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27 de Maio, 2004 Ricardo Alves

Sim à Laicidade, não à Concordata (3)

6-MITOS-6 DA PROPAGANDA CATÓLICO-CONCORDATÁRIA

1) A Concordata prevê isenções fiscais para o trabalho de assistência social.

Falso. A Concordata prevê isenções fiscais para as associações “caritativas” (artigo 12), supostamente em igualdade com as outras associações da sociedade civil que efectuem o mesmo trabalho, mas institui também (artigo 26) isenções fiscais para todas as instituições católicas (ver ponto 1 do post anterior) incluindo a contribuição autárquica, o IVA, o imposto de selo, o imposto sucessório e a sisa. Ora, que se saiba, uma missa não é uma actividade de “solidariedade social”, e, por muito conforto privado que tal cerimónia confira às pessoas, não há qualquer razão para o edifício de uma igreja estar isento de um imposto público… (actividades como o ióga ou a psicanálise não gozam das mesmas isenções, apesar de terem funções semelhantes). Além disso, estas isenções fiscais têm sido, no passado, estendidas a negócios que nada têm de caritativo, como livrarias e os lucrativos hotéis de Fátima. Mais, até ao momento em que escrevo a profissão de padre confere isenção de IRS, e que se saiba um padre não é um assistente social, é um difusor de uma crença particular.

(E quanto ao “trabalho de solidariedade social”, a verdade é que é muito fácil fazer “caridade” com o dinheiro dos outros e perante os holofotes da comunicação social…)

2) O estatuto da Universidade Católica resulta da Concordata de 1940.

Falso. A Concordata de 1940, negociada entre Pio 12 e Salazar, estabelecia no seu artigo 20 a liberdade de criar escolas privadas, mas não universidades. O entendimento de Salazar foi sempre de que não havia qualquer obrigação do Estado de permitir a criação da Universidade Católica, e procedeu em conformidade até à sua queda da cadeira. Foi Marcelo Caetano, em 1971, quem autorizou a fundação da Universidade Católica Portuguesa.

(A origem deste mito é um decreto governamental de 1990 que afirma, extemporâneamente, que a UCP resulta do artigo 30 da Concordata. O autor do decreto é o Ministro da Educação Roberto Carneiro, membro do Opus Dei, professor da Católica e criador de mitos nas horas vagas.)

3) O Estado deve uma indemnização à ICAR pelas expropriações de bens de 1910.

Falso. A ICAR construiu o seu património, ao longo de séculos, à custa do erário público. Logo, nada haveria a devolver… A República procedeu efectivamente a expropriações de bens da ICAR, mas esses bens foram sendo devolvidos primeiro por Sidónio Pais e depois pela Concordata de 1940. A partir daí, as isenções fiscais dos últimos 64 anos têm sido justificadas pela propaganda católica como uma indemnização por bens que já foram, na realidade, devolvidos. Tal argumento é, portanto, hipócrita.

4) A República “perseguiu” a ICAR.

Falso. A Lei da Separação da Igreja do Estado, assim como outra legislação da República, fez o seguinte: terminou com o estatuto de funcionários públicos de que os padres gozavam; retirou o registo de nascimentos e casamentos à ICAR, instituindo o registo civil; legalizou o divórcio; laicizou o ensino público; autorizou todas as igrejas e comunidades religiosas por igual; suprimiu os subsídios de que beneficiara anteriormente uma delas (generosamente, Afonso Costa concedeu pensões aos padres que aceitaram a lei). Tudo isto é aquilo que é hoje dado por adquirido, num Estado moderno e numa sociedade secularizada e religiosamente diversa. Se alguém foi perseguido, foram todas as outras confissões religiosas, antes de 1910 e após 1926, e, desde sempre, os livre pensadores. Os judeus, muçulmanos, protestantes, agnósticos e ateus têm a dignidade de não pedir “indemnizações”. Mas lá que dá vontade…

5) A Concordata é necessária para fixar os dias feriados.

Falso. Os dias feriados podem ser fixados por qualquer lei geral da República, como acontece com o 5 de outubro e o 25 de abril. Porém, fazer do 1 de janeiro o “dia da Mãe de Deus” (sic, artigo 30 da nova Concordata) arrisca-se a ser motivo de chacota. Nessa data, os portugueses celebram desbragadamente deuses pagãos como Eros e Baco, não a hipotética “mãe de Deus” (Deus teve mãe? E pai também? E avós?).

Seria mais avisado instituir o Dia de Darwin, com vista à promoção do espírito científico, e o Dia de Giordano Bruno, em memória das vítimas da intolerância.

6) A Concordata é necessária para reconhecer o papel histórico e a implantação sociológica da ICAR.

Falso. Este mito remete para outro mais profundo, o do papel histórico, necessariamente bondoso e benfazejo, da ICAR, e implica objectivamente uma avaliação positiva do papel histórico da ICAR. Basta referir a inquisição, e o apoio da ICAR ao Estado Novo para arrumar a parte histórica. Quanto à expressividade da ICAR, a verdade é que a dita tem a influência que tem porque historicamente perseguiu todos os outros. Se não houve judeus em Portugal durante séculos, se há protestantes há pouco mais de um século, e se não há mais ateus confessos, é porque a ICAR sempre conseguiu usar o Estado para o seu proselitismo. A “implantação histórica” resulta portanto de vários crimes e conluios, e a nova Concordata continua essa tradição.

27 de Maio, 2004 Mariana de Oliveira

Partido Nacionalista Português/Bloco da Direita Portuguesa

Tomei conhecimento, ontem, através da Despertar – lista de discussão do Ateísmo.net – de um novo partido político: o Partido Nacionalista Português/Bloco da Direita Portuguesa, que partilha algumas semelhanças com Partido Nacional Renovador. Quem são estes amáveis senhores? Segundo eles, são todos os cidadãos Portugueses (assim mesmo: com P maiúsculo) que procuram uma mudança radical na sociedade Portuguesa e no seu estatuto politico como nação independente e regeneradora no mundo actual. São (agora é a melhor parte) os Soldados Politicos Espirituais,Cruzados do século XXI,dedicados a combater as forças do mal. Ao ler esta frase em voz alta e cavernosa, parece-me algo saído daqueles filmes japoneses dos anos 70 ou do Dragon Ball. O que será um soldado político espiritual? Uma espécie de George W. Bush, que não fez o serviço militar, cruzado com Paulo Coelho e arraçado de Maya?

Mas os PNP’s não se ficam por aqui. Logo a seguir pode ler-se: Nós não somos,nem desejamos ser complacentes como batatas no sofá que só desejam na vida estar confortáveis,beber cerveja,ver televisão e ter tempo só para divertimento,há muitas mais coisas na vida do que isso. Concordo, há muitas mais coisas na vida… como… sei lá… formar um partido trágico-cómico!

Para os que estão a pensar que o PNP/BDP é um partido fascista, enganem-se! É tudo uma cabala montada pelos seus inimigos. O partido é apenas nacionalista só que partilha alguns pontos de vistas filosóficos e politicos que os fascistas também têm,mas esses pontos em comum não são maus se respeitarem a democracia e condenarem a violência. Quais neofascistas, estes meninos são uns verdadeiros democratas!

Agora que o leitor já sabe quem é o Partido Nacionalista Português/Bloco da Direita Portuguesa, está na altura de conhecer as suas reivindicações. Agora é que vem o verdadeiro regabofe!

Querem acabar com o saque e a colonização de que Portugal é vítima, queremos acabar com os impostos e sair da União Europeia. Não dizem é com que colonização querem acabar. Será que é a espanhola, a de leste ou a vinda de África?

Acabar com os impostos? É uma medida popular, mas depois como é que o Estado suporta as suas despesas? Quem paga as reformas? Quem garante o Serviço Nacional de Saúde? Quem garante a educação? Pormenores e bagatelas para um verdadeiro Nacionalista com N grande! Quanto à saída da União Europeia, é uma reivindicação nada original.

A seguir, querem terminar com a ênfase materialista, hedonística,egoísta e carnal que certos elementos satânicos estão a impôr na nossa sociedade. Gostava de saber quem são estes elementos satânicos. Será o CDS-PP, o PSD, a Igreja Católica, a IURD, a Opus Dei, o Bloco de Esquerda ou o Clube de Futebol Real da Conchada?

Isto é só o início. No ponto três, reivindicam o regresso aos Valores Tradicionais da velha sociedade cristã Portuguesa focada em Deus,na Família e na Pátria. Obviamente que alguém que não é neofascista, mas que partilha somente alguns pontos com essa cambada quer um regresso aos Valores Tradicionais (com maiúsculas)… o que quer que isso seja. Suponho que seja algo do estilo “Fé, Fado e Futebol” aliado a transmissões em directo de autos de fé dos elementos satânicos de que falam acima e tudo fundamentado teoricamente por um qualquer autor de nome francês.

Quanto a medidas económicas, o PNP promete, se for escolhido, para além do fim dos impostos, um capitalismo popular, segundo a via Portuguesa, o que me parece um conceito algo interessante que gostaria de ver concretizado.

Quem disse que os pseudo-neofascistas não conseguem ser anarquistas? Vejam esta mestria na combinação daqueles dois ideais: Nós queremos a dissolução de todos os pactos e blocos politicos, económicos e militares,para que todos os Estados possam ser realmente independentes,depender dos seus próprios recursos e viver sob uma nova ordem internacional.

Apesar de o partido poder parecer pouco democrático, não é. Eles querem o pluralismo democrático e a diversidade de ideias desde os fascistas aos comunistas,passando por partidos regionais e locais,desde que seja respeitada a legalidade do jogo democrático. Na verdade, é tudo boa gente que conhece e respeita os valores do Estado de Direito.

E quanto à reforma do Direito Penal? O PNP/BDP pretende acabar com o aborto,legal ou clandestino; qualquer médico que o pratique será julgado e condenado pelo crime.A vida é sagrada e um ser vivo inocente que não pediu para nascer deve ser protegido e assumido pelos pais. Grandes respeitadores do Estado Democrático são eles a misturarem conceitos morais e religiosos com o Direito! Protecção assumida pelos pais? Quando há pais! E quando há só mãe? E quando há só pai? E quando não há nenhum? Como vai a criança sobreviver? É que, se bem se recordam, uma das medidas defendidas por estes cavalheiros é o fim dos impostos, que suportam os programas sociais.

Outra medida é a ilegalização da clonagem e a seminação artificial,porque essa prática satânica no fundo nega a existência de Deus,o homem não pode criar monstros sem alma. Nem vale a pena comentar…

Mais, querem a reintrodução da pena de morte em Portugal contra aqueles que praticarem crimes de sangue ignóbeis e horríveis contra outro ser vivo ou contra a humanidade. Resta saber o que é que são crimes ignóbeis e horríveis. Contra outro ser vivo… será que eles incluem moscas, piolhos, lêndeas e carrapatos nessa categoria? No entanto, o mais triste na defesa desta pena não é o facto deste partido a defender – no meio de tanto disparate até se torna normal -, mas já ter ouvido algo de semelhante vindo de pessoas que se afirmam grandes democratas e defensores da liberdade.

Outra medida é retirar o direito de voto a todos aqueles que praticaram qualquer crime social;como roubos,assaltos,violência,esturpo [penso que querem dizer estupro],sexo com menores, homossexualidade,corrupção,etc.Todos nascemos iguais em direitos,mas aqueles que violaram os direitos privados dos outros, acabaram no fundo por perder os seus direitos,que nos obrigam a respeitarmo-nos uns aos outros e não a destruir as liberdades. Não há nada como ir buscar medidas punitivas do Estado Novo para modernizar um Direito Penal!

Finalmente, querem que todos os Portugueses tenham o direito de usar automáticamente armas defensivas,e devidamente instruídos como responsabilizados, como forma de se defenderem do aumento da criminalidade e contra o abuso de poder por parte das autoridades policiais e governativas. Lembram-se do Bowling for Columbine?

O que pensam os Nacionalistas Portugueses/Bloquistas da Direita Portuguesa da eutanásia? Defendem o fim do movimento em prol da eutanásia que está tomando conta do país. E farão tudo para trabalhar conjuntamente com médicos,religiosos e comunidade científica para aliviar a dor e o sofrimento aos idosos e aos que sofrem de doença incurável ou terminal. Não permitirão que se ponham pessoas a dormir como se fossem animais. E que se dane o livre arbítrio!

Para acabar, as medidas educativas propostas. Primeiro, a reintrodução nas escolas e universidades as classes de Religião e Moral como disciplina obrigatória para os jovens e adultos. Querem voltar a introduzir a Bíblia,os dez mandamentos e rezar nas escolas e que os estudantes compreendem que a ética Cristã é a base da nossa sociedade e o mais alto ideal ao alcance do homem. Se calhar, antes de mais, deviam aprender a escrever porque esta gramática deixa muito a desejar. Ah, lembram-se do princípio da laicidade do Estado como corolário do princípio democrático? Pois bem, deve estar entre as coisas defendidas pelos satânicos.

Para os jovens que não consigam aprender a bíblia e os dez mandamento e, por isso, se percam defendem a reeducação desses jovens desencaminhados das nossas cidades, o treino, a colocação em centros reeducativos e disciplinadores para que a juventude tenha um sentido de responsabilidade,de pertença e um propósito. Nós podemos dar-lhes isso,nós institucionalizaremos um programa competente para limpar,planear e ajudar a criar o grande Portugal que visionamos num futuro próximo. Isto não é uma medida original: o Mao instalou uns campos deste género, o Stalin também e um dos ministros do actual governo português defendia algo parecido para as mulheres que abortavam.

Relativamente à comunicação social, são contra a instrumentalização da televisão e de toda a comunicação social pelo poder e polos partidos politicos e também contra a colonização cultural de que somos vítimas com a encenação da violência e da pornografia de sociedades em decadência como a Americana entre outras. Por isso, irão procurar incentivar a produção nacional em todos os sectores culturais e económicos da sociedade. Muito bem! Morangos com Açúcar e Anjo Selvagem vão ter sequelas!

Algo que acho deveras estranho é a inexistência de argumentos pró-racistas. Aliás, o PNP/BDP defende o fim de todas as formas de racismo e separatismo de certos elementos que querem dividir e alienar a multicultural sociedade Portuguesa. Claro que depois vem defender o ensino religioso obrigatório nas escolas públicas…

Falando a sério, não sei se este partido existe mesmo. De qualquer maneira, como disse um amigo meu, a democracia é um regime engraçado porque se esta gente estivesse ilegalizada (o que provavelmente está à luz dos preceitos constitucionais vigentes, nomeadamente do artigo 46º CRP), não teríamos com que nos divertir. O problema é que não sei até que ponto é que nos devemos rir – estas ideologias fascizóides e incongruentes podem tornar-se perigosas para qualquer Democracia.

27 de Maio, 2004 Carlos Esperança

Fátima, futebol e fados. Outra vez, não

Longe vão os tempos em que um médico português vaiado no estrangeiro por demorar três horas na extracção de um dente – segundo a comunicação científica que fazia – acabou com a plateia a aplaudi-lo de pé, depois de informada de que em Portugal não se podia abrir a boca.

Era o tempo em que o eterno ditador de serviço conseguia bater os especialistas a estabelecer a idade das múmias que eram encontradas no Egipto dos faraós. Bastava-lhe entregá-las à PIDE que elas acabavam por confessar.

Era quando um pobre bêbado que acabara de desabafar «que merda de País este…», encontrava logo um esbirro que o prendia. Depois de lhe ter jurado que se referia a Cuba, quando já recuperara a liberdade, o mesmo esbirro vinha de novo prendê-lo com o argumento, aliás respeitável, que «merda de país» só podia ser o nosso.

Os métodos anticoncepcionais que a Igreja e o Estado então consentiam reduziam-se à castidade e a atirar pedras às cegonhas, espécie de intifada contra a explosão demográfica. E ensinavam-nos que a Igreja era a nossa mãe e Salazar o pai, num país ansioso por ficar órfão de pai e mãe.

Ser patriota – diziam – era amar a pátria, do Minho a Timor. Não se contentavam com o amor à própria, exigiam a pátria dos outros.

Admiravamo-nos então que a Suíça, sem costa marítima, pudesse ter um ministério da Marinha, sem nos darmos conta que nós próprios tínhamos um ministério da Educação.

Vão longe esses tempos mas voltaram outros parecidos. Há no ar uma atmosfera que prenuncia um regresso. Postergam-se os interesses colectivos para atender caprichos particulares, vergam-se as consciências ao peso dos interesses, sepultam-se os princípios nos terrenos onde floresce o medo e medra a ambição.

Há outra vez um país do futebol onde os senhores da bola viram dirigentes políticos enquanto ao som do fado se vai de novo a Fátima à espera de um milagre.

Mas, para além dos três efes tradicionais que regressaram à sociedade há o receio de que a nós próprios nos atinja outro efe . E que a sua dimensão obscena nos esmague.

Longe vá o agoiro do quarto efe.

Estamos f

26 de Maio, 2004 André Esteves

E biba o porto!!!

Para quem não se lembra, descobrimos o emplastro na cova de St.Iria.

E a ICAR ainda se mete com «leis da exclusão religiosa» para ganhar na secretaria…

Devia era se preocupar com outra concorrência…

26 de Maio, 2004 André Esteves

Existe cura para o fanatismo?

Sim… Fica-se curado quando temos um canal de TV e desejamos respeitabilidade…

Devem faltar os temas no horário da IURD no canal Record… É o que dá quando as reuniões só servem para planear os objectivos de doações e dízimos. Depois faz-se tudo em cima do joelho…

O Diário de uns Ateus agradece.

25 de Maio, 2004 Carlos Esperança

Emigrantes bem sucedidos – 2.º Conto Piedoso

Delfina de Jesus e Simão Borrego casaram muito novos, no início da década de sessenta. Tinha ela acabado de fazer 18 anos e ele 19. E não foi por haver mouro na costa que é, como quem diz, ir ela já prenhe, infâmia de solteira que na aldeia o matrimónio lava ou as facadas de pai ou irmão reparam. Nada disso.

Não mereceria o ramo de laranjeira com que se apresentou na Igreja, descaramento murmurado por mulheres vigilantes e amigos do noivo que várias vezes viram desaparecer o casal por trás dumas fragas, enquanto eles se entregavam à prática do pecado solitário, ignorando os riscos da cegueira e da tuberculose com que o Sr. Padre repetidamente os prevenia na confissão e nas homilias.

Nunca se atreveram a aproximar-se pois sabiam da perícia com que Simão punha uma pedra no sítio que pretendia, corno de cabra rebelde incluído, perícia de pastor que os mantinha em respeito.

Limitavam-se a imaginar primícias saboreadas, corpos que se fundiam em êxtase, prazeres fantasiados, gozos por fruir.

As moçoilas da idade de Delfina compartilharam com ela muitas conversas sobre o namoro que os pais de ambos toleraram. Deviam saber coisas que as raparigas guardavam e de que os rapazes se gabavam ou ansiavam por conhecer. Talvez por isso a invejavam tanto sem a imitarem.

Temiam o pecado que lhes perderia a alma, receavam a prenhez que lhes complicaria a vida, adivinhavam a desgraça que lhes enlamearia a honra, imaginavam a pancada com que o pai ou um irmão lhes partiria os ossos. E assim iam resistindo aos olhares incandescentes, às palavras sussurradas, aos convites suspeitos, aos apelos alheios ou ânsias próprias. Até ao dia em que a natureza e as circunstâncias falassem mais alto. Até um dia.

Poucos meses depois do casamento começou Simão a cismar na guerra de África para onde, segundo o Sr. Padre, os nossos jovens iam defender a Pátria e a civilização cristã, combater o comunismo e o terrorismo, coisas de que ele pouco sabia e que o privariam da mulher com quem tanto folgava e a quem tanto se afeiçoara.

Em letras pequenas vira no jornal, entre vários, o nome dum amigo mais velho com quem fora tantas vezes aos peixes, com quem armara costilhos aos pássaros, com quem fora tomar banho ao rio da sua aldeia em véspera de ir às inspecções. Por cima do nome estava o título do costume – ?Ao serviço da Pátria? e depreendia-se que morrera por obrigação e que tivera sorte em poder imolar-se por tão nobre causa.

E foi assim que, alguns dias depois do desaparecimento de Simão, sem angústia dos pais ou mágoa visível da mulher, apareceram na aldeia dois senhores a fazer perguntas aos vizinhos, a ameaçar a família e os amigos e a obter declarações em longos interrogatórios no posto da G.N.R..

Constou-se que estava em França. Em breve chegaram notícias que o confirmara em carta, pois ele sabia ler, escrever e contar, finalidade da escola primária cuja instrução levara até ao fim. E só não foi mais longe nos estudos por não terem os pais achado necessário nem útil a quem tinha uma boa casa de lavoura, com uma horta ao pé da casa, campos de cereal, vastos terrenos de pastagens e uma boa quantidade de animais para cuidar.

Os pais nunca frequentaram a escola e, tirando o período da guerra e do racionamento que se lhe seguiu, nunca passaram fome. Para quê ter um filho doutor?

Esteve quase um ano Delfina, privada do homem e de alegria até que conseguiu ir ter com ele.

A aldeia foi esquecendo o casal. Os próprios pais, resignados à separação, pareciam tê-los esquecido também. Poucas foram as notícias que chegaram durante uma longa dúzia de anos.

Entretanto acontecera o 25 de Abril, a guerra de África tinha terminado, aos refractários era consentido o regresso. O País era outro.

Simão e Delfina regressaram à terra num automóvel de luxo numa noite de Agosto. Vinham passar férias. Depois da euforia do reencontro, das saudades matadas, das saudações que o prior lhes fizera na missa, em que publicamente agradeceu o donativo para as festas da Padroeira, donativo que o número de zeros tornava obsceno, depois de almoços e jantares para que convidaram toda a aldeia, o casal justou uma casa com piscina, comprou todas as propriedades disponíveis quase sem discutir preço, pagou o fogo de artifício para a festa da Senhora das Candeias, teve lugar de destaque na procissão e deu-se a todos os prazeres que o dinheiro pode comprar.

O casal foi muito acarinhado. Ambos demostraram saber ainda o nome das pessoas, não ter esquecido amizades e interessar-se pelos problemas da aldeia. Dispostos a acudir a dificuldades, interessados em dotar a terra com uma creche prometida pelos vários partidos em véspera de eleições e ainda não concretizada, logo fizeram o respectivo donativo em francos franceses que entregaram à Junta de Freguesia e que amplamente correspondiam às despesas necessárias.

Delfina era verdadeiramente a primeira dama da aldeia. Elegante no vestir, conservava os traços de beleza da juventude. Luziam-lhe ainda os dentes todos. Não se deixara engordar. Pela anatomia que um vestido de bom corte e discreta transparência deixava adivinhar, via-se que o tempo a poupara mais que o habitual. Parecia dez anos mais nova que as raparigas do seu tempo.

Simão mostrava uma ligeira curva na gravata que passara a usar, adereço que lhe destacava o bom gosto e acentuava o toque de prosperidade que o bafejara. Nem por isso usava qualquer distanciamento para com os seus velhos companheiros de infância. Pelo contrário, o tempo parecia ter robustecido os laços de amizade, a ausência cimentado o afecto, a distância aumentado a simpatia.

Foi numa dessas tardes de verão, na adega do Ezequiel, até então o mais rico da aldeia, colega de escola que ambos lograram concluir em quatro anos, amigo do peito desde sempre, que, depois de alguns copos e confidências várias, Simão revelou a chave do sucesso.

Depois de Ezequiel ter afirmado, por mera intuição, que em França se ganhava muito dinheiro, que a vida devia ter corrido muito bem a Simão, que devia ser possuidor de assinalável fortuna, ao que este anuiu, disparou-lhe:

– Mas em que é que tu ganhaste tanto dinheiro?

Prontamente o amigo o informou, em vernáculo, claro, de que era proprietário de um prostíbulo de homens e doutro de mulheres, estabelecimentos que criara e vinha desenvolvendo há longo tempo, depois de uma breve passagem pela construção civil, a dar serventia de pedreiro, nos arredores de Paris.

Surpreendido e elucidado mostrou Ezequiel compreender a razão de tão sólida fortuna. E exclamou:

– Então tu, Simão, nunca tiveste dificuldades em França!

– A princípio tive!…, rematou nostálgico, com ar de quem subiu a vida a pulso, lembrado dos tempos em que era só ele e a mulher.

25 de Maio, 2004 Ricardo Alves

Sim à Laicidade, não à Concordata (2)

Existem alguns aspectos da nova Concordata que são particularmente gravosos e que merecem portanto ser discutidos em detalhe.

1) Os artigos 1, 8, 9, 10 e 11 garantem o reconhecimento pelo Estado das instituições católicas, reconhecimento esse que será automático após uma notificação unilateral efectuada pelas autoridades eclesiásticas. Quaisquer outras associações formadas livremente pelos cidadãos estão obrigadas a seguir os trâmites da lei geral do associativismo, ou seja, a efectuarem uma escritura em cartório notarial, pagando os respectivos custos, bem como a publicação em Diário da República. A Concordata confirma assim dois regimes associativos distintos, um para as associações católicas, outro para as associações laicas.

2) As instituições católicas beneficiam de uma vasta lista de inaceitáveis isenções fiscais (ao contrário de um mito muito popular, apenas uma pequena parte destas instituições se dedica à assistência social, conforme será explicado num próximo texto). Embora haja algum recuo relativamente às isenções fiscais da Concordata anterior (nomeadamente, a isenção de IRS para os padres) não é claro se a nova Concordata não permitirá que continue o regabofe que tem mantido as livrarias católicas e os hotéis de Fátima isentos de impostos…

3) Uma vez que a Lei de Exclusão Religiosa abrira a possibilidade de algumas igrejas (que a ICAR decida reconhecer através da Comissão de Liberdade Religiosa, estatal mas por ela dominada) poderem realizar casamentos com efeitos civis, a nova Concordata mantém a outra distinção entre a ICAR e as igrejas “minoritárias”: a possibilidade de a ICAR efectuar divórcios com efeitos civis (artigo 16). Evidentemente, a anulação “canónica” do casamento é quase impossível, mas a nova Concordata recomenda paternalmente aos cidadãos casados catolicamente o “grave dever” de não se divorciarem (artigo 15)!

4) O artigo 19 garante o ensino da religião católica nas escolas públicas, com professores nomeados pela ICAR e pagos pelo contribuinte. Ou seja, a transmissão da crença, num espaço público e pago com dinheiro público, fica garantida por mais uma geração. Ora, a escola deveria servir para transmitir conhecimentos e não para propagar a crença. Se possível, deveria ajudar a formar o espírito crítico e científico dos futuros cidadãos…

A nova Concordata continua assim os piores aspectos da anterior. Estabelece a confusão entre o que é do domínio privado e da livre associação de cidadãos (a crença e as associações de crentes) e o que é do domínio público e estatal, como as prerrogativas estatais de criar instituições, de realizar contratos como o casamento, ou de decidir o que é ensinado nas escolas de todos.

Os aspectos enunciados neste texto e no anterior são mais do que suficientes para defendermos a não ratificação deste acordo concordatário. No próximo texto abordarei alguns mitos comuns que são usados pela propaganda católica nas discussões sobre a Concordata.