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19 de Setembro, 2004 Mariana de Oliveira

TPI Ruanda julga padre genocida

Pela primeira vez, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda julgará, a partir de amanhã, um responsável religioso católico acusado de ter participado activamente no genocídio de 1994. Este processo permitirá lançar luz sobre a actuação de alguns «homens de Deus» na chacina que arrasou aquele país africano, maioritariamente católico, quatro anos depois de uma visita de João Paulo II.

O padre Athanase Seromba, de etnia hutu, é acusado de ter preparado e supervisionado, juntamente com responsáveis locais, em Abril de 1994, a matança de mais de 2000 tutsis que se tinham refugiado na igreja da paróquia de Nyange. O religioso é também acusado de ter destruído parte do templo com uma escavadora cujo desabamento da estrutura sobre os fieis esteve na origem de um dos massacres da história do genocídio que causou 800 000 mortos entre os tutsis e hutus moderados, segundo a ONU.

Seromba abandonou o país antes da vitória dos rebeldes tutsis da Frente Patriótica, em Julho de 1994, e que acabou com o genocídio. O padre esteve primeiro refugiado na actual República Democrática do Congo, depois no Zaire e, finalmente, encontrou asilo em Florença onde lhe foi dada uma pequena paróquia na Toscana. Antes de se entregar, em 2002, à Justiça, a Itália recusou-se a aplicar um mandado de prisão internacional emitido pelo TPIR.

A Igreja Católica sempre insistiu na presunção de inocência dos seus membros e mostrou-se deveras reticente em prestar colaboração com as entidades judiciais dos diferentes países acusadores. No caso do padre ruandês, a alta hierarquia católica sempre o apoiou, afirmando que nada demonstra a sua culpabilidade.

Questionado acerca do apoio do Vaticano ao genocídio do Ruanda, o porta-voz do TPIR, Roland Amoussouga, disse que «não é um processo sobre o Vaticano, é um processo sobre o indivíduo» e reiterou que «é o indivíduo e não a instituição que está em causa» e que o «Vaticano nada tem a ver com este assunto».

A provarem-se os factos constantes na acusação, é grave ver indivíduos que fazem parte da ICAR envolvidos nestes trágicos acontecimentos e ver que as mensagens de tolerância que são propagadas pela Igreja são vazias de significado. Na verdade, raramente o tiveram e raramente foram seguidas por ela.

19 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

Crónica Piedosa

A Senhora do Monte

Nas aldeias da Beira Alta era hábito rezar, pelas intenções plenárias de cada mês, nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, ir ao confesso e à eucaristia e, assim, alcançar as indulgências exigidas para a salvação da alma. Podia parecer injusto pôr garotos a rezar por pecados dos adultos, mas já se sabia que outros garotos o fariam quando adultos se tornassem esses para apreciar os pecados. Ficavam as rezas para as mulheres, que sempre as fariam, para os que ainda não sabiam pecar e para os que, sabendo, já não podiam. Era assim, há meio século, e disso se não livrou a criança que fui. Além das devoções locais outras havia que se cumpriam em paróquias próximas, que os transportes não permitiam lonjuras, com dia certo e local aprazado. A Senhora do Monte era um desses destinos.

Guardo da infância o gosto por romarias. Os santos domiciliavam-se no alto dos montes para ficarem a meio caminho entre os devotos que lhes pediam e o céu que os atendia. Eram mensageiros dedicados, imóveis numa peanha, ouvindo queixas, aceitando petições, a aliviarem o sofrimento. Raramente eram solicitados além das suas posses e, se soía, resignavam-se os mendicantes. Quanto mais perto do céu, maior respeito infundiam, mais petições recebiam, maiores expectativas geravam. Eu ficava a imaginar do que seriam capazes os que habitavam no cimo de montanhas muito altas, que sabia haver, sem cuidar das dificuldades de acesso dos requerentes.

Durante o ano, os santos concediam graças que eram agradecidas em Agosto com foguetes, missa e uma romaria profana que irritava os padres e alegrava os santos. Mas, de tanto pedirem, foi-se Deus cansando de os ouvir, primeiro, desinteressaram-se os crentes de implorar, depois, ou, talvez, a sangria da emigração converteu em deserto o terreno fértil da fé. É com saudade que recordo as ermidas abandonadas que outrora atraíam à sua volta feiras e procissões em confronto dialéctico do sagrado com o profano numa síntese admirável de que só o mundo rural era capaz.

A Senhora do Monte pertencia à paróquia da Cerdeira. Às vezes os santos tomavam as dores dos paroquianos e geravam a desconfiança dos vizinhos, mas não era o caso, por ser de concelho diferente e não haver rivalidades entre as paróquias.

Saíamos da Miuzela do Côa, manhã cedo, descíamos a aldeia, passávamos pela capelinha de S. Sebastião, deixando à direita, encostada ao cemitério, a vinha do passal que, no tempo da República, Paulo Afonso comprou à autoridade administrativa, valendo-lhe a excomunhão eclesiástica, vingança do pároco que reclamava a vinha e o regresso da monarquia. Viveu o réprobo em paz, sem que o anátema o apoquentasse, até ao dia em que teve de pedir a desexcomunhão, para que o filho pudesse franquear o seminário, custando-lhe a canónica amnistia outra vez o valor da vinha.

À beira do caminho havia agricultores, inquietos com a romaria, a guardar os melões, que a rapaziada cobiçava, e, ao longe, entre giestas, lobrigavam-se cachopas, deambulando à espera do encontro apalavrado, talvez mesmo alguma coitanaxa aflita por tornar-se dona.

Íamos pela fresca e regressávamos tarde, de estômago menos vazio, com fritos e vinho a justificarem a jornada, esquecida a devoção, a tropeçar nas pedras em noites de lua nova. Atrás de nós via-se um clarão, vindo da Guarda, à distância de seis léguas, no alto do monte onde chegara a luz eléctrica, com a ermida de onde voltávamos perdida na escuridão da noite.

A Senhora do Monte há muito que não fazia um milagre de jeito mas tinha festa rija e um passado de respeito. Um dia o fogo subiu o monte impelido pelo vento e envolveu a capela, com gente aflita a orar. Abriram as portas e redobraram as orações, que em tempo de aflição se reza mais depressa para compensar a desatenção e acompanhar a ansiedade. Deixaram que a virgem visse o fogo e este a virgem. Foi então que as chamas baixaram e logo o fogo se deteve, enquanto, maravilha das maravilhas, prodígio nunca visto, começou o fogo a recuar e, à medida que a terra desardia, tornaram as plantas que a cobriam.

A Santa, por ter-se cansado ou perdido o jeito, renunciara aos milagres, mas os crentes não perdiam a fé de a ver regressar ao ramo e fazer jus à glória antiga. Ainda assim era muito solicitada por raparigas solteiras que lhe imploravam para as livrar da prenhez que em horas do demo pudessem ter contraído. Foi como contraceptivo de eficácia duvidosa que conheci a Senhora do Monte nos tempos em que lhe engrossei a romaria.

Crónica expressamente escrita para o «Diário Ateísta», dedicada aos meus leitores.

18 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Sexo e ciência

Nos últimos tempos temos sido agraciados com uma série de notícias em que o tema recorrente é o recrudescimento das iniciativas religiosas para reintroduzir os seus dogmas no Direito, suposto laico, que rege os nossos estados. Nomeadamente em assuntos que têm subjacentes a sexualidade, como é referido, por exemplo, no post do Carlos Esperança «A Cúria não tem cura»

Tudo isto suscitou a escrita deste texto em que, para evitar eventuais desentendimentos semânticos, vou apenas abordar o sexo=biológico e deixar de lado a sua evolução para o que chamo sexo=social. Portanto logo à partida separo-me um pouco da visão do filósofo Michel Foucault (A História da Sexualidade , 1976-1984) que engloba ambos numa scientia sexualis: «A noção de sexo tornou possível agrupar, numa unidade artificial, a scientia sexualis, elementos anatómicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres; e possibilitou-nos usar essa unidade fictícia como um princípio causal, um sentido omnipresente, um segredo a ser descoberto em toda parte» (Michel Foucalt, A Hstória da Sexualidade, 1976-1984).

Pessoalmente acho que a civilização progride em saltos quânticos e não de forma contínua. As grandes transições civilizacionais surgiram no decurso de uma grande descoberta: o fogo, a metalurgia, a pastorícia, a domesticação de animais, etc… Na História mais recente podemos identificar movimentos culturais como catalizadores das transições, normalmente literários ou de outras formas de arte, que interpretam e transmitem os avanços científicos em todas as áreas do conhecimento humano, nomeadamente nas ciências exactas. Até ao limiar do século XX a sociedade em geral era exposta ao que de novo era descoberto pelos cientistas. Eram habituais as experiências de salão na sociedade elegante dos séculos XVIII e XIX, em que a classe alta se divertia com o NO, o gás hilariante, ou o hélio, que mudava o timbre do mais respeitável barítono. Quando a electricidade foi finalmente dominada foi vista quasi como panaceia para todos os males da sociedade (quem não viu o Regresso a Oz e o tratamento prescrito à pobre Dorothy).

Mas em 1900 Planck explica o puzzle da radiação do corpo negro (conhecido como a catástrofe do ultra violeta) e propõe que o calor radiado por um corpo negro é emitido apenas em quantidades discretas a que chama quantas. E o mundo mudou quando Einstein, compreendendo que a teoria de Planck faz uso implícito da hipótese quântica da luz, explica em 1905 o efeito fotoeléctrico introduzindo o conceito do dualismo onda-corpúsculo aplicado à luz. Estendido 19 anos mais tarde por Louis de Broglie, um estudante de Arte Medieval que trocou as catedrais góticas por ondas electromagnéticas, a partículas subatómicas como os electrões.

O papel actual que a ciência desempenha no quotidiano é frequentemente negligenciado e muitas vezes a opinião pública só é mobilizada quando a investigação e as novas descobertas suscitam questões éticas. Por exemplo, o evolucionismo tem 140 anos. É a pedra basilar de toda a biologia moderna, do desenvolvimento de medicamentos que nos salvam a vida e na alimentação de uma população crescente num planeta que parece cada vez mais pequeno. Continua a não ser aceite pelas religiões ocidentais, especialmente as do livro, que contrapoem o oxímoro criacionismo científico, já que o evolucionismo nega o pecado original, o alicerce de todos os dogmas do livro. Não permeou a sociedade. Por isso, no século XXI, não demos ainda o salto quântico expectável pelo grau de avanço científico.

Mas retomando o tema, sexo e reprodução são fenómenos distintos e a reprodução sexuada é a excepção e não a regra nas espécies vivas da Terra. E muito mais recente: durante muitos milhões de anos a vida na Terra manteve-se sem sexo. Só muito posteriormente começaram a surgir machos e fêmeas e o sexo passou a ser indispensável para a reprodução de algumas espécies. Que numa perspectiva reducionista, a la Dawkins, são apenas veículos orgânicos que permitem a replicação dos genes. A reprodução é simplesmente o mecanismo que permite aos genes, e não aos indivíduos, a sua perpetuação ao longo das gerações.

Para a grande maioria das formas vivas, a reprodução assexuada, nas suas muitas variantes, assume-se como a forma predominante de reprodução. Prático, rápido… e sem prazer, ou pelo menos não há, até o presente, indícios de que as bactérias se divirtam no processo, apesar do afinco com que se dedicam a ele. Com esporádicas incursões a um quasi sexo para troca de material genético. A via sexuada é apenas a forma de reprodução flagrantemente mais dispendiosa em termos biológicos. Não só a nível fisiológico mas, quando os dois sexos correspondem a indivíduos distintos, também comportamental. Pensemos na energia investida em cantos, danças e outras exibições altamente elaboradas dos comportamentos de corte de muitas espécies, assim como no aparecimento e manutenção de características sexuais secundárias como as majestosas plumas dos pavões macho. Para não falar no desperdício de energia na produção de machos, criaturas quase inúteis do ponto de vista da natureza, criadas e alimentadas com a função específica de atingirem a maturidade e tornarem-se doadores dos gâmetas necessários para fertilizar as fêmeas. Ou seja, a propagação genética sexuada é mais cara, em termos puramente energéticos, do que a assexuada; o sexo, em termos biológicos, deve ser assumido como um «artigo de luxo»! Por que razão o sexo triunfou dessa maneira, apesar do elevado custo energético?

Só recentemente os biólogos evolucionistas parecem ter encontrado a resposta para o paradoxo, num corolário da teoria da evolução a que se chamou a hipótese da Rainha Vermelha, inspirada no livro de Lewis Carrol, Through the Looking Glass, em que a Rainha Vermelha diz «Now here, you see, it takes all the running you can do to keep in the same place».

Um meio ambiente em permanente mudança, especialmente no que diz respeito a parasitas (bactérias, vírus, etc., que se reproduzem assexuadamente), é a base desta teoria sobre a origem e a manutenção do sexo, proposta em 1980 por William D. Hamilton, da Universidade de Oxford. Os omnipresentes parasitas apresentam virulência específica, afectando apenas determinados genótipos dos hospedeiros. O tempo de vida dos parasitas é muito mais curto que o dos hospedeiros, ou seja, milhões de gerações dos primeiros sucedem-se durante a vida de um hospedeiro. As incontáveis gerações de parasitas, para os quais a principal fonte de variabilidade é a mutação, traduzem-se em taxas de evolução muitas vezes maiores, deixando como única saída para os hospedeiros mais longevos a reprodução sexuada e a produção de filhos diferenciados geneticamente e eventualmente resistentes aos parasitas.

Segundo Hamilton, uma «corrida às armas da adaptabilidade genética» entre hospedeiros e parasitas ocorre desde que a vida surgiu na Terra. Os parasitas estão sempre a furar as barreiras defensivas impostas pelo genótipo dos hospedeiros, enquanto estes, com a ajuda do sexo, criam continuamente novas defesas. Na ausência do sexo, os hospedeiros permaneceriam geneticamente inalteráveis, enquanto os parasitas iriam acumulando adaptações que lhes permitiriam quebrar todos os sistemas de defesa dos primeiros.

A teoria da Rainha Vermelha prediz diversos padrões ecológicos que têm sido verificados na natureza. Segundo a teoria, por exemplo, quanto maior a diferença entre o tempo de vida do hospedeiro e o tempo de vida do parasita, maior será a pressão de parasitismo. Assim, o sexo deve ser mais frequente em organismos de maior longevidade, o que de facto pode ser comprovado experimentalmente. Muitos estudos indicam ainda que espécies com reprodução assexuada são mais susceptíveis a ataques de parasitas que espécies aparentadas com reprodução sexuada. Isso também é verdade para variedades de plantas. Qualquer agricultor sabe que monoculturas de cereais geneticamente uniformes são mais propensas a serem devastadas por pragas. Há espécies de peixes em que só existem fêmeas que se reproduzem assexuadamente produzindo apenas fêmeas. Quando as condições ambientais são adversas algumas fêmeas deixam de se reproduzir, transformam-se em machos e passa a haver sexo e produção de crias dos dois sexos. Quando o ambiente estabiliza desaparece a reprodução sexuada.

No entanto, a distinção entre sexualidade e reprodução não permeou a sociedade, que continua refém de dogmas sexuais anacrónicos face ao conhecimento moderno.

18 de Setembro, 2004 jvasco

Concurso de Oxímoros III

Surgiram ainda mais oxímoros nos comentários ao artigo anterior.
Dentro da temática religiosa temos o «amor cristão», que o Ricardo sugeriu, tal como o «por amor de Deus» (referindo-se ao mesmo Deus cristão), que o Carlos Camacho lembrou.
«Sou ateu, graças a Deus» é um clássico trazido pela «Déia», e o Carlos Camacho ainda sugeriu (entre outros) «fé ateísta» e «moral religiosa».
Devo dizer que achei piada a todos estes, mas mais como brincadeira.
Não me parece que sejam, nem de perto nem de longe, tão contraditórios como o meu favorito: aquele que o André Esteves lembrou, «Fé Racional».

18 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

A Cúria não tem cura

O relatório anual do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), apresentado na última quarta-feira, vê no aumento de nascimentos o obstáculo principal para o desenvolvimento e para o meio ambiente. Nem sequer é uma conclusão original pois há muito que se considera o excesso demográfico como responsável pela pobreza e degradação do meio ambiente. Acresce que a bomba demográfica está associada ao analfabetismo, subnutrição e religiosidade.

Não admira que o cardeal Renato Martino, presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz tenha vindo criticar duramente as conclusões, segundo a Agência Ecclesia. É, aliás, a posição de toda a Cúria Romana.

O cardeal Martino afirmou ainda que «os governos têm o dever de denunciar o UNFPA e as outras agências da ONU que violam o Plano de Acção assinado no Cairo ao promover o aborto» e recordou que a Santa Sé se uniu a outros quarenta países «para bloquear o intento de introduzir pela primeira vez, num documento internacional, o direito ao aborto», o que é lamentavelmente verdade. Conseguiu, de facto, com a colaboração dos países muçulmanos, numa santa aliança reaccionária, bloquear as medidas conducentes à melhoria da saúde reprodutiva da mulher e ao controlo de nascimentos.

«A experiência demonstra que uma população envelhecida e conservadora é incapaz de inovar, de crescer» – afirmou ainda D. Renato Martino, certamente a pensar no conjunto de cardeais que exorna a Cúria Romana.

17 de Setembro, 2004 André Esteves

Casamentos Portugueses

Confesso-vos que não sou um grande amante de casamentos. Pessoalmente acho-os puro exibicionismo. Os casamentos católicos são insuportáveis, mas os protestantes conseguem às vezes ser muito piores.

Ainda me lembro de há uns anos ter ido a casamentos de amigos e conhecidos (creio que todas as gerações passam por uma vaga de casamentos quando se chega aos 30 anos) e saiu-me cá uma rifa!

Num deles o noivo pegou na guitarra e juntamente com a noiva começam a cantar: «Jesus Cristo é amor e quer entrar no teu coração» (ou qualquer coisa do género – quem conhece o ambiente, já tem imunidade), seguido com teatro de rua, com pantominas, a exemplificar o que é uma vida sem Cristo. Noutro o casal de noivos, juntamente com a família, deram testemunho de Jesus Cristo durante uma hora, com citações bíblicas e a oratória da praxe, tendo eu ficado chocado com a mudança de personalidade na noiva (minha conhecida desde a infância) no papel de mulher submissa. O marido, esse tinha-se convertido há seis meses, mas já se comportava como um «ancião» da igreja.

O último dessa enxurrada de casamentos, foi o pior. Os noivos, crentes sofisticados, mas de duas denominações protestantes diferentes, resolveram convidar para pastor da sua cerimónia, um «missionário» de jovens, do acampamento interdenominacional onde se tinham conhecido.

O problema é que o ambiente controlado de estufa dos acampamentos de verão confunde a avaliação das pessoas. Cria-se um ambiente de tal fraternidade, que as pessoas são todas bonitas. (Faz parte do esquema de conversão e dedicação. Tecnicamente é lavagem cerebral, mas é legal e chamam-lhe Espírito Santo.)

Bem. O pastor (que afinal não era pastor) começou por falar na submissão da mulher ao marido, do papel do homem à cabeça da igreja, dos homossexuais que estavam a destruir o mundo, das mentiras da evolução e da ciência, da vinda próxima de Cristo e do cataclismo que a todos nós nos esperava.

Concluiu, da forma habitual, com o mandamento de Paulo para fingirmos que não ia acontecer nada. Os coitados dos noivos estremeciam com a carta que tinha saído do baralho.

Em vez do seu casamento, tinha-lhes saído uma pregação quiliasta de mais um missionário itinerante.

E eu, fumegava lá no fundo da tenda, ao ouvir o chorrilho de barbaridades e manipulação descarada.

O semi-pastor tinha estado um ano no EUA e, claro, como é habitual, tinha bebido as palavras dos seus congéneres americanos até ao fundo da taça de veneno fundamentalista. Os grupos protestantes portugueses vivem no complexo de «que se faz melhor lá fora», porque habitualmente têm ligações preferenciais com missionários de certos países. Por exemplo, os metodistas com os ingleses, os baptistas com os americanos da Convenção Baptista do Sul, os luteranos com os alemães, os pentecostais com os americanos da Bible Belt… etc, etc. E aquele, tinha vindo para ali, usar o casamento dos noivos, como púlpito de reverberação. Depois, durante a boda, viu-se a cena burlesca, dos noivos a receber as prendas dos convivas (de cesto no braço, como é moda nos dias que correm) e o quase-pastor a correr à frente em antecipação a pedir donativos para o seu «trabalho missionário».

Os casamentos católicos, esses, cheiram a velas. As igrejas são frias, as pessoas parecem-me sempre prepotentes e pomposas. Mas o que mais me irrita são os clichés de vida.

É o curso de preparação para o casamento em que 9 em 10 noivas já estão grávidas. O comentário habitual das mulheres casadas pelo matrimónio católico, que os padres são todos uns porcos, mas o que me casou era um padre excepcional, muito humano! Até contava piadas! São as festas em que tudo e todos têm que ser convidados. As listas intermináveis de prendas para o casamento. O padre que no sermão do casamento, insinua sempre sobre a cor do fato da noiva e da flor de laranjeira, bem como exclama: Já não vos via há muito tempo! Os pais que obrigam a casar pela igreja e que tratam os filhos como um poodle amestrado que vai ganhar um concurso de raças para gáudio da aldeia e da paróquia. A mesquinhice dos noivos… É o carro , a casa, a batedeira eléctrica e os lençóis de linho! (Nunca chegando a dormir neles, nem a cozinhar com a batedeira eléctrica).

Chega-se a pontos ridículos: Numa aldeia do interior, descobri uma rapariga que se casou pela igreja umas três vezes (como o conseguiu não o percebi), depois de divórcios sucessivos. Quando questionada porque o fazia, respondeu: – É uma cerimónia tão bonita! – e em cada um dos casamentos, exigiu longuíssimas listas de prendas.

E depois há os padres da moda. Ainda há uns dias, apareceu nas notícias, tanto da SIC, com na TVI (já repararam como há uns meses, ambas andam a servir de amplificador da ICAR com os mesmos temas e peças?), a notícia sobre um padre casamenteiro. Que os seus noivos nunca se tinham separado, e que chegava a haver lista de espera para os casamentos, com noivos do Brasil. Toda a peça alimentando a ideia supersticiosa de que casando com aquele padre, se garantia a felicidade conjugal. Fazendo o padre visitas de médico, a todos os «seus casados» para assegurar que tudo corre bem. Que duas pessoas se casem e precisem de uma terceira para comunicar entre si, é para mim um facto estranho. Mas que raio de intimidade e confiança tem essa gente?!.

Com tudo isto, ponho em contraste a minha própria experiência.

Vivi com a minha companheira durante cinco anos, sem sequer pensarmos em casamento. Construímos uma vida e confiança comum. Até ao dia que descobrimos que éramos cidadãos de segunda.

Uma noite a minha mulher sentiu-se muito mal. Resolvemos ir ao hospital. À entrada na urgência, o segurança pergunta qual era a nossa relação. Eu sabendo de antemão, o que se passava, respondi: – Marido. A minha mulher, doente, respondeu: – Companheiro. Proibiram-me de acompanhar a minha companheira, por não ser «marido». Obrigaram-me a ficar na entrada, enquanto a minha mulher foi levada numa cadeira de rodas a chamar desesperada por mim. Pelo facto de não estarmos oficialmente casados, não podíamos, oficialmente, tomar responsabilidade um pelo outro.

Acabei por entrar contra a vontade dos seguranças e sentar-me, imobilizando-me à cadeira de rodas onde estava a minha mulher.

Foi assim que resolvemos casar pelo civil.

Para nós, o casamento não passava de uma mera formalidade. Papelada.

Para o resto de Portugal, não parecia ser assim.

Para acelerar o processo, declaramos que vivíamos na residência familiar da minha mulher (senão tínhamos que esperar pelo menos um mês que a conservatória da minha área de residência se mexesse). São publicados os banhos.

E eis que coitada da minha sogra passou a ter a caixa de correio atulhada com dezenas – não! centenas – de propostas para fotografar e filmar o casamento. Tudo sem pagar impostos, chegando a prometerem arranjar as capelas mais bonitas. O desplante chegava ao ponto, de se oferecerem fotografias de outros casamentos, como amostra, com a noiva a levantar-se de manhã e vestir-se para o casamento!

As famílias queriam organizar festas e juntar famílias e não-sei-que-mais…

Recusamo-nos.

Só no dia antes do cartório é que dissemos: quem quiser vir que venha.

E foi assim…

A rir, sem alianças, com toda a gente a sorrir.

Quem quis tirar fotografias levou máquina fotográfica. Paguei um cimbalino a todos os presentes. O meu irmão ainda diz que nunca viu um casamento tão bonito.

A conservadora, toda católica, com o terço em cima da secretária, é que estranhou aquela gente tão esquisita… Mas parecia ter ficado contente, éramos o vigésimo quinto casamento naquele ano no cartório. Já tinha havido 187 divórcios.

17 de Setembro, 2004 jvasco

Concurso de Oxímoros II

Alguns leitores e autores deste blogue já se pronunciaram a propósito do meu desafio anterior, apresentando vários oxímoros.

São de destacar, a propósito de religião, o «catolicismo progressista» sugerido pelo Ricardo Alves, e «Religião Verdadeira», que o Carlos Esperança lembrou.

17 de Setembro, 2004 jvasco

Concurso de Oxímoros I

Não me ocorre nenhuma expressão que encerre uma contradição mais descarada do que «Criacionismo Científico».

Alguém conhece alguma expressão mais contraditória do que esta?

17 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Laicidade e ICAR em Espanha

Continua a saga do confronto entre a ICAR e o Governo espanhol. Despoletado pelas declarações de Zapatero de que «chegou a hora do respeito radical das opções sexuais de cada indivíduo, a hora de uma visão laica em que ninguém impõe as suas crenças, nem na escola nem na investigação, nem em nenhum âmbito da sociedade» e por o Primeiro Ministro espanhol ter considerado as teses da Igreja Católica em Espanha «irritantes, fora de tom e reaccionárias».

As primeiras reacções fizeram-se ouvir pela voz do arcebispo Primaz da Espanha, Antonio Cañizares que advertiu os espanhóis do perigo de um «laicismo ideológico» que, segundo o ilustre prelado, viola a liberdade religiosa e procura impedir que a Igreja torne públicas as suas crenças.

No seguimento do pedido da presidente do Congresso espanhol, Carme Chacón, para a Igreja não interferir nas instituições democráticas, o bispo Gea Escolano lamentou que o governo opine sobre a instituição eclesial e queira «amordaçá-la». Nomeadamente considerando que «a Igreja Católica não pode calar-se diante da degradação que o governo espanhol propõe para a legislação em questões como a legalização das uniões homossexuais ou as possibilidades de aborto legal».

Como foi referido no post da Mariana «Legislação deve conter referências a Deus e à lei divina» há pouco mais de uma semana o arcebispo de Pamplona e Bispo de Tudela, Fernando Sebastián, criticou a intenção do governo espanhol de governar com leis laicas uma vez que leis que não incluam referências a Deus, à lei divina, à fé de cidadãos ou que não considerem as exigências da moral natural ou dos valores absolutos (os católicos, claro, não há moral nem valores fora do catolicismo) são discriminatórias dos católicos.

No passado domingo, o presidente da Conferência Episcopal Espanhol, Cañizares, voltou à carga para denunciar «diversos ataques» por parte dos meios de comunicação social em Espanha que estão «dispostos a massacrá-la». Nomeadamente em relação à Carta da Congregação para a Doutrina da Fé (ex- Santo Ofício da Inquisição) sobre a colaboração entre o homem e a mulher na Igreja e no mundo. Em que é recordado que a mulher é um ser humano de segunda, sujeita ao domínio masculino, por vontade divina como consequência da dentadinha na maçã da pérfida Eva

Na sua homília, o Arcebispo identifica como proeminentes entre as causas do que considera a perseguição à ICAR a laicidade reinante e a secularização generalizada do mundo.

Como se vê, o Syllabus errorum o dicionário dos erros da época moderna enunciados por Pio IX que descrevia a democracia como um «princípio absurdo», a liberdade de opinião como «loucura e erro» e condenando especialmente o laicismo continua actual para a ICAR do século XXI. Claro que Pio IX foi o Papa que criou o dogma da infalibilidade papal…

Mas o que me choca mais é a intolerância, irracionalidade e autismo de uma Igreja que se acha no direito de impor a sua moral anacrónica como absoluta e se considera alvo de perseguição por a tal não a permitirem!

Nada impede os católicos de seguirem a sua moral, bem pelo contrário, a laicidade assegura que todos podem seguir as respectivas morais individuais desde que em obediência ao Direito laico que rege o Estado. Por que razão se arrogam os católicos ao direito de determinar as condutas privadas alheias exigindo transpor para o Direito os seus dogmas?

16 de Setembro, 2004 André Esteves

Liberdade religiosa no mundo – 2004

O relatório anual do Departamento de Estado americano sobre a liberdade religiosa no mundo foi hoje publicado.

Resumindo: a mesma treta de sempre – os direitos dos crentes aqui e acolá, blah, blah, blah… Dos descrentes: nada.

Mais um documento para consumo dos crentes americanos, (uma nação sob Deus), para saberem para onde enviarem missionários e alimentarem o complexo «Eu sou melhor cristão, porque sofro por Cristo». No relatório sobre Portugal o Departamento de Estado americano aparentemente engana-se nos números, inflacionando o número de crentes protestantes. Provavelmente alguém na embaixada americana fala mais com os líderes da Aliança Evangélica e com os membros da comunidade Judaica do que lê o valor dos últimos censos…

Porrada em termos de direitos religiosos leva a Arábia Saudita (Considerando as amizades desta administração, até se tem alguma surpresa), mas sendo uma monarquia teocrática o que é que se podia esperar?

Podem ler tudo aqui [Inglês].