sensação idêntica à da libertação do cilício, sem necessidade de pensar em intenções do papa, contracções incontroladas, prazer a jorros, um êxtase sublime, como se naquele momento, sozinha, tivesse libertado o mundo de todos os pecados.

Perdeu a noção do tempo. Ao ver o seu director espiritual abandonar a cela sem uma explicação, sem uma palavra, confusa, esmagada, teve ainda forças para sussurrar-lhe: venha mais vezes, volte.

Na manhã seguinte seguiu com o costumado interesse a santa missa que o mesmo padre celebrava. Sentia os olhos dele cravados em si e, à força do hábito, continuou a olhar o chão. Doía-lhe o corpo cansado de todos os esforços da véspera acrescidos com a dificuldade de disfarçar da cela os sinais de sangue e outros fluidos.

Na confusão do cérebro todos os movimentos eram agora, não para glorificar Deus e o seu divino nome, mas gestos de estimulante lubricidade. Mesmo o turíbulo, no seu vaivém, lembrava-lhe o corpo cujos movimentos esmagaram o seu, mais lentos é certo e, talvez por isso, Imaculada sentia percorrer-se duma estranha sensação de felicidade, dum calor deslumbrante que a transportava ao êxtase. Lembrou-se das descrições de Santa Teresa e sentiu em si as mesmas emoções, a mesma onda de felicidade que a inundava, duvidosa de ser ou não ser o Divino Mestre que a percorria nas fantasias bem humanas que haviam despertado de forma incontrolável.

Enquanto o oficiante celebrava não eram já as palavras pronunciadas que lhe ouvia mas a língua que as articulava que sentia. Os conselhos de sempre traziam apenas o bafo quente que lhe envolvia o pescoço. A bênção que lançava devolvia-lhe os dedos que a descobriram. Imaculada sentia-se transportada ao céu por que tanto tinha implorado. Rezava agora com paixão, sem intenções prévias, cada vez mais convicta de que esse dia traria de novo a visita privada do confessor que, talvez, passasse a confessado.

E assim foi. A cela deixou de ser o espaço de reflexão sem sentido para se converter na antecâmara do desejo. Perdeu o ar frio e funesto para ganhar a dimensão dum ninho fofo e proporcionar a visão duma centelha do paraíso.

À mesma hora do dia anterior, a preceder as vésperas, Imaculada viu claramente que não era uma sombra que penetrara a cela. Era o homem que esperava. O ascetismo místico tinha ganho uma nova dimensão e ia ser temperado pela explosão simultânea dos fluidos em reparadores espasmos fruídos sofregamente, sobre o catre, ou no chão, no exíguo espaço duma cela.

E não mais pediu ao P.e Agostinho para voltar. Dia após dia o hissope vinha mergulhar suavemente na caldeirinha para aspergi-la vigorosamente no momento certo, enquanto ambos, à medida que exultavam com as delícias da alcova, se foram esquecendo do martírio do seu Deus.