Loading

Categoria: Não categorizado

11 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

Crónica Piedosa

A PRIMEIRA COMUNHÃO:

Meio século depois vêm-me à memória as doces catequistas da minha infância. A menina Aurora e a sua Tia Ricardina ambas solteiras de muitos anos e beatas de quase tantos outros. Lembro-me do fervor com que me ensinaram a odiar os judeus porque mataram Cristo, os maçons porque perseguiam a igreja e os comunistas porque eram ateus. Recordo o entusiasmo que punham nas orações para que Deus iluminasse os nossos governantes e lhes desse longa vida, apelos ouvidos apenas no que diz respeito à segunda parte.

Nas aulas de doutrina explicavam-me a cor do firmamento, ao pôr do sol, como sendo o sinal de que os comunistas iam matar os cristãos, conforme a Irmã Lúcia tinha revelado, e eu, tão estúpido, que não deixava de ser cristão, com maior medo do Inferno e das suas labaredas, onde apenas se ouviam gritos e ranger de dentes, do que da morte que os ditos comunistas me preparavam.

Penso que era o medo da revelação do 3.º segredo de Fátima que me toldava a razão e me deixava manietado para outras reflexões. Sabia que Deus estava muito zangado, do mesmo modo que toda a gente o sabia, por ouvirmos dizer, bem entendido, e que devíamos rezar o terço para lhe aplacar a ira contra os que não eram crentes mas, não sei porquê, quem pagava éramos nós, talvez por Ele não ter jurisdição nos que não acreditavam, mas isso não podia ser porque Deus era omnipotente, eu só não percebia a obsessão da nossa parte em assumirmos culpas alheias e fazer pagamentos por conta, o motivo de termos de expiar os pecados alheios, isso na época não me admirava, havia muita solidariedade, eram grandes os sentimentos que nos animavam e nobres as devoções a que nos dedicávamos. Assim salvássemos a nossa própria alma de ser frigida no azeite das profundezas, combustível de sabor mediterrânico que alimentava os meios de produção da eterna justiça a cujo suplício estavam destinados os condenados.

Valia-me a certeza de fazer parte dos poucos, poucos é a gente a falar pois na aldeia eram todos, que podiam aspirar à bem-aventurança eterna. A nossa religião era a única que conduzia à salvação, todos os outros estavam errados e faziam muito mal em não se converter. A Santa Madre Igreja, Católica, Apostólica, Romana, estava aberta, nunca compreendi como é que podia haver quem se negasse à conversão e ao caminho da santidade que lhe eram oferecidos, como é que alguém podia duvidar de que o papa fosse o sucessor de Pedro e o representante de Cristo na Terra bem como serem os Senhores Bispos os sucessores dos Apóstolos! Como era possível que os judeus se não arrependessem de ter assassinado Jesus Cristo e persistissem no erro, que os moiros teimassem em permanecer infiéis, vá-se lá perceber a razão de ser mais fácil persistir no erro do que aceitar a salvação. Era tão difícil o entendimento, sobretudo a quem não conhecia a outra parte, e ainda bem, pois era dever de um cristão converter os outros ou, se eles o não quisessem, usar meios adequados para livrá-los do erro.

Por sua vez o Sr. Padre, depois da me ter examinado e aprovado no exame da catequese, declarou-me em condições de iniciar os preparativos para a primeira comunhão. De novo as catequistas se encarregaram de me preparar para a desobriga que a precedia. Foi durante a confissão que, genuflectido, depois de uma oração preliminar, me convidou a contar-lhe os pecados. Esforcei-me por me recordar das vezes que tinha posto o dedo na malga da marmelada sem saber se de um só pecado, repetido, se tratava ou de tantos quantas as incursões no vaso onde se guardava uma guloseima castanha e muito doce à espera de tentar uma criança. Dava voltas à memória para saber se tinha alguma vez mentido, se tinha maus pensamentos – e isso tinha – pensava em partir o pião dum colega acertando-lhe com o ferrão do meu, se tinha pecado por palavras ou obras, indiscutível matéria de reflexão e arrependimento, pois eu conhecia palavras feias que não cabia a um cristão pensar e muito menos pronunciar. Mas não era disso que cuidava o Sr. Prior na longa confissão, que eu entendi como proporcional à dimensão dos pecados ou, na melhor das hipóteses, como deferência para com o filho da Sr.ª Professora, mas eu não pensava nesta possibilidade, pois as crianças não são sensíveis à deferência nem à divisão em castas. O reverendo cuidava saber se eu praticava o pecado solitário, maldade de cujo ensinamento o medo que as outras crianças tinham da professora me havia até então livrado, e, perante a minha ignorância, preveniu-me piedosamente por antecipação, antes é que vale a pena não é depois do mal feito, preveniu-me – dizia – dos riscos da cegueira a que podia conduzir-me esse pecado, risco que me afligia bastante, bem como da tuberculose que, apesar da gravidade à época, eu não estava em condições de avaliar.

Perguntou-me ainda se eu fazia marranices, palavra com que acabava de me enriquecer o léxico, o que me deixou perturbado por ser um pecado que eventualmente eu cometesse sem saber, possibilidade de elevado grau de probabilidade pois aos pecados confessados não fora dada importância e aos pecados desconhecidos era dada uma particular e desvelada atenção, aumentando-me a ansiedade e sentimento de culpa, tanto maior quanto mais profunda era a minha ignorância. Explicou-me que o dito pecado era pôr-me em cima das raparigas e fazer zumba, zumba, zumba… e ficou ali a repetir a palavra algum tempo, como se tivesse esquecido o que estava a dizer, até ter recuperado a tranquilidade e ter-me mandado rezar o acto de contrição, que eu tinha na ponta da língua, completamente desinteressado já dos pecados de que eu carecesse de aliviar-me para salvação da alma.

Levei ainda de penitência uns tantos pai-nossos e avé-marias, coisa de pouca monta que me levou a acreditar que os pecados não eram tão pesados nem difíceis de expiar como eu tinha imaginado. A penitência foi cumprida nessa noite antes de adormecer, ansioso pela chegada da meia-noite, hora canónica a partir da qual não podia tomar qualquer alimento sólido ou líquido antes da comunhão onde ia receber pela primeira vez o corpo de Nosso Senhor que, não sei como, cabia numa rodela finíssima de pão ázimo sem fermento nem sal, ainda por cima partida em pedacinhos de que só me coube uma insignificância, de paladar péssimo, que não podia tocar com os dentes, não fosse morder o Senhor, e aquilo colou-se-me ao palato e eu tinha medo de levar lá a língua que podia incomodar Nosso Senhor, que devia ser muito susceptível, e eu a debater-me com aquele pedacinho de farinha que teimava em não se desfazer, mais parecia borracha com cola, mas que eu bem sabia que tinha um alto valor nutritivo como alimento da alma, embora me não desse conta, mas disso estava prevenido pela menina Aurora e pela sua Tia Ricardina, bem como pelo Sr. Prior que na véspera veio pela segunda vez examinar-nos e confirmar a nossa preparação para recebermos Nosso Senhor. Quem não estivesse preparado não era digno, eu era, por ser o melhor aluno da catequese, mas pareceu-me que os menos preparados se deram melhor com a sagrada partícula de que se aliviaram mais cedo do que eu e, de qualquer modo, não tinha havido reprovações.

Não sei se a comunhão me purificou a alma, mas sei que me estimulou o apetite. Foi com uma fome imensa que assisti ao fim da cerimónia da santa missa sem me dar conta que a gula, que começava a devorar-me, era obra do demo que aguardava, para tentar-me, provavelmente possesso, se é que o demónio pode estar possuído dele próprio, ou talvez desesperado na luta quotidiana entre o bem e o mal, qual lutador que não se resigna a atirar a toalha ao ringue, mesmo quando o combate é desigual, quando a alma se tonifica pela oração, penitência e comunhão que são poderosos demonífugos que obrigam o mafarrico a redobrados trabalhos para não perder a quota de mercado a que se julga com direito.

Antes de correr para casa em busca de vitualhas com que pudesse saciar a fome de dezasseis horas de jejum não me esqueci de me persignar, depois de ter molhado de água benta os dedos, mergulhados na pia de pedra que saía da parede ao lado da porta da igreja, água que, apesar do aspecto, pelas propriedades intrínsecas, havia de ser um poderoso desinfectante para as moléstias da alma e um profiláctico precioso para as tentações que o demo, na sua permanente vigilância e incansável dedicação ao trabalho, não deixaria de fazer.

E eu conhecia o segredo da água benta por tê-la visto preparar pelo Sr. Padre que se paramentou de propósito e transformou um cântaro de água vulgar na dita água benta através das modificações induzidas pelas rezas que acompanharam os sinais cabalísticos, cruzes imaginárias desenhadas no ar, por cima do dito cântaro, enquanto alguns garotos seguíamos com o olhar os tais sinais para ver quando se dava o salto dialéctico, isto é, a mudança da quantidade em qualidade, ou seja a mudança da água vulgar em benta, sem sabermos ao tempo o que era isso de salto dialéctico, mas sabendo reconhecer a diferença entre uma e outra, o que era muito mais importante para a eternidade a que não podemos fugir, e bem mais decisivo para a salvação da alma, que estas sociedades modernas querem fazer crer tratar-se de anacronismo, mas que não é, que o diga a Irmã Lúcia que na opinião do Prof. João César das Neves é uma intelectual que os outros intelectuais, que o não são, não aceitam, por arrogância ou despeito, por não terem sido chamados à santidade, vá-se lá saber o motivo, o Professor também não explica lá muito bem, mas sabemos que tem razão, pois até já escreveu vários livros e foi consultor do Prof. Cavaco e não se cansa em meios bastante hostis de alertar para a salvação que hoje, tal como no meu tempo de criança, devia ser um objectivo primordial, mas as pessoas estão menos interessadas no que diz o Papa que nos livrou do comunismo do que na Televisão, que só diz mentiras, e no que afirmam os políticos que são todos uns corruptos e mentirosos que dizem coisas diferentes do que vem na santa Bíblia e, por isso, não podem dizer verdades, e só falam no bem estar material, como se o bem estar material interessasse alguma coisa, como se a alma não fosse o bem mais precioso que as pessoas têm, mas, enfim, estamos a chegar ao fim do mundo e as pessoas não acreditam, a mensagem de Fátima é bem explícita, mas as pessoas não a compreendem, nem sequer compreenderam Sua Santidade quando anunciou o terceiro segredo, mesmo os peregrinos estavam desatentos e não compreenderam, vá-se lá pedir aos outros que compreendam, para isso é preciso ter sido tocado pelo dom da fé que cada vez falta mais, bem pode esforçar-se Nosso Senhor, se os homens não quiserem, depois não digam que não foram avisados.

Publicada no JF em 14 de Fevereiro de 2003

9 de Setembro, 2004 Mariana de Oliveira

Legislação deve conter referências a Deus e à lei divina

O arcebispo de Pamplona e Bispo de Tudela, D. Fernando Sebastián, criticou a intenção do governo espanhol de governar com leis laicistas uma vez que isso «não tem fundamento teórico sério nem é verdadeiramente progressista, mas sim supõe um retrocesso a teses e formas já superadas» e «algumas leis podem discriminar os católicos». O arcebispo duvida da modernidade e da laicidade de tais leis e afirma que «tão moderna é a bomba atómica como a Sociedade de Nações». Segundo ele, seria melhor promulgar «leis inteligentes, práticas, justas, capazes de favorecer verdadeiramente o bem autêntico e geral dos espanhóis».

Na sua carta pastoral «O laicismo que vem», D. Fernando Sebastián defende que a elaboração de leis que não incluam referências a Deus, à lei divina, à fé de cidadãos ou que não considerem as exigências da moral natural ou dos valores absolutos, «seria tanto como anunciar leis discriminatórias, que se ajustam à mentalidade de uns e não leva em conta a mentalidade de outros, que favorecem os que não acreditam em Deus e ignora os que acreditam nele e querem viver de acordo com a sua vontade».

Com esta posição, o senhor arcebispo esquece-se de todos aqueles cidadãos que não partilham os mesmos valores morais do cristianismo, que têm diferentes religiões ou que não têm nenhumas e esquece-se também que o Direito, para o ser num Estado Democrático, não pode sofrer influências religiosas. Mas, parece, que tudo isto são pequenos pormenores que podem ser relegados para um segundo lugar quando está em causa a manutenção da influência da ICAR nos poderes executivo e legislativo.

9 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

Emídio Guerreiro – um cidadão exemplar

A corroborar o artigo sobre «o epicurista Emídio Guerreiro» de Palmira F. da Silva, vale a pena transcrever dois parágrafos do artigo «A Capital», de Rogério Rodrigues:

«Emídio Guerreiro estava cansado, mas mesmo assim quis servir de guia aos seus convidados no Centro de Solidariedade Humana que leva o seu nome, pago por si e gerido pela Santa Casa da Miserisórdia a quem ele faz rasgados elogios.

Instalações quase semelhantes à de um hotel, onde o professor vive, depois de se despojar de todos o seus bens imobiliários (falta ainda vender o apartamento de Paris), não têm, contudo, à semelhança de outras casas como esta, crucifixos ou símbolos religiosos. Foram substituídos por bustos de homens que marcaram a evolução da Humanidade nas várias vertentes da sensibilidade e conhecimentos humanos. Assim, podemos ver, espalhados pela grande sala, estatuetas de Darwin, Vitor Hugo, Verdi, Mozart, Luís de Camões, Da Vinci, Descartes, Newton e Einstein».

8 de Setembro, 2004 André Esteves

Fait-divers dos Últimos Dias

Termina inquérito financeiro a Igreja Pentecostal fechada por escândalo sexual de casal de pastores.

Londres, Inglaterra.

Foram publicados os resultados do inquérito ao escândalo que rodeou o Centro Cristão da Vitória, uma igreja carismática de pendor pentecostal. Seguindo o escândalo sexual com o auto-proclamado pastor pentecostal Douglas Goodman, o inquérito descobriu que a igreja detinha mais de 200.000 libras de dívidas apesar de ter obtido 3.5 milhões de libras de rendimento no auge da actividade.

Sediada num antigo cinema, o Centro Cristão da Vitória conseguiu atrair um grande número de fiéis em pouco tempo com a sua mensagem carismática e de fim do mundo. Apesar de todo este sucesso evangélico, o pastor não resistiu à tentação e montou uma rede de «persuasão» entre as suas crentes mais jovens para obter favores sexuais.

Ostentando na altura da sua prisão, uma mansão de 5 quartos e uma frota de carros de luxo, o pastor foi preso e condenado a três anos e meio de prisão por abuso sexual. Do dinheiro desaparecido da igreja não se sabe o rasto. A sua mulher, agora pastor de uma nova igreja, a igreja cristã de Vitória em Vitória continua a pregar e a viver faustosamente.

A Notícia [Inglês]

Igreja Cristã de Vitória em Vitória [Inglês] – Decididamente uma igreja moderna, até se podem fazer «doações» através do cartão de crédito. No site também encontramos a oferta de um vídeo de promoção da igreja, com o pastor em bikini. Outro pormenor também interessante é o texto no site que informa: «Instituição sem fins lucrativos. Não fazemos caridade.»

Pai de nove filhos, circuncisa filho de 8 anos depois de ler a bíblia.

Clark County – Ridgefield, Estado de Columbia, EUA

Tendo acabado de ler Gênesis 17 (onde o Deus Jeovah passa a cobrar a Abraão e aos seus descendentes, por acordo de monopólio espiritual, um imposto em carne pudenda), Edwin Baxter, camionista de profissão, resolveu cumprir o mandamento do senhor e chamou o seu filho de 8 anos. Depois de lhe ter explicado o versículo, prosseguiu com a circuncisão da criança, utilizando para o efeito,uma faca de mato. A criança acabou no hospital por complicações e o pai, preso, foi apresentado ao tribunal por assalto de 1º grau a menor.

Imaginem o que aconteceria se todos os trolhas e camionistas de Portugal começassem a ler a Bíblia… Aiii!! SOCORRO!!!

A Notícia [Inglês]

Bola de excremento congelado cai em cima de picnic austríaco: Nenhum avião à vista…

Graz, Áustria

Enquanto faziam um churrasco, o barbecue de uma família austríaca foi subitamente atingido por uma bola gelada, reduzindo o aparelho de cozinha a estilhaços. A mãe de família guardou uma amostra do projéctil, que analisado pela polícia veio a revelar-se ser uma bola de merda congelada. A senhora expressou a sua surpresa, dado que não tinham visto nenhuns aviões, por cima do picnic, durante o dia todo.

Aparentemente até no céu é difícil encontrar um bom canalizador. Eis que mais uma dúvida se levanta sobre a omnipotência de Deus!

A notícia [Inglês]

8 de Setembro, 2004 Palmira Silva

O epicurista Emídio Guerreiro

Para além do que Carlos Esperança referiu no seu artigo de homenagem a um dos homens mais marcantes do Portugal contemporâneo, descobri nas entrevistas que Emídio Guerreiro concedeu ao Diário de Notícias e à Pública que ele se assume como um epicurista, ou seja, seguidor da linha filosófica da Grécia clássica mais denegrida pela ICAR. Epicurus, que ensinava no seu jardim escravos e mulheres, algo inaudito, para além de precursor do pensamento científico moderno, tendo introduzido o conceito de movimento aleatório e desenvolvido o atomismo de Leuccipus e Democritus, foi o primeiro ateísta de que há registo histórico.

O epicurismo foi continuado em Roma destacando-se nos seguidores romanos Titus Lucrecius Carus (98-55 a.C.) e a sua obra De Rerum Natura (A Natureza das Coisas). Do ponto de vista filosófico, o atomismo deixa pouca ou nenhuma margem para a intervenção divina, nomeadamente negava o milagre da transmutação do pão e vinho em carne e sangue, sendo considerado heresia pela Igreja Católica. A redescoberta do poema de Lucrecius na Renascença foi fulcral para o estabelecimento das bases do pensamento científico renascentista. Giordano Bruno, queimado vivo no Campo dei Fiori em Roma, por ordem do agora santo cardeal Bellarmino, foi um epicurista.

Alguns excertos das entrevistas a Emídio Guerreiro:

«O terceiro milénio será, na minha opinião, o milénio da desalienação humana. O homem criou mitos, depois confiou atributos a esses mitos, depois sujeitou-se a eles. Agora vai-se libertar deles.»

«Há um filósofo grego, Epicuro, que tem uma concepção maravilhosa sobre o que é a morte: Enquanto tu és, a morte não existe, enquanto a morte não está, tu estás. Depois, é o nada absoluto.»

«Mas só a partir de Descartes [1596-1650] é que o racionalismo passou a ser um instrumento para construir a própria razão humana. Pela dúvida metódica, passo a passo, procede-se para o conhecimento de uma verdade que permite alcançar o conhecimento de outra verdade. Chega-se à verdade formulada, sem imposição de uma verdade revelada.

Não foi pouca coragem a dele para o dizer, pois nessa altura realizava-se o julgamento, terrível, de Galileu Galilei [1564-1642].»

«Desde tempos imemoriais que o homem vive em sociedade, pelo menos desde o tempo em que Prometeu lhe comunicou o segredo do fogo. Com a agricultura fixou-se e deixou o estado selvagem. A partir daí teve que sujeitar-se a hábitos, costumes, a leis que ele próprio fez. Data daí a alienação do homem. Ele criou determinadas noções, às quais se sujeitou, e que depois acabaram por aliená-lo, moldá-lo numa outra natureza,(…) por exemplo, a noção de deus é aqui em Portugal maioritariamente católica. Mas a história da construção deste ser transcendental, que na origem parece ser uma atitude irracional, é própria do homem, da sua razão humana. Foi uma maneira de interpretar a natureza. Os fenómenos que a ciência não sabia explicar foram atribuídos a uma força superior, o que, independentemente da validade da atribuição, é uma explicação. Daí que para se explicar a si mesmo, tenha criado um deus à sua imagem e semelhança.»

8 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

Notas piedosas

Matrimónio – Com a experiência que se lhe conhece sobre o assunto, João Paulo II advertiu o novo embaixador do Canadá, Donald Smith, quando da entrega das cartas credenciais junto da Santa Sé, de que «só o matrimónio entre um homem e uma mulher pode garantir a sobrevivência de uma sociedade e sua cultura, pelo que não se pode equipará-lo às uniões entre pessoas do mesmo sexo».

Comentário: Ou o embaixador é gay e a advertência foi deselegante, ou não é e foi despropositada.

A paixão de CristoO bispo de Phoenix, D. James Olmsted, atribuiu o sucesso do filme com o mesmo nome ao profundo desejo que o mundo tem de comunhão com Cristo, acrescentando que a Paixão continua presente na Igreja cada vez que celebra a Eucaristia. Por isso – disse – a celebração eucarística está acostumada a ser chamada o Santo Sacrifício da Missa.

Comentário: A ICAR acusou os judeus de terem matado Cristo e, durante dois mil anos, continua a servir o corpo e o sangue do falecido em rodelas eucarísticas.

Padroeira do Brasil – O Vaticano despachou para o Brasil o Cardeal Eugénio de Araújo Sales, enviado papal, para assistir à grande festa pela coroação de Nossa Senhora da Aparecida. Hoje, 8 de Setembro, o Cardeal celebrará uma Missa solene de aniversário, depois de ler uma mensagem de JP2, e, por fim, repetirá o gesto de há um século: a coroação da santa.

Comentário: Pelos vistos, o prazo de validade de uma coroação dura um século.

7 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Do Androids Dream of Electric Sheep? Ou Da Ethos e da Mores

O Ateísmo, uma das poucas palavras a respeito de posições filosóficas de que a maioria das pessoas entende a etimologia e sobre a qual julga saber o suficiente mas normalmente cai em estereotipos e preconceitos reducionistas, não se restringe ao que o dicionário nos informa. Nomeadamente é assumido como indiscutível que moral ou ética são impossíveis sem uma base religiosa e os ateístas são assim estereotipados como indivíduos sem moral.

Nada mais longe da verdade, como espero clarificar nesta série de posts iniciados com Ética, livre arbítrio e pecado original.

Embora por norma se usem indistintamente moral e ética para designar as regras de comportamento que regem as sociedades, o pequeno preâmbulo etimológico que se segue pretende recuperar o significado original de ética que foi perdido no antropocentrismo das religiões do livro. Ou seja, a moral é indissociável da capacidade de salvaguardar o êthos, a morada humana, o planeta Terra global que habitamos.

Ética – do gr. êthos significa originalmente morada, seja o habitat dos animais, seja a morada do homem, lugar onde ele se sente acolhido e abrigado. Derivada desta surge ethos, que restringe a espacialidade à interna e significa carácter e os seus hábitos. A ética será assim a morada humana construída e incessantemente reconstruída a partir do ethos, por um trabalho conjunto da sociedade, possível por consolidação de hábitos e disposições internas que visam o bem comum.

Moral – do latim mores, hábitos ou costumes.

As normas de comportamento ou moral são indispensáveis para o bem estar e sobrevivência de um grupo, seja ele de humanos ou não. Como escreve Damásio2 «espécies animais extremamente simples [podem] exibir comportamentos sociais inteligentes». Assim, desde os primórdios da história da humanidade, o Homem social para sobreviver teve de adoptar uma série de regras, uma moral evolutiva que acompanhou a evolução neuro-biológica e social do homem.

Só é possível uma compreensão do ser do homem se percebermos que a mente, bem como as emoções, a moral e os sentimentos, são indissociáveis dos mecanismos de regulação biológica. Na realidade aquilo a que chamamos moral não é mais que um conjunto de fenómenos biológicos que permitem resposta rápida a estímulos exteriores*. Os avanços científicos em áreas como as neurociências, que estabelecem a ponte entre as ciências da vida e as ciências do homem (antropologia, ciências cognitivas e psicologia), permitem-nos uma explicação livre de dogmas sobre os fundamentos dos nossos comportamentos morais e até explicam a biologia das crenças religiosas.

Voltando ao comportamento ético, o ponto que quis vincar com este post foi o de que a ética tem bases evolutivas e os valores éticos são, ou deveriam ser, aqueles que melhor contribuem para a preservação dos grupos sociais e do respectivo habitat. Na nossa era de globalização quer o grupo social quer o habitat dever-se-iam alargar a toda a Gaia que habitamos. E, especialmente, que a ética ou a moral não têm nada a ver com religião, não obstante a tentativa de apropriação por parte das religiões, cheias de dogmas e tabus irracionais, da supremacia da moral.

A ética cristã assenta na natureza intrinsecamente má do Homem, causada pela dentadinha na maçã da pérfida Eva, e na supressão virtuosa dessa natureza humana, por obediência a ditames divinos. A ética ateísta pretende não só devolver ao Homem a dignidade que as religiões do livro lhe sonegaram como combater o antropocentrismo autista que estas promovem.

Alguma Bibliografia

Sobre as spindle cells, neurónios morais, que existem apenas no homem e, em menor abundância, nos primatas superiores recomendo: um artigo científico nos Proceedings of the National Academy of Sciences (US): A neuronal morphologic type unique to humans and great apes e um artigo para o público em geral, no International Herald Tribune: Humanity? Maybe it’s all in the wiring.

*Sobre a moral biológica:

1- Richard Dawkins O Gene Egoísta (Gradiva- Colecção Ciência Aberta)

2- António Damásio Ao Encontro de Espinosa: As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir (Publicações Europa-América, 2003)

3- William A. Rottschaefer The Biology and Psychology of Moral Agency (Cambridge Studies in Philosophy & Biology)

4- The Neural Correlates of Moral Sensitivity: A Functional Magnetic Resonance Imaging Investigation of Basic and Moral Emotions

5- The Neural Basis of Altruistic Punishment

6- An fMRI Investigation of Emotional Engagement in Moral Judgment

7- Social Cognition and the Prefrontal Cortex

7 de Setembro, 2004 Mariana de Oliveira

ENA2 na imprensa V

União de Ateus reclama direitos iguais



Ontem, foi dado o primeiro passo para a constituição da União Ateísta Portuguesa. Pela primeira vez, os que não acreditam em Deus reúnem-se e reclamam a igualdade de direitos entre crentes e não crentes. No entanto, algumas curiosidades teimam em povoar as vidas dos ateus e a reclamá-los para o reino dos que acreditam num ser supremo.

Cerca de 25 pessoas reuniram-se ontem à volta de uma mesa no Centro Republicano Almirante Reis, em Lisboa. Em comum, têm o facto de serem ateus, ou seja, não acreditarem na existência de nenhum deus. Durante o segundo encontro nacional – o primeiro decorreu em Dezembro do ano passado, em Coimbra -, foi lançada a primeira pedra da União Ateísta Portuguesa.

Apresentado o traço comum, ouvem-se conversas que denunciam muitas diferenças. Essencialmente, debatem-se questões, ouvem-se opiniões e reflecte-se. Todos gostam de frisar que pensam pela sua própria cabeça e que as semelhanças acabam no ateísmo. Que convém distinguir de agnosticismo: que assume a incerteza e o desconhecimento.

Paula Alves, 21 anos, chegou ao Centro Republicano “por acaso”, apesar de perfilhar a mesma forma de estar na vida. “Vim com um amigo, mas partilho os ideais e sinto que o debate é importante”, explica Paula, que aos 13 anos soube que a sua natureza era inconciliável com a crença num deus todo-poderoso.

Paula também sente a necessidade de se associar. “Sinto que existem muitas pessoas isoladas e sem um local onde se possam dirigir para tirar as suas dúvidas”, defende a jovem, que teve uma educação marcadamente católica com idas à missa e direito a baptizado e primeira comunhão.

Conta que aos 13 anos, por intermédio de conversas entre amigos e algumas leituras, começou por questionar a existência de Deus e acabou por mudar o rumo à sua vida. Apesar da certeza, ainda não confessou a mudança aos avós, com quem vive. “Não discutimos o assunto, eles sabem que não vou à missa, mas não sabem se sou apenas uma católica não praticante. Também nunca esclareci o assunto, porque é o tipo de coisa que não leva a lado nenhum”, pensa.

Cada cabeça, sua sentença. Cada corpo, uma história de vida. A presença de Ludwig Krippahl no segundo encontro de ateus, em Portugal, não é obra do acaso. Apesar de ser jovem, Krippahl já tem ligações ao movimento associativo, pois é presidente da Associação de Cépticos de Portugal (CEPO). “E sou ateu”, apressa-se a clarificar.

As ligações a outras das pessoas presentes na reunião também contribuiu para a sua presença. ?Objectivamente não há indícios de que Deus exista?, explica. Questionado sobre quando se deu esse “clique”, Krippahl faz um esforço de memória, mas conclui: “Desde que me lembro nunca achei que houvesse indícios da existência de Deus.”

“Para mim é mais fácil aceitar que Deus não existe num mundo onde uma criança pisa uma mina e fica sem as duas pernas. O Universo não é compatível com um Deus bom. Se existe é necessariamente mau ou tem um sentido de humor muito mau. Se existir, não é uma pessoa que gostasse de conhecer”, acrescenta.

Apesar de ser ateu e céptico, Krippahl tem as suas próprias crenças. “Todos os nossos valores pessoais são crenças. Acredito que é bom estar vivo e que gosto muito dos meus filhos.” O dirigente da CEPO explica a diferença entre os conceitos de cepticismo e ateísmo: “O nosso cepticismo não se prende com as crenças das pessoas, mas com as suas afirmações. Distinguimos a opinião subjectiva da análise objectiva. Um céptico pode perfeitamente dizer ‘eu acredito no Pai Natal’. O que tem de evitar é ‘afirmo que o Pai Natal existe porque eu acredito’.”

Apesar de cepticista e ateu, Ludwig Krippahl casou pela Igreja Católica. “Casei pela Igreja por causa de familiares, que gostavam que assim fosse. Também não acredito no Pai Natal e não deixo de passar o Natal com a família.”

Uma das coisas que mais revoltam Krippahl é a “intrujice”. “Quem quiser acredita em Deus, o que considero revoltante é a intrujice que há à volta dos milagres. Não se deve acreditar em Deus porque senão vai-se parar ao inferno”, defende. De acordo com Krippahl, a principal luta da União Ateísta Portuguesa deve passar pelo combate à crença em Deus por imposição ou herança familiar, através da informação e divulgação de factos cientificamente provados. A importância de constituir o movimento é ainda fundamental para “mostrar que é possível não escolher qualquer religião.”

UNIÃO. A primeira pedra para a criação da União Ateísta Portuguesa foi dada ontem pelas vinte e cinco pessoas presentes no segundo encontro nacional de ateus. Mas o início deste processo remonta a Agosto de 1999, quando foi criado o site www.ateismo.net, que assumiu o papel de ponto de encontro entre os ateus portugueses.

Cerca de 180 pessoas recebem regularmente informações do site, apesar de no encontro ter comparecido menos de um sexto deste número. Mas de acordo com Ricardo Alves, organizador da reunião e membro fundador da Associação República e Laicidade, os Censos de 2001 registaram um leque muito mais vasto de não crentes: 340 mil pessoas. Resta saber por onde param.

“É um número superior ao de qualquer minoria religiosa. Por exemplo, existem 12 mil muçulmanos, 1800 judeus e a Igreja Católica reclama 1900 praticantes”, defende. A possibilidade de criar uma associação que represente os ateus portugueses é um desafio para Ricardo Alves, pelo facto “de serem todos livres e independentes”. Ou seja, as semelhanças acabam na ausência de crenças religiosas.

O dirigente considera que a utilidade da associação aumenta na proporção “em que em Portugal existe cada vez mais um catolicismo de fachada.”

Na reunião, foi aprovada, por aclamação, a constituição da União Ateísta Portuguesa e a discussão sobre os estatutos já começou. “Não concordamos com a educação moral e religiosa nas escolas públicas – pois nós consideramos que devia ser um ensino laico -, nem com os direitos judiciais concedidos aos padres, que não são incriminados judicialmente por não divulgarem segredos ouvidos em confissão.”

A solução ideal passa mesmo pela exclusão da disciplina de educação moral e religiosa do programa do Ministério da Educação. “A divulgação deve-se fazer nas igrejas. Tal como não concordamos com a existência de crucifixos nas escolas públicas, já que foram instrumentos de tortura noutras altura”, atesta.

Ricardo Alves acredita que “os deuses são criações da imaginação dos homens, alimentadas pela necessidade de explicar factos da natureza para os quais não existia então explicação, mas também surgiram como uma forma de legitimar o poder político.”

FADAS E GNOMOS. Já Onofre Varela considera incompreensível que em pleno século XXI “existam pessoas que acreditam em Deus a partir do nada?. ?É uma crença inocente igual a acreditar em fadas e gnomos”, acrescenta um dos mentores da União Ateísta Portuguesa, jornalista agora na reforma.

Tirar os ateus do quarto escuro é a meta que a associação pretende atingir mais facilmente. “Considero que os ateus são ignorados, são mesmo vetados”, confessa, ao mesmo tempo que sublinha já ter sentido pressões sociais por assumir-se. Mas mais uma vez confirma: “Tudo o que continua por explicar será esclarecido pelas ciências.”

Alertar consciências é outro propósito que se pretende atingir com a criação da associação. “A crença em Deus tornou-se um comércio e gera especulações políticas e sociais muito grandes, como agora na questão do aborto, por exemplo, através da utilização do mandamento ‘não matarás’.”

Outro dos objectivos é a associação tornar-se parceiro social na discussão de matérias ligadas à educação. “Nas escolas, a religião só devia entrar de um modo histórico e não de uma forma confessional”, opina Onofre.

A oposição à Concordata une os ateus, que consideram que este tratado internacional concede privilégios aos católicos. Actualmente, vigora em Portugal a Concordata, de 1940, mas um novo documento aguarda aprovação da Assembleia da República.

Os ateus criticam o facto de a nova Concordata assumir a categoria de um tratado internacional entre dois Estados (Portugal e Vaticano) e, por conseguinte, só poder ser alterada com o mútuo consentimentos das partes. Refira-se ainda que as outras confissões religiosas estão sujeitas à Lei da Liberdade Religiosa, o que as coloca sob a alçada da Comissão de Liberdade Religiosa, sob a tutela da Igreja Católica Apostólica Romana.

Maria Teresa Horta

“Acho muito curioso a criação de um grupo de ateus. Apesar de ser ateia, não sinto necessidade de me organizar. Penso que não é por aí que as coisas se resolvem, mas a reflexão é salutar. Também tem que ver com o Código Da Vinci [livro de Dan Brown], que retorna ao mistério e à busca da espiritualidade. Na mesma medida, revelam-se forças contrárias, como é o caso dos ateus. Nunca fui convidada pelo grupo, mas se fosse era capaz de participar. Quando tive as minhas dúvidas esclareci-as com um padre da Igreja São João de Deus. Como ateia, já sofri alguns dissabores. Quando andava na escola, a mãe de uma amiga minha quis falar com a minha mãe, porque achava que eu não era uma boa companhia.”

Francisco Louçã

“Não conhecia o grupo, nunca fui convidado, mas também não tenho nenhuma inclinação para isso. Mas considero legítimo as pessoas associarem-se. Nunca fui discriminado por ser ateu, pois nasci numa família com liberdade religiosa. Mas a minha filha, quando, há poucos anos, frequentava uma escola primária, em Lisboa, cuja professora era católica, deixava-a na varanda, inclusive no Inverno, quando leccionava religião e moral. Depois, pediram-me desculpa, e o assunto foi resolvido, mas considero que é uma anormalidade. Comigo, nem no tempo do fascismo senti qualquer tipo de pressão por não acreditar em Deus. Acho também, incrível que a Universidade Católica seja a única que não precise de autorização do Estado para criar novos cursos.”

Isabel do Carmo

“Considero que a questão de as pessoas serem religiosas ou ateias está ultrapassada. Acho mais lógico e moderno a criação de grupos laicos ou agnósticos. Eu sou agnóstica, pois não tenho certezas de nada, tenho uma posição mais aberta. Mas cada vez estou mais convencida de que não existe um deus supremo ou um super-homem a comandar o Mundo. Não sou baptizada e a minha família não é católica. No tempo da ditadura, quando andei no Liceu de Setúbal, onde havia muitas pessoas de esquerda, era a única menina não baptizada. Um padre tenebroso disse-me logo: ‘Então a menina é comunista!’. Durante os cinco anos de liceu sofri muitas pressões e tive imensas discussões.”

in A Capital, 05 de Setembro de 2004

Leia a resposta de Carlos Esperança ao artigo.