Loading

Categoria: Não categorizado

12 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Terrorismo religioso na Europa: reflexões sobre a Holanda

O assassínio do cineasta Theo van Gogh despoletou uma tensão, por muitos descrita como étnica mas na realidade religiosa, nunca conhecida numa Holanda encarada como o paradigma da tolerância, da liberdade de opinião e de expressão, da integração de todos com absoluto respeito pelas suas especificidades culturais.

Todos os paradigmas se desmoronaram em escassos dez dias… O bárbaro, injustificado e injustificável assassínio do realizador, por motivos puramente religiosos, está a ser lido pelos holandeses como um aviso de guerra, uma ameaça aos valores da sua sociedade multicultural e tolerante com que não estão dispostos a compactuar.

Na carta cravada a talhe de carniceiro no corpo de van Gogh são dirigidas ameaças explícitas a Ayaan Hirsi Ali, sendo igualmente visados outros políticos considerados «inimigos do Islão», Geert Wilders, a ministra da Imigração, Rita Verdonk, e o prefeito de Amesterdão, Job Cohen (de origem judaica).

O ministro da Justiça holandês, Piet Hein Donner, depois de a ler, afirmou numa conferência de imprensa que «A carta expressa uma ideologia religiosa extremista e nela os inimigos do Islão são advertidos de que devem temer pela sua vida» acrescentando que «contém ameaças e cita a ‘guerra santa’ lançada pelos muçulmanos extremistas».

O atentado contra Theo van Gogh, assumidamente assassinado por se atrever a expressar a sua opinião sobre a religião islâmica, suscitou na Holanda o medo de uma situação semelhante à vivida nos Balcãs, onde o reacender dos conflitos religiosos entre bósnios muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos foi o rastilho da sangrenta guerra que resultou no desmembrar da Jugoslávia.

A resposta do governo holandês foi imediata, nomeadamente no reforçar das medidas de segurança e policiais. Mas também foi decidido retirar a nacionalidade holandesa a todos os emigrantes que ajam contra os interesses do estado e obrigar os imãs a falar holandês nas mesquitas. E a ministra Rita Verdonk afirmou, numa conferência sobre integração, que toda a Europa deve combater a radicalização de jovens muçulmanos, já que «a Europa não se pode converter num reduto de terroristas muçulmanos» e que «os governos Holandeses foram muito ingénuos ao dedicar pouca atenção aos elementos radicais na sociedade».

Enquanto os holandeses fazem a sua introspecção à procura de uma resposta para o que correu mal neste país com uma tradição centenária de tolerância, berço de pensadores humanistas revolucionários, como Erasmus ou Spinoza, a imprensa internacional quasi que ignora o sucedido reservando as manchetes para o funeral de Arafat e outras minudências. Com alguns periódicos europeus, por exemplo o diário dinamarquês Politiken, a compararem a investigação policial na capital internacional da paz, Haia, à noite de Cristal nazi. Com excepção da imprensa espanhola, claro, especialmente porque existem suspeitas de ligação entre os autores do atentado que abalou a Espanha e o grupo a que pertence o assassino de van Gogh. O El Mundo escreveu esta semana que «toda a Europa se deve espelhar na Holanda para evitar que o mal se propague ainda mais».

O fundamentalismo religioso, seja de que confissão for, é a pior ameaça à humanidade na actualidade. O reconhecimento inequívoco deste facto, sem reacções de avestruz ou complexos «les main sales», urge ser feito! Há assuntos cuja gravidade não lhes permite serem tratados de forma «politicamente correcta», até porque este é um problema religioso que os fundamentalistas islâmicos tentam capitalizar transformando-o numa questão étnica (que o não é).

Não nos podemos deixar manipular e manietar por fanáticos de qualquer religião por medo que esgrimam (falsas) acusações de racismo, intolerância ou discriminação. Assim como o parlamento europeu rejeitou Rocco Buttiglione deve responder de forma ainda mais firme a estes atentados (mais graves) contra os valores e direitos fundamentais defendidos por uma Europa aberta, laica, pluralista e tolerante. Antes que seja demasiado tarde, porque este não é o episódio isolado e irrelevante que o silêncio da maioria dos fazedores de opinião faz subentender…

11 de Novembro, 2004 André Esteves

Ayaan Hirsi Ali fala sobre o assassinato de Theo Van Gogh

Publicado pela primeira vez, no NRC Handelsblad em Holandês.

A minha reacção inicial de choque e descrença deu lugar a um sentimento de dor intensa. Estou a sofrer pela morte de Theo. Sofrendo porque, agora, ele não pode ir para a América com o seu filho. Porque ele teve que morrer para focar a atenção de todos na presença de indivíduos cuja convicção religiosa é para eles muito mais importante que a vida humana. Eu sofro porque outra vez a Holanda perdeu a sua inocência, uma inocência da qual Theo era um expoente.

Os ataques terroristas na América e em Espanha foram olhados como algo que só poderia acontecer lá, mas não aqui. A ingenuidade de Theo não era de que não poderia acontecer aqui, mas que não iria acontecer a ele. Ele dizia-me: “Eu sou o idiota da aldeia; eles não me vão tocar. Sê cuidadosa, tu é que és a apóstata e mulher.”

Eu sofro porque eu e os nossos amigos comuns, não podemos congratulá-lo do seu novo filme “0650,” do qual ele estava muito orgulhoso, mas também estou zangada, porque ele está morto e eu estou viva. Eu sei que estou viva porque tenho protecção policial e ele não a tinha.

Estou zangada porque ele foi morto num assassinato ritual. Estou zangada porque ouço o responsável da justiça dizer que não tinha instruções para proteger Van Gogh. Estou zangada pela pobre desculpa de que Van Gogh não queria nenhuma protecção para ele, porque eu sei que pessoas em risco, políticos, são forçados a ter essa protecção, quer queiram, quer não, o que protege não só a as suas vidas, mas também a ordem pública e a segurança nacional.

Poderia a morte de Theo Van Gogh ter sido evitada? Havia indicações suficientes de que ele deveria ser protegido? Em 30 de Agosto, um dia depois das transmissões dos “Convidados do Verão”, incluindo a da “Submissão, Parte 1”, a foto de Theo Van Gogh foi colocada num site islamista debaixo da minha fotografia. A minha foto era comentada como a “A maligna e infiel Mortadda” e a dele “o maligno infiel Ribald”.

Vinte e dois investigadores foram postos a descobrir quem era o responsável.

Eu fiz uma queixa à polícia e o responsável foi condenado a nove meses de prisão. Foi Theo consultado por causa disto? Será que ninguém considerou que a vingança era iminente, não só por causa do filme, mas também porque um deles tinha sido preso?

Eu estou zangada porque sei que o assassino não está sozinho: ele é membro de uma rede de muçulmanos que estão profundamente embrenhados nas suas crenças, e que caminham pelas ruas com a intenção de matar pessoas inocentes. Além disso o assassino pode preparar o seu crime com o conhecimento de amigos e conhecidos, pessoas que por elas próprias não matariam outras pessoas, mas que não se importaram com a morte de Theo. Este facto faz do assassínio de Van Gogh, muito diferente das ameaças de activistas dos direitos dos animais a políticos, ou de cartas com balas enviadas para a polícia. Essas duas ameaças podem ser controladas. O terrorismo islâmico, tanto na Holanda como fora dela, consegue crescer e sobreviver porque está integrado num círculo maior de muçulmanos amigos. Estou zangada porque este facto nunca é completamente compreendido pelas pessoas responsáveis pela nossa segurança.

Sinto-me culpada quando abordei Theo com o script para o filme “Submissão”. E, agora, ele morreu por causa dele. Mas na fria luz da manhã, eu sei que só o assassino é culpado da sua morte.

Instintivamente, isso é-me confuso. Theo e eu discutimos profundamente as possíveis consequências do filme para ambos. Ele dizia: “Logo que estas considerações te dissuadam de exprimires a tua opinião, não é esse o fim da tua livre expressão? Isso é milho para a mó dos islamistas.”

Eu estava preparada para ir muito longe para que as pessoas se levantassem e notassem: as autoridades holandesas que têm de se aperceber que o Islão radical e os seus apoiantes se instalaram na Holanda; a população islamita, que deve aprender a ver as horríveis marcas de nascimento da sua própria religião.

A população islamita deve aperceber-se de que as suas desvantagens não são uma função ou consequência de uma crença fraca em Deus, ou de discriminação, como os radicais desejam que aconteça, mas em parte é a consequência das suas próprias acções. O tratamento do indivíduo, a posição social das mulheres, a criação de guetos como as escolas islâmicas, são esses os factores que explicam o atraso da comunidade islâmica em relação às outras.

Theo concordava comigo em todos estes pontos. À sua maneira, e como realizador de cinema, ele tentou, na medida do possível, não se isolar da juventude islâmica mas comunicar com ela.

Eu sinto-me culpada porque abusei da sua falta de medo, porque eu sei que qualquer um que critique a escritura sagrada, está num grande perigo. Um homem foi morto de uma maneira abominável, simplesmente por causa do que acreditava. Isto é relativamente novo na Holanda, mas nos países islâmicos é parte da vida de todos os dias.

Hoje, embora os extremistas ainda sejam uma pequena minoria entre os nossos concidadãos muçulmanos, a influência potencial dentro desse grupo é enorme.

Ayaan Hirsi Ali

11 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

A América que não muda

Sob o título «A América que não muda» (Público, 10/11), José Pedro Zúquete (JPZ) justifica com comovente ternura a vitória de Bush com argumentos certamente procedentes e, outros, de beata motivação e manifesta debilidade.

Entre estes últimos encontram-se os que atribuem aos EUA uma religiosidade que lhe terá sido legada pelos fundadores, na sua grande maioria ligados à maçonaria, livres-pensadores e defensores do laicismo, valores que impregnam a Constituição americana e constituem a marca genética dos princípios democráticos, liberais e tolerantes que a caracterizam.

Há, aliás, uma evidente contradição quando JPZ afirma que «desde o início houve a separação da Igreja e do Estado» imediatamente após ter afirmado que «desde o início da história americana que a política abraçou a religião», fazendo tábua rasa do carácter laico, historicamente pioneiro, da Constituição.

Muitas das «figuras sagradas» dos EUA a que alude foram agnósticas e, entre as maiores, houve quem considerasse o cristianismo como um conjunto de meras superstições. Mas, na ânsia de reescrever a história do grande país e justificar os desvios recentes, JPZ não hesita em apoiar-se nas referência religiosas que acompanham os símbolos da soberania como se essas referências fossem uma herança da fundação e não tivessem aparecido apenas no séc. XX sob influência de radicalismos religiosos.

Atribuir a um país com uma constituição profundamente laica carácter não laico, o que a deriva metodista e outros fundamentalismos evangélicos se esforçam por desvirtuar, é uma mistificação que serve os desígnios de um proselitismo agressivo e trai a verdade histórica e os princípios de tolerância religiosa de que os EUA são herdeiros.

Quanto à ligação que JPZ estabelece entre Deus e liberdade e entre democracia e religião, deve esquecer-se que a Bertrand Russell foi negada a liberdade de ensinar nos EUA, por ser ateu, e que a religião que obriga ao estudo do criacionismo bíblico e, se possível, à proibição do estudo do evolucionismo não é certamente uma referência democrática nem um caminho recomendável.

«A América que não muda» é apenas a América que mudou. Para pior.

11 de Novembro, 2004 Palmira Silva

E agora?

A autoridade palestiniana declarou a morte de Yasser Arafat.

Que irá agora acontecer nesta zona tão conturbada do globo com a morte do carismático líder palestiano, cuja aversão a rivais impediu uma sucessão clara e incontestada? Será que vai emergir o líder forte que permita as negociações efectivas da paz que Israel sempre reclamou ser impossível com Arafat? Ou os conflitos alargar-se-ão a disputas internas pela liderança palestiniana? As próximas horas podem ser cruciais…

10 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Haia fecha espaço aéreo

Na sequência de uma explosão que ocorreu no decurso de uma operação policial anti-terrorismo, o espaço aéreo sobre a cidade de Haia está fechado ao tráfego de aeronaves civis.

As autoridades holandesas não explicitaram se a operação antiterrorista está relacionada com o homicídio do realizador Theo Van Gogh por um cidadão de 26 anos com dupla nacionalidade marroquina e holandesa, que despoletou uma onda de violência por toda a Holanda.

A espiral de violência de que duvidava o João Vasco ainda ontem parece ter começado…

10 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Mar Adentro – História de uma cabeça sem corpo

Recentemente, em Madrid, tive o privilégio de assistir à estreia do filme «Mar Adentro», do conceituado realizador espanhol Alejandro Amenábar.

Trata-se de uma história polémica, baseada na vida de Ramón Sampedro. Um homem que há anos atrás chegou a aparecer na televisão portuguesa e que volta hoje ao grande ecrã na pele de um actor que traz vida ao olhar enigmático de Ramón.

Ramón é um homem tetraplégico há quase três décadas, que não acredita na vida para além da morte. Dependente dos cuidados da família, a sua única visão do mundo é uma pequena janela do quarto, de onde sai uma ou duas vezes por ano. Enquanto jovem, viajou pelo mundo como marinheiro, mas, um dia, esse mesmo mar mudou o trajecto de uma vida, até então, excitante.

Após o incidente, o seu único desejo, morrer com dignidade, foi-lhe sempre negado pelos senhores da lei. Para Ramón, a vida é um direito e não uma obrigação, «sou uma cabeça sem corpo» – dizia. No entanto, duas mulheres vêm alegrar a sua vida e ajudá-lo na conquista de uma morte digna. Contra a decisão do tribunal, de não lhe conceder o direito à eutanásia, Ramón desenvolve um engenhoso plano que conta com a ajuda de onze amigos e sabe que quem o ama verdadeiramente é aquele que o ajuda na sua última viagem.

O filme premeia-nos, ainda, com um excelente diálogo entre Ramón e um padre paraplégico que tenta convencer o nosso herói suicida de que a vida pertence a Deus e só Deus tem o direito de a tirar. Não se lembrou, o mui distinto senhor padre, de que a instituição que representa sempre teve uma afinidade promíscua com a pena de morte.

Recordemos, então, brevemente, numa sala de cinema, este homem a quem saudamos e de quem temos saudades.

Um artigo de Aires Marques

9 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Blasfémias

Nos últimos tempos alguns dos posts do Blasfémias têm motivado acesas discussões sobre religiões e relações religião/política. Gosto especialmente deste post do blasfemo CAA:

«o anti-clericalismo, numa cultura impregnada com o ar bafiento de sacristia como é a nossa, nada mais é do que uma forma sã e desempoeirada de abrir a janela da razão e conseguir respirar ar puro e, sobretudo, de combater o atrofiamento cerebral que colectivamente nos ataca há tanto tempo. Ora, acontece que o clericalismo – entendido como a devoção pela máquina administrativa que detém posição dominante no mercado das crenças, bem como a quase-adoração idólatra pelos seus agentes in personna – vivifica precisamente nesses ambientes intelectualmente entupidos.

Donde, o anti-clericalismo é um esforço válido de romper a má tradição do estado abúlico em que os portugueses estão submersos.

E nunca será fanatismo porque não conheço qualquer posição anti-clericalista que reivindique ter «visto a Luz». Esta imagem não faz nenhum sentido – quem julga ver «luzes» e ouvir «vozes» são os que pretendem encontrar em qualquer acaso um milagre e em qualquer cura uma intervenção divina, i. e. os devotos das crenças atreitos ao amor clerical.

Os anti-clericalistas só querem a boa separação das águas entre as crenças dos outros e as sua próprias vidas, entre o sagrado e o profano. No fundo, só desejam que os servos dos auto-intitulados intermediários com o divino os deixem em paz.

E ao contrário destes, nada pretendem impor, antes fazer pensar para melhor se poder optar.»

Um post que faz jus ao motto do blog, A Blasfémia é a melhor defesa contra o estado geral de bovinidade!

9 de Novembro, 2004 jvasco

Espiral de violência?

Espero bem que esta notícia do público sobre uma resposta, sob a forma de uma bomba, ao assassínio de Theo van Gogh, não signifique o início de uma escalada de violência.

Se as motivações religiosas do assassínio eram claras, e foram aqui veementemente condenadas, as motivações deste atentado, religiosas ou não, merecem também o nosso repúdio.

Duvido que a violência se alastre incontornavelmente, e que situações destas se voltem a repetir na Holanda a curto-prazo. Mas se estiver enganado, e em vez disso as tensões culturais e sociais se agravarem (como muitos receiam) ao ponto destes eventos terem sido apenas o início, não será a primeira vez que a causa dessa violência pode ser atribuída ao fanatismo religioso.

9 de Novembro, 2004 jvasco

A navalha de Occam

Kepler descobriu que os planetas circulavam em volta do Sol com órbitas elípticas. A terra não era o centro do mundo, e as órbitas não eram esferas perfeitas. Ele conseguiu isso através dos dados de Thyco Brahe, os mais precisos da época. Mas ele podia ter concluído outras coisas, ele podia ter concebido um modelo muito mais complexo, do ponto de vista matemático, no qual a terra fosse o centro do Universo, e que fosse coerente com os dados.

Em termos epistemológicos, hoje ainda podemos conceber a possibilidade de criar um modelo no qual a terra está no centro do Universo, o qual seja coerente com todos os dados experimentais até agora obtidos. De forma mais extrema, podemos supor que todos os corpos se movimentam ao acaso e que a força da gravidade foi uma gigantesca coincidência que se verificou até hoje, e que, curiosamente, se continua a verificar.

Epistemologicamente, no extremo, não podemos contradizer essa teoria, considerando-a falsa. Então porque é que essas parvoices são descartadas? Pelo princípio da navalha de Occam.

Entre duas teorias coerentes com a totalidade dos dados experimentais (obtidos no passado, ou que possam ser obtidos por experimentação acessível), escolhemos a mais simples, a que necessita de menos suposições e menos coincidências. É um princípio razoável e racional.

E, ao longo da história da ciência, tem-se mostrado muito útil e certeiro.

Podemos sempre supor que possa existir um Deus que é coerente com a sua ausência de manifestação até hoje.

Mas eu, enquanto não descobrir dados incoerentes com a hipótese mais simples (a sua inexistência) vou escolhê-la como a minha «hipótese de trabalho» ou seja, aquilo em que acredito.

Tal como em relação à existência da força da gravidade e demais leis físicas.