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3 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Filhas mortas à facada

Abdel Nasser Ibrahim Mahmud, um homem a quem Deus outorgou o privilégio de se tornar «muezin» (uma espécie de tocador de sinos da ICAR, ou seja, o muçulmano que do minarete da mesquita anuncia o horário das orações), esfaqueou até à morte quatro das suas sete filhas e deixou seriamente feridas as restantes três, depois de ter expulsado de casa, um mês antes, a mulher que em 18 anos só lhe deu filhas.

O piedoso muçulmano terá confessado aos vizinhos: «eu matei-as porque não queria meninas, queria um menino». A piedosa selvajaria aconteceu numa das regiões mais retrógradas e piedosas do Egipto (185 km. a sul de Sohag), uma região onde é considerada uma humilhação a ausência de um herdeiro do sexo masculino.

Perante um Deus misógino e cruel, para os crentes cuja demência acompanha a devoção, o crime é um acto de fé, uma forma extrema de busca da santidade e do martírio.

2 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Sem Rodeios: A vida sexual de um padre

Estava hoje entregue a um dos meus passatempos preferidos, zapping aos telejornais nacionais, quando deparo com um apontamento muito interessante, num canal à partida insuspeito: a TVI.

Versava o programa sobre a vida de um padre, transcrita no livro que dá título ao post, no original «Sin tapujos: La vida sexual de un cura», obra que esgotou em dois dias e abriu um debate sobre o celibato na Argentina. No programa da TVI o Padre José Guillermo «Quito» Mariani, prestes a ser julgado por um tribunal eclesiástico pelas páginas que escreveu, admite que por uma questão de coerência não acata a ordem de “silêncio absoluto” imposta pelo arcebispo de Córdoba, Carlos Ñañez, e continua a dar entrevistas e a colaborar num canal local de televisão. Onde transmite não só a sua posição sem dogmas em relação ao sexo como também entra em rota de colisão com o catolicismo instituido em relação a outros assuntos de cariz social, nomeadamente no que respeita à colaboração entre a Igreja Católica e as ditaduras que se viveram na Argentina (e não só).

O sacerdote, com uma anterior incursão poética, Poemas de Confissão e Denúncia, confessa no livro duas relações sexuais que manteve com mulheres e uma tentativa com um homem. Acrescenta que «No Vaticano vi coisas que me chocaram: os negócios, as rivalidades por cargos, as vendas pelo cardeal Ottaviani das fotos da agonia de Pio XII para o Washington Post. Ali todos sabiam que havia, em pleno Vaticano, prostituição masculina e feminina».

Numa entrevista ao periódico argentino Rio Negro o padre afirma que «Todo o tipo de literatura, ensaios, investigação histórica, etc., que denuncie o dogmatismo e o espírito acrítico com que se move há séculos a hierarquia eclesiástica, é considerado, dentro da Igreja, como uma obra de genética satânica…»

Acho que este padre (católico), idolatrado pelos seus paroquianos, concordaria com a maioria dos posts do Diário Ateísta…

2 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Liberdade de opinião

O cineasta holandês Theo van Gogh, que realizou o polémico filme «Submission» em que é criticada a violência contra mulheres nas sociedades islâmicas, foi hoje assassinado por um homem que, de acordo com testemunhas oculares, vestia as vestes tradicionais marroquinas.

Desde que o filme passou na televisão holandesa que o cineasta e a deputada liberal Ayaan Hirsi Ali, uma etíope que renunciou ao islamismo e cuja fuga a um casamento pré arranjado inspirou o filme, foram ameaçados de morte por fundamentalistas islâmicos.

O primeiro ministro holandês, Jan Peter Balkenende, afirmou ser inaceitável que a expressão da opinião do cineasta pudesse motivar um assassínio tão brutal.

Na Holanda vivem cerca de um milhão de muçulmanos, aproximadamente 5,5% da população.

1 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Agradecimentos

O Diário Ateísta agradece a todos os amigos e inimigos que o visitaram o sucesso para que contribuíram.

1 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Charlatanismo legal

Se um homem, sem emprego nem poiso certo, estaciona a mala numa praça e começa a fazer propaganda a umas caixas de pomada que tira do interior, se diz que o unguento cura o reumatismo e a ciática, regulariza os intestinos e alivia as dores de cabeça, protege os rins e baixa a tensão, cura os diabetes e evita as artroses, esse homem que vende duas caixinhas por metade do preço de uma única, em qualquer casa da especialidade, é um aldrabão.

Se uma cigana, carregada de filhos, de netos e de fome, lê a palma da mão a um casal de namorados e lhes anuncia três filhos e muitas felicidades, um ou outro contratempo e uma longa viagem, largos períodos de muita paixão e curtos amuos, os adverte contra os maus olhados e a inveja, lhes pede um euro por cada linha da sorte que percorreu e acaba por se contentar com uma moeda, reduzindo o número de filhos e o grau de felicidade, é uma aldrabona.

Se um clandestino lhe quer vender um Rolex em platina, mais falso do que um clérigo romano, desviado da alfândega por um larápio em desespero, cheio de fome e medo da polícia, merece ser preso e deportado porque é um vigarista.

Se uma empresa domiciliada num apartado postal põe um anúncio a solicitar-lhe o envio de cinquenta euros, em cheque ou vale de correio, e, em troca, lhe promete um emprego que lhe permite ganhar até cinco mil euros mensais, sem sair de casa, é uma associação especializada no conto do vigário e que deve ser denunciada à polícia como criminosa.

Mas, se uma organização internacional, com rede de vendedores, comercializa indulgências e transportes para o Paraíso, transforma água vulgar em água benta, purifica pecadores com borrifos de hissope, limpa os pecados da alma usando como benzina sinais cabalísticos e ladainhas, distribui rodelas de pão ázimo e diz que contêm o corpo e o sangue de um pregador desaparecido há dois mil anos, fabrica milagres e cria santos, é a ICAR, igreja cujos bispos, padres, monsenhores, cardeais, diáconos e o próprio Papa só pensam na paz e no bem da humanidade. É respeitável e tem direito à protecção e preferência nos seus produtos, através de um convénio comercial a que se chama Concordata. A sede é no Vaticano.

Apostila – Para a ICAR, hoje é dia de todos os santos mas, com o fabrico em série, até o ano inteiro começa a ser curto para caberem tantos.

31 de Outubro, 2004 Carlos Esperança

Crónica piedosa


O Cume: miséria e cinco orações diárias



A aldeia tinha água e luz, a primeira provinda exclusivamente de uma fonte de mergulho, donde jorravam excedentes para o bebedoiro do gado e para a presa onde as mulheres lavavam roupa, e a segunda, do Sol e das estrelas, reflectida pela lua, ou nascida na torcida dos candeeiros a petróleo ou no pavio de candeias de azeite. Mesmo à Sagrada Família que todas as noites viajava de uma casa para outra vizinha, em perpétuas voltas pela aldeia, era o azeite que lhe iluminava as formas e a virtude que as famílias contemplavam através do vidro da caixa de cerejeira. No verão as coisas complicavam-se, tendo as mulheres que deslocar-se à ribeira, para lavarem a roupa, a dois bons quilómetros de distância. Quanto ao gado lá se ia repartindo a água da fonte, bebendo de um balde, à tardinha, primeiro as pessoas que o quisessem e, a seguir, os animais, balde de novo mergulhado para trazer nova água que ora uma burra, ora uma vaca, sobretudo esta, rapidamente esvaziava. Se entretanto acontecia alguém mais querer dessedentar-se, o balde era primeiro enxaguado, essa água vertida numa pia para galinhas, para aproveitar, e, só depois, outra vez cheio, posto à disposição do sequioso que ali mergulhava a boca e o nariz, até mais não querer, dispensado do assobio que estimulava as vacas. As pessoas tinham precedência sobre os animais.

O forno cozia uma vez por mês, desamuado sucessivamente por todos e com a quantidade de lenha fornecida num sistema que sempre funcionara, na razão directa do número de pães de cada família, marcados para evitar confusões. Os tabuleiros vinham de casa onde fora peneirada a farinha, feito o fermento e amassada. Chegados ao forno abendiçoava-se a massa que o fermento e a oração fariam crescer, fingia-se, tendia-se e punha-se a cozer.

A criança que eu era no fim da década de quarenta recorda três homens a quem reconhecia importância – o presidente da Junta, o senhor do Correio e o sacristão. Hoje havia de julgar o alfaiate ou o merceeiro de maior relevância social mas, então, no meu reduzido universo de valores, com o senhor pároco a viver noutra freguesia, sem a obrigação de pedir a bênção a quem quer que fosse, nem a de beijar mãos, por não ser hábito doméstico e gozar do privilégio de ser filho da professora e de um funcionário de finanças, eram eles os mais importantes.

O presidente da Junta era o sr. José Simão. Tratava da horta como os outros, mas era presidente, o primeiro que eu conhecera. A professora precisava da sua assinatura no recenseamento escolar, mas era ele a deslocar-se à escola, acompanhado da mulher, que lhe desenhava o nome pois ele não o encarreirava – segundo ambos alegavam -apesar do treino a que se submetera, começando a derrapar no José, a que sempre faltava o o ou o s e, invariavelmente, o acento, para depois se lhe varrer o i ou o m e aquele endiabrado til que exornava o complicado Simão. Pronto, assinava a mulher, arrumava-se a questão, faça favor de desculpar, minha senhora, o seu marido vem sexta-feira, ainda bem, nesta altura do ano sai da repartição a horas do combóio, são dezasseis tostões, não precisa de vir a pé, são para riba de duas léguas, ainda chega de dia, até amanhã minha senhora.

Um casal simpático aquele, o único que cultivava linho na aldeia e que me deu a oportunidade de ver como uma frágil planta se transforma em fio. Admirei a barrela e a cardação, vi o que fazia a espadela e contemplei a planta que fora a acabar fiada na roca e dobada.

O do Correio era o sr. António Bernardo a cuja casa eu ia levar as cartas e perguntar diariamente pelo correio. Era um camponês que tinha um braço aleijado a que devia uma pequena reforma e o retrato de um jovem de vinte e poucos anos vestido de sargento, como compensação do ferimento na primeira grande guerra. Era o único lavrador da aldeia com três vacas, integralmente pagas, uma burra e algumas ovelhas. Presidia por tradição, que o alvará da Câmara sempre confirmava, aos actos eleitorais.

Um dia acompanhei a minha mãe ao sufrágio durante uma forte chuvada, o que levou o sr. António Bernardo a perguntar respeitosamente por que se tinha incomodado, com um tempo daqueles, coitado do menino, se até já a tinha descarregado, informação cujo alcance me escapou, limitando-se a recolher o voto e a pousá-lo sobre a mesa. Percebi que já não era preciso introduzi-lo pois já lá estava, não aquele, que era impossível introduzir antes de chegar, mas outro igual, que tinha o mesmo valor e igual intenção. Disse mesmo que já estavam descarregados todos os eleitores mas que a lei obrigava a manter a porta aberta, e a lei é a lei, não acha Sr.ª professora, e para a respeitar e fazer respeitar ali estava ele, ninguém melhor que ele, até já fora presidente da Junta antes do José Simão, por isso só quando a hora canónica chegasse é que se fechava a porta e, nessa altura, é que pediria à Sr.ª professora para preencher uns papéis que era preciso, que ele não se ajeitava e os que estavam com ele ainda menos, no tempo deles não havia escola, o trabalho não era muito, todos tinham votado, graças a Deus, mesmo o Germano que Deus tem, se fosse vivo também não deixaria de votar ou, se o tempo estivesse assim e andasse com o gado, não se importava que nós o descarregássemos.

Era um bom homem, a quem o sr. Prior confiava a orientação do terço, designado por mês de Maria, que em Maio todos os dias tinha lugar na aldeia, a mando de Nossa Senhora e a rogo da irmã Lúcia, pela conversão da Rússia. Devia ser por igual delegação de poderes que lhe cabia a orientação da novena que todos os anos, quando a canícula fustigava o renovo, despovoava a aldeia para ser rezada junto a uma pia que ficava a mais de um quilómetro, na quinta do sr. Morgado. Lembro-me bem dessas peregrinações, que acompanhei várias vezes com devoção, e da eficácia demolidora de uma dessas novenas que transformou o normal pedido de chuva numa trovoada devastadora com os crentes a queixarem-se do excesso de fé, da molha e dos prejuízos.

O sacristão era coxo. O nome verdadeiro encontra-se, se acaso o soube eu, arquivado na desmemória de sexagenário. Todos o tratavam por Ti Mijinhas.Sempre julguei apanágio do múnus o cheiro dele, antes de saber que o efeito conjugado da incontinência urinária e da relutância ao banho era a causa necessária e suficiente de um odor que as pituitárias da época, muito mais conformadas e cristãs, assinalavam com nauseada tolerância.

Era ele que ajudava o sr. pároco a paramentar-se, cargo que à época conferia algum prestígio, se encarregava de agitar a campainha quando o sr. Prior passava com a hóstia em frente do Santíssimo, no sentido ascendente e no descendente, estridente toque que me levou muitas missas e cuidada averiguação a localizar. Eu julgava que era o efeito da passagem da hóstia à frente do sacrário que produzia o som, qual célula fotoeléctrica, antes de ter descoberto que o mesmo se devia à campainha com quatro chocalhos cruzados, agitada pelo sacristão, a razoável distância, no momento adequado das exéquias.

Mas era a eucaristia que enobrecia o homem pela singularidade das funções. Cabia-lhe acompanhar com a patena a trajectória das hóstias que do cálice eram transportadas pela mão do oficiante até à língua dos devotos, espécie de rede protectora a impedir que o corpo de Cristo caísse desamparado por alguma manobra mais infeliz ou desajeitada do oficiante, mera precaução para um eventual acidente nunca registado. Nesses momentos até parecia que a perna mais curta do coxo, que o sacristão sempre fora, se adequava melhor à função do que se ambas lhe tivessem crescido iguais.

Era ele que transportava a caldeirinha da água benta com o hissope mergulhado à espera que o sr. prior o sacudisse vigorosamente sobre os paroquianos para os aspergir e abençoar. Cabia-lhe ainda acender as velas e apagá-las, guardar as alfaias, dobrar e arrecadar os paramentos. Os trabalhos menos nobres, a limpeza da Igreja, o tratamento dos paramentos, a mudança da roupa aos santos e outras tarefas menores, de grande interesse para o culto e razoável benefício para a alma, eram destinados a mulheres que disso se encarregavam em obscura dedicação.

Já depois de dita a missa, enquanto se rezavam as últimas orações, uma espécie de IVA para prolongar o santo sacrifício, lá ia o Ti Mijinhas de bandeja em punho pedir para vários fins, conforme o domingo. O mais usual era o «costolado da oração» que anos depois a minha mãe me esclareceria tratar-se do «apostolado da oração», o que não alterava o valor do óbolo nem confundia a devoção daquela gente pobre.

Fica fora desta crónica a Ti Ismelindra, corruptela de Ermelinda, nome que ela própria desconhecia ter, parteira voluntária a cujo currículo adicionou dois irmãos meus que naquela aldeia encontraram a nossa mãe na altura de virem ao mundo.

Mas é sobretudo uma pequena população analfabeta que resistia à miséria e a cinco orações diárias, que circulava descalça sobre a neve e a geada, por cima de silvas e tojos, que nunca usou relógio ou tomou banho, que pedia brasas para acender o lume, cujas casas eram muitas vezes de terra batida e de paredes sem reboco, que, para se poder vestir, vendia os presuntos do porco que criava, os queijinhos que fazia, pequenos rolos de manteiga que enfeitava com o cabo de uma colher, os molhos de agriões e meruges colhidos nos regatos, os ovos, e calcorreava duas léguas, para percorrê-las de novo no regresso com o pecúlio rendido na praça da Guarda, é essa população que um dia hei-de recordar, menos na fome que a consumia e nas carências proteicas que lhe dilatavam o ventre dos numerosos filhos, mas na sua solidariedade inexcedível e no espírito esmoler que a exornava. Talvez um dia.

Publicado em 21-03-03 no JF, tendo destacado a negrito: «O Cume é uma pequena aldeia, sede da freguesia de Vila Garcia que forma com as anexas Cairrão e Carapito. Tem (ou tinha) um apeadeiro de comboio no troço da linha da Beira Alta que liga Guarda a Vilar Formoso, precedido pelo da Gata e tendo a seguir o de Vila Fernando».

31 de Outubro, 2004 Ricardo Alves

A Constituição europeia não é laica

Uma Constituição pode não fazer referência a «Deus» e, apesar disso, não só não separar as instituições políticas e as igrejas, como até prever a sua colaboração, ferindo decisivamente a laicidade. É esse o caso do tratado constitucional europeu.
A omissão de uma referência a «Deus» é sem dúvida positiva (conforme assinalado pela Mariana) mas o ruído gerado pela «querela do Preâmbulo» permitiu perder de vista algo mais fundamental: a ausência de uma disposição constitucional preconizando a separação entre as instituições da UE e as igrejas e comunidades religiosas, e a existência do artigo I-52º, que não apenas institui uma forma de colaboração permanente entre a UE e as igrejas, como também garante que os privilégios institucionais das igrejas (entre eles, as Concordatas) serão imunes à legislação comunitária e à própria Carta dos Direitos Fundamentais:
Artigo I-52.º: Estatuto das Igrejas e das organizações não confessionais

1. A União respeita e não afecta o estatuto de que gozam, ao abrigo do direito nacional, as igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados-Membros.

2. A União respeita igualmente o estatuto das organizações filosóficas e não confessionais.

3. Reconhecendo a sua identidade e o seu contributo específico, a União estabelecerá um diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações.
O lóbi da ICAR em Bruxelas (a COMECE, Comissão da Conferência dos Episcopados da União Europeia) exigira num documento datado de 21/5/2002 a inclusão deste texto no Tratado Constitucional, exigência essa reforçada por Karol Wojtyla na exortação apostólica Ecclesia in Europa (ler o parágrafo 114). O projecto de Constituição para a Europa dá portanto à ICAR o essencial daquilo que pediu: o respeito dos seus privilégios e a garantia de que será consultada institucionalmente sempre que a UE discutir leis que afectem a família, a bioética ou a contracepção. Não nos deve portanto espantar que a COMECE tenha emitido, a 31/10/2003, um comunicado triunfal em que declara que «os bispos europeus foram unânimes em acolher favoravelmente o projecto de constituição europeia». Faltou, evidentemente, uma referência ao cristianismo. Mas, que importância tem isso quando o preâmbulo nem tem valor jurídico?
Outro texto, mais desenvolvido: Laicidade e Constituição europeia (5/2004)
31 de Outubro, 2004 Mariana de Oliveira

A insistência papal

João Paulo II expressou a sua confiança em que as raízes católicas continuem a «inspirar» a Europa, apesar da ausência de uma referência explícita na Constituição Europeia.

No dia seguinte à assinatura do Tratado Constitucional, aquando da recepção do primeiro ministro polaco, Marek Belka, o papa espera que «os valores perenes elaborados sobre a base do Evangelho pelas gerações precedentes continuem a inspirar os esforços dos que assumem a responsabilidade para configurar o rosto do nosso continente».

Sublinhando que a Santa Sé sempre apoiou o projecto de integração europeia, JPII afirmou que confia na União Europeia, que «não só fará todo o possível para não privar os europeus do seu património espiritual mas também o protegerá de forma unitária».

Aqui chegado ainda reiterou o discurso do Vaticano durante todo o processo de discussão da Constituição Europeia: «não se pode construir uma unidade duradoura separando-se as raízes sobre as quais cresceram os países da Europa e a riqueza cultural e espiritual dos séculos passados».

A questão é exactamente essa: a de construir uma unidade duradoura. Ora, para que isso seja possível, nenhuma lei poderá fazer referência a uma religião específica, por maior que tenha sido a sua influência no passado. Na verdade, a religião que se pretendia incluir no preâmbulo da lei fundamental da União Europeia foi fonte de discórdias sangrentas no passado.

Só a laicidade, como princípio fundamental, poderá ter em conta a crescente diversidade cultural e assegurar um tratamento unitário a todos os cidadãos, independentemente das suas crenças.

31 de Outubro, 2004 André Esteves

Coitadinhos, são sempre eles os perseguidos…

Não gosta do cartoon? Acha-o uma manipulação propagandística descarada?

Óptimo! Já deu o primeiro passo para se tornar num ateu…

(Este cartoon está sobre uma licença Creative Commons. Liberdade de copiar, distribuir e usar na sua página tal como está, respeitando a autoria)

30 de Outubro, 2004 Mariana de Oliveira

Buttiglione fora da Comissão

Rocco Buttiglione, personalidade avançada por Durão Barroso e pelo primeiro ministro italiano para suceder a António Vitorino na Comissão de Justiça e Assuntos Internos, anunciou a desistência da sua candidatura a comissário europeu após ter sido apontado como uma das causas para a reformulação da equipa de comissários proposta pelo Presidente da Comissão Europeia – acontecimento sem precedentes na história da União Europeia.

O ex-candidato a comissário é um amigo muito próximo do Papa João Paulo II e foi o rastilho de uma crise sem precedentes no Parlamento Europeu após ter declarado que a homossexualidade é pecado e que o papel principal das mulheres no casamento é ter filhos. Alguém com estas posições acerca da emancipação do sexo feminino e da tolerância para com diferentes opções sexuais reúne, à partida, todas as condições necessárias para se ocupar da pasta da Justiça e dos Assuntos Internos.

Quando se ocupa um cargo de tal relevância, é preciso ter em conta um determinado número de conquistas axiológicas, nomeadamente a igualdade de direitos entre os cidadãos independentemente do sexo, religião e orientação sexual. A mulher não mais será uma parideira submissa cujo único objectivo de vida é cuidar do marido e dos filhos. A mulher terá uma posição igual no que diz respeito a direitos e obrigações matrimoniais, bem como em relação à educação dos filhos; a mulher terá as mesmas oportunidades de acesso ao emprego e à educação; a mulher terá protecção na maternidade. Os tempos de subjugação acabaram. Quanto aos homossexuais, ainda têm um caminho mais longo a percorrer.

Buttiglione considera-se uma «vítima inocente» escolhida pela humanidade, que «periodicamente decide purificar-se». «Desta vez fui eu o escolhido para essa função e não me queixo muito», disse. Ou seja, temos um mártir dos defensores dos valores cripto-conservadores católicos, perseguido por expressar livremente as suas opiniões. Ora, como escreveu a Palmira, este amigo pessoal do Papa não é uma vítima inocente. Ele é membro vitalício da Comunhão e Libertação, uma organização conservadora cujo objectivo é trazer os valores religiosos para a vida política. Para além disso, após ter sido nomeado Ministro dos Assuntos Europeus, em 2002, tentou proibir a inseminação artificial, solicitou o financiamento público para estabelecimentos de ensino católicos e o pagamento de subsídios a mulheres que decidissem não abortar.

Ter o cavalheiro em questão à frente da Justiça europeia seria um passo para que as doutrinas altamente retrógradas da ICAR fossem adoptadas em legislação europeia e, assim, para a destruição dos valores da Democracia, da Igualdade e da Liberdade que conformam a União Europeia.