27 de Maio, 2004 Ricardo Alves
Sim à Laicidade, não à Concordata (3)
6-MITOS-6 DA PROPAGANDA CATÓLICO-CONCORDATÁRIA
1) A Concordata só prevê isenções fiscais para o trabalho de assistência social.
Falso. A Concordata prevê isenções fiscais para as associações “caritativas” (artigo 12), supostamente em igualdade com as outras associações da sociedade civil que efectuem o mesmo trabalho, mas institui também (artigo 26) isenções fiscais para todas as instituições católicas (ver ponto 1 do post anterior) incluindo a contribuição autárquica, o IVA, o imposto de selo, o imposto sucessório e a sisa. Ora, que se saiba, uma missa não é uma actividade de “solidariedade social”, e, por muito conforto privado que tal cerimónia confira às pessoas, não há qualquer razão para o edifício de uma igreja estar isento de um imposto público… (actividades como o ióga ou a psicanálise não gozam das mesmas isenções, apesar de terem funções semelhantes). Além disso, estas isenções fiscais têm sido, no passado, estendidas a negócios que nada têm de caritativo, como livrarias e os lucrativos hotéis de Fátima. Mais, até ao momento em que escrevo a profissão de padre confere isenção de IRS, e que se saiba um padre não é um assistente social, é um difusor de uma crença particular.
(E quanto ao “trabalho de solidariedade social”, a verdade é que é muito fácil fazer “caridade” com o dinheiro dos outros e perante os holofotes da comunicação social…)
2) O estatuto da Universidade Católica resulta da Concordata de 1940.
Falso. A Concordata de 1940, negociada entre Pio 12 e Salazar, estabelecia no seu artigo 20 a liberdade de criar escolas privadas, mas não universidades. O entendimento de Salazar foi sempre de que não havia qualquer obrigação do Estado de permitir a criação da Universidade Católica, e procedeu em conformidade até à sua queda da cadeira. Foi Marcelo Caetano, em 1971, quem autorizou a fundação da Universidade Católica Portuguesa.
(A origem deste mito é um decreto governamental de 1990 que afirma, extemporâneamente, que a UCP resulta do artigo 30 da Concordata. O autor do decreto é o Ministro da Educação Roberto Carneiro, membro do Opus Dei, professor da Católica e criador de mitos nas horas vagas.)
3) O Estado deve uma indemnização à ICAR pelas expropriações de bens de 1910.
Falso. A ICAR construiu o seu património, ao longo de séculos, à custa do erário público. Logo, nada haveria a devolver… A República procedeu efectivamente a expropriações de bens da ICAR, mas esses bens foram sendo devolvidos primeiro por Sidónio Pais e depois pela Concordata de 1940. A partir daí, as isenções fiscais dos últimos 64 anos têm sido justificadas pela propaganda católica como uma indemnização por bens que já foram, na realidade, devolvidos. Tal argumento é, portanto, hipócrita.
4) A República “perseguiu” a ICAR.
Falso. A Lei da Separação da Igreja do Estado, assim como outra legislação da República, fez o seguinte: terminou com o estatuto de funcionários públicos de que os padres gozavam; retirou o registo de nascimentos e casamentos à ICAR, instituindo o registo civil; legalizou o divórcio; laicizou o ensino público; autorizou todas as igrejas e comunidades religiosas por igual; suprimiu os subsídios de que beneficiara anteriormente uma delas (generosamente, Afonso Costa concedeu pensões aos padres que aceitaram a lei). Tudo isto é aquilo que é hoje dado por adquirido, num Estado moderno e numa sociedade secularizada e religiosamente diversa. Se alguém foi perseguido, foram todas as outras confissões religiosas, antes de 1910 e após 1926, e, desde sempre, os livre pensadores. Os judeus, muçulmanos, protestantes, agnósticos e ateus têm a dignidade de não pedir “indemnizações”. Mas lá que dá vontade…
5) A Concordata é necessária para fixar os dias feriados.
Falso. Os dias feriados podem ser fixados por qualquer lei geral da República, como acontece com o 5 de outubro e o 25 de abril. Porém, fazer do 1 de janeiro o “dia da Mãe de Deus” (sic, artigo 30 da nova Concordata) arrisca-se a ser motivo de chacota. Nessa data, os portugueses celebram desbragadamente deuses pagãos como Eros e Baco, não a hipotética “mãe de Deus” (Deus teve mãe? E pai também? E avós?).
Seria mais avisado instituir o Dia de Darwin, com vista à promoção do espírito científico, e o Dia de Giordano Bruno, em memória das vítimas da intolerância.
6) A Concordata é necessária para reconhecer o papel histórico e a implantação sociológica da ICAR.
Falso. Este mito remete para outro mais profundo, o do papel histórico, necessariamente bondoso e benfazejo, da ICAR, e implica objectivamente uma avaliação positiva do papel histórico da ICAR. Basta referir a inquisição, e o apoio da ICAR ao Estado Novo para arrumar a parte histórica. Quanto à expressividade da ICAR, a verdade é que a dita tem a influência que tem porque historicamente perseguiu todos os outros. Se não houve judeus em Portugal durante séculos, se há protestantes há pouco mais de um século, e se não há mais ateus confessos, é porque a ICAR sempre conseguiu usar o Estado para o seu proselitismo. A “implantação histórica” resulta portanto de vários crimes e conluios, e a nova Concordata continua essa tradição.