25 de Outubro, 2004 Palmira Silva
Intolerâncias
«The right to search for truth implies also a duty: one must not conceal any part of what one has recognized to be true. (O direito à busca da verdade implica também um dever: não se pode esconder alguma parte do que se reconheceu como verdade)» Albert Einstein.
Por contingências profissionais apenas este fim de semana tive disponibilidade para espreitar a blogoesfera católica nacional e finalmente satisfazer a curiosidade despoletada pela crítica do Filipe a um post do Diário Ateísta. Devo confessar que fiquei estarrecida!
No primeiro blog em que me detive envolvi-me numa discussão acesa acerca de uma afirmação velada do Timóteo no post O caso Buttiglione que insinuava ser prática de ateus e agnósticos comerem criancinhas ao pequeno almoço (obrigado Luís pela simplificação simbólica dos dislates do Timóteo).
O meu pasmo intensificou-se quando, motivado pela negação do Timóteo da possibilidade de existência de um sistema moral fora dos auspícios divinos, o meu desabafo: «Para os cristão a paz, a justiça e o respeito pela natureza são heresias ateístas (de facto foram ateístas que as introduziram…) e como tal sem valor se não forem a paz (?) e a justiça (?) de Cristo. O respeito pela natureza então é uma dupla heresia de inspiração pagã porque um bom cristão sabe que Deus fez o homem à sua imagem e criou a Terra com todo o seu recheio biológico para os restantes habitantes se sujeitarem ao Homem… O beato Bellarmino queimou vivo Giordano Bruno por este se opor a esta visão da Terra…» é respondido pelo Timóteo com a inesperada apropriação de valores ateístas: «Para um cristão a paz, a justiça, nomeadamente a justiça social e ambiental (sendo esta apenas um ramo da justiça social), não são heresias. São os nossos valores. E gostamos que certos ateus também os defendam. Só é pena é que estes apenas pretendam defender estes valores por conveniência utilitária (que, enquanto conveniência de circunstância, é um valor simplesmente relativo). É que se os defendem apenas porque acreditam neles são crentes (que apenas não se assumem como tal).»
Ou seja, depois de ter manifestado o meu assombro pela apropriação abusiva pelo digno prelado Martino, em nome da santa Igreja de Roma, dos créditos da ciência ocidental, sinto-me sem adjectivos para qualificar a afirmação deste créu católico que desconsidera de cruz todos os ateístas (ateus e agnósticos no meu léxico) como amorais, ou mais exactamente imorais, e reinvidica para os crentes os valores introduzidos por ateístas impenitentes.
Assim, gostaria apenas de relembrar ao piedoso Timóteo que a justiça social, quer em sentido restrito quer lato, só muito recentemente foi incorporada no léxico católico, mais especificamente no léxico católico laico, já que os dignatários do Vaticano continuam a reiterar, por oposição, a justiça divina, como já tive oportunidade de indicar. Nomeadamente na voz do cardeal Ratzinger que se lamentava recentemente «Não é um bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizem hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetitiva como mágica: ‘Paz, justiça, respeito pela natureza’».
Mais, quiçá será uma surpresa para o Timóteo terem sido ateístas que combateram eficazmente a escravatura, por cujo apoio e difusão pela ICAR apenas em 1993 o Papa João Paulo II pediu desculpas envergonhadas e inconvincentes. Na herança da escravatura e do concomitante colonialismo evangelizador, fonte de misérias e racismos, que legou ao mundo uma legião de deserdados da sorte e andarilhos perdidos, pode-se inscrever boa parte da injustiça social actualmente vigente!
Será igualmente novidade para o intolerante crente que é no iluminismo francês, profundamente ateísta, que assenta a declaração dos direitos do homem (ainda hoje contestada por muitos cristãos), para além do laicismo e da democracia. E que a independência nos EUA de 1768, que serviu de exemplo aos ideais de liberdade e igualdade, foi igualmente devida a ateístas (alguns, por questões semânticas, denominados na época deístas naturais, na linha de Voltaire) Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, John Adams e Thomas Paine.
«A religião Cristã começa com um sonho e termina com um assassinato.» Thomas Paine
«As religiões são todas iguais – fundadas sobre fábulas e mitologias.» Thomas Jefferson
«A pergunta que a humanidade enfrenta é se o Deus da Natureza deve governar o mundo pelas suas próprias leis ou se o devem governar padres e reis por milagres fictícios» John Adams
Post Scriptum: Suponho que para repor a verdade histórica que o revisionismo católico quer obliterar se impõe uma série de posts devotados ao humanismo e iluminismo. Pelo que serão o objecto dos meus próximos posts!