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7 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Gnósticos e ateus

Vamos lá ver, eu ponho o meu problema assim:

Não sou gnóstico nem tão pouco agnóstico. Ambos os termos se reportam ao mesmo conceito de referência, contido no vocábulo a que se prendem, a palavra agnosticismo.

O agnosticismo é uma doutrina segundo a qual as questões suscitadas pela metafísica sobre a existência de Deus, origem e sentido da vida e do universo, a essência das religiões, etc., escapam e são inacessíveis à compreensão e entendimento do homem, na medida em que não cabem nem são redutíveis a qualquer comprovação de caracter científico minimamente credível.

Os seguidores desta doutrina dir-se-ão agnósticos, ao passo que os outros, isto é, os que se satisfazem com explanações esotéricas ou transcendentais da vida e daqueles problemas, são havidos por gnósticos.

Gnóstico ou agnóstico?… Eis a questão.

Mas eu direi: – Nada disso! Nem uma coisa nem outra, pois não é forçoso que seja, irrecusavelmente, ou uma ou outra a postura adoptada.Nem sequer são antónimos.

Longe vai já o tempo dos desesperados monismos redutores do mundo ao preto e branco de uma escolha única possível, oferecida ao entendimento das coisas.

A história do pensamento do homem tem mostrado como são falazes e fantasiosas todas as tentativas ensaiadas ao longo dos tempos para lhe fixar balizas sistemáticas que o contenham e domem. Sempre a busca da claridade e da razão das causas, e das causas das causas, se lhe impôs como mandato irrevogável a cumprir, rasgando caminhos e lançando pontes tanto quanto a vontade e o engenho o adjuvassem. Sem obediências cegas e incondicionais. Sem vassalagens. Livremente. Como o vento nas searas ou acariciando a superfície das águas.

Assim, pois, também entre o teísta e o incréu permanece imenso e livre todo um incomensurável espaço de lavra possível, aberto e oferecido às sementes das ideias e das dúvidas, das perguntas e das respostas, à espera que seja, depois, o mesmo semeador a conseguir e recolher os frutos e os ensinamentos. E estes, sim, são antónimos, e de tal modo afastados um do outro que quase se tocam nas pontas do mesmo radicalismo.

Ora é exactamente aqui que acho uma porta para eu entrar. O caminho foi longo e ainda não terminou. Começa lá longe, nos imprecisos alvores dos meus cinco anos, ou talvez antes, sim, antes, pois aos cinco já me vestiam de cruzado e de mãos postas me enfileiravam no rebanho que o senhor abade pastoreava em dias solenes e procissões da praxe. Depois veio a doutrina toda, em catadupas, que as zeladoras da Igreja, da roda do senhor abade, nos obrigaram a decorar, a mim e aos outros da mesma catequese, em monótonas cantilenas de tabuada ou como das linhas dos caminhos de ferro, com os nomes das estações, apeadeiros, ramais e tudo, ou das serras e dos rios com seus afluentes, d’àquem e d’além mar em África, tudo isso na ponta da língua, sem falhar nada.

Cedo, porém, começou a reflexão. A Branca de Neve, o Pai Natal, o menino Jesus, o Pai Gepeto e o Pinóquio, as Fadas e as Bruxas, os Gigantes, os anões, o lobo mau, as almas do outro mundo e os mortos que, mesmo fantasmas e tudo, falavam e faziam barulhos, o Céu e o Inferno, Deus e o Diabo, e os anjos, e os milagres e Deus e os arcanjos a ajudar nas guerras ora uns ora outros e a não fazerem peva nas grandes desgraças do mundo, quais fomes, pestes, mortes horríveis, crimes e outros males, e tudo isso foi entrando pelo juizo dentro ao mesmo tempo que também o juízo ia entrando pelo tempo fora, a magicar desconfianças, a misturar fantasias, a fazer deduções, a pôr hipóteses a que os padrecos interrogados respondiam mal, e depois ainda, o Renan e a seguir o Drama de Jean Barois… e os caminhos do juízo e do entendimento a abrirem-se cada vez mais…Élááá-ôo! Por fim uma leitura já mais séria da vida, e da vida dos outros, e também dos santos, e dos profetas, e dos textos inventados por doentes esquizofrénicos, trazidos às multidões na voz de profetas malucos, poetas desvairados, sibilas, pitonisas e outras cassandras do marketing das divindades várias, abundantes, sucessivas, renováveis e reencarnáveis umas nas outras, interminavelmente. Já mais p’ra agora, novamente os livros, de apuramento e lavagem das leituras anteriores, e outras de grau mais limpo, com filósofos de permeio a debaterem-se exaustos e inconclusivos, a medirem e a confrontarem certezas contaminadas por claridades súbitas, dúvidas insidiosas, suspeitas iniludíveis, mas, concomitantemente, também uma compreensão nova, mais serena e talvez lúcida.

Em suma: – dou comigo ateu retinto, assumido, desgostoso e impenitente, a olhar de lado e de viés longínquas lembranças das penas perdidas, daquelas asas brancas que um dia um anjo me deu…. «Pena a pena me caíram/ Nunca mais voei ao Céu…».

Irremediavelmente ateu, deixou-me a «teotomia» (ou «deotomia»?…) sofrida em estado semelhante ao do amputado que por algum tempo ainda vai continuar a sentir em si a dor-sombra do membro fantasma que da ablação consumada lhe ficou.

Albertino Almeida

6 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

A Este nada de novo

Segunda-feira, o papa, uma vez mais, disse que a Europa deve encontrar «os modos e os caminhos para construir a paz num clima de frutuosa colaboração, no respeito pelas culturas e os legítimos direitos de todos», desde que não sejam as culturas e os direitos dos heréticos secularistas.

JPII relevou a herança que cada um dos Estados-membros traz e lembrou que o Vaticano «não cessa de defender o direito dos povos a apresentar-se no cenário da história com as suas próprias particularidades, no respeito das legítimas liberdades de cada um». Esse património particular, «claramente marcado pela herança cristã», serviu de pretexto para que o chefe da ICAR reiterasse que aquela instituição «não está nem pode estar à margem da construção europeia». «No actual debate cultural e social, emerge a necessidade de sublinhar as raízes cristãs, das quais o tecido popular tira a linfa vital desde há séculos», afirmou.

João Paulo II aproveitou também para mandar um recado para os políticos europeus: que respeitem o «nobre património de ideais humanos e evangélicos» e que todos se comprometam «na construção de uma sociedade livre, com sólidos fundamentos éticos e morais», desde que esses fundamentos sejam cristãos e, particularmente, católicos.

Não esquecendo os seus fiéis seguidores, enviou também o apelo a «colaborarem com todas as pessoas de boa vontade» – apenas os ICARianos – na luta contra modelos de vida «secularistas e hedonistas».

Portanto, a mensagem do Vaticano, quanto a uma União Europeia pluralista assente nos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, continua a mesma: é tudo muito bonito desde que a ICAR mantenha as rédeas que comandam a sociedade, toda a sociedade.

6 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Um cheirinho a antigamente

O diário «A Capital» (site indisponível) traz uma reportagem sobre a Igreja de São Nicolau, na Baixa Pombalina, que reabriu ontem ao público, completamente remodelada e «com cheiro a novo». Apesar de reincidir nos mesmos produtos – a missa e a eucaristia – todos devemos estar gratos pela preservação do património nacional.

A notícia esclarece que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carmona Rodrigues, foi convidado para assistir à Celebração Eucarística presidida pelo experiente patriarca Policarpo, convite que aceitou, como o comprova a foto onde aparece acompanhado de vários membros do Governo entre os quais o ainda primeiro-ministro Santana Lopes, incapaz de faltar a uma festa.

As obras estavam orçadas em 418.377, 17 euros mas não se sabe o custo efectivo. A ICAR é mais rápida a divulgar milagres do que a prestar contas.

Para se avaliar a inflação, comparem-se os preços actuais com os que se praticavam em meados do séc. XIX, por muito pouco credível que seja o documento que, a seguir, se transcreve e não passe de uma bem conseguida piada:

Cópia da Factura que um de mestre de obras apresentou em 1853

pela reparação que fez na capela do Bom Jesus de Braga.

Por corrigir os 10 mandamentos, embelezar o Sumo

Sacerdote e mudar-lhe as fitas ...................... 170 reis

1 galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista ..... 95 »

Dourar e pôr penas novas na asa esquerda do Anjo da

Guarda .............................................. 90 »

Lavar o criado do Sumo Sacerdote e pintar-lhe as

suissas ............................................. 160 »

Tirar as nódoas ao filho de Tobias .................. 95 »

Uns brincos novos para a filha de Abraão ............ 245 »

Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo ao Diabo e

fazer vários concertos aos condenados ............... 245 »

Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora ............ 210 »

Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a lua ... 130 »

Compôr o fato e a cabeleira de Herodes .............. 55 »

Retocar o Purgatório e pôr-lhe almas novas .......... 355 »

Meter uma pedra na funda de David, engrossar a

cabeleira ao Saúl e alargar as pernas ao Tobias ..... 95 »

Adornar a Arca de Noé, compôr a barriga ao Filho

Pródigo e limpar a orelha esquerda de S. Tinoco ..... 135 »

Pregar uma estrela que caiu ao pé do côro ........... 25 »

Umas botas novas para S. miguel e limpar-lhe a

espada .............................................. 255 »

Limpar as unhas e pôr os cornos ao Diabo ............ 185 »

TOTAL ---------- 2.545 reis

6 de Dezembro, 2004 Ricardo Alves

Outro milagre da ciência

A excisão do clitóris é uma prática hedionda, legitimada por determinadas culturas islâmicas africanas. Apenas uma indiferença de origem racista explica que os poderes públicos tolerem a realização desta e doutras mutilações genitais em bairros degradados às portas de Lisboa. A ideia de que os pais não são proprietários dos filhos, e de que portanto não podem retalhar os órgãos sexuais dos filhos a seu bel-prazer, ou ainda não se generalizou, ou detém-se numa (imaginária) «fronteira étnica».

Felizmente, estão em desenvolvimento técnicas médicas que permitem a recuperação do clitóris (ver notícia na «Pública» de Domingo). Como é sabido, grande parte do clitóris encontra-se escondido debaixo da pele, e a excisão geralmente afecta apenas a parte visível. A operação de «reparação» consiste em «puxar para cima» parte do clitóris. Três em cada quatro mulheres declaram que recuperam a sensibilidade.

Para quem duvidasse, esta é mais uma prova de que os únicos «milagres» são científicos, e de que até alguns crimes de fundamentalistas islâmicos podem ser reparados. Parabéns, portanto, ao médico francês Pierre Foldès, que não por acaso tem recebido ameaças de morte vindas de fanáticos religiosos.

6 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Sim à eutanásia

A morte é, como diz José Saramago, uma injustiça, inevitável, todavia, quando se cumpre o ciclo biológico ou acidentalmente se interrompe. Não raro, o fim é acompanhado por sofrimento indizível, pela degradação que ultrapassa todos os limites, por um desejo irreprimível de abreviar a angústia, a dor e a agonia. E sem a mais remota hipótese de se tornar reversível. É nestas circunstâncias que a morte por compaixão, a morte doce, precisa de um quadro legal que, evitando o crime, proteja a vontade reiterada do paciente.

É aqui que, mais uma vez, as Igrejas querem impor normas de conduta universais que apenas deviam obrigar os crentes. E, como de costume, com a mesma desonestidade intelectual com que a ICAR encara o aborto, a hipocrisia é o seu forte.

Claro que se desligam as máquinas nos hospitais, claro que a figura do «abafador», referida por Miguel Torga, é ancestral, claro que há sempre um médico sensato que ordena que cessem as manobras de reanimação, claro que há um momento em que o próprio e os que mais o amam pedem a morte que liberte, recusam os artifícios que prolongam o sofrimento. Mas a ICAR finge ignorância.

Há já vários países que encararam o problema e produziram legislação equilibrada. A Suíça é um deles, onde na última quarta-feira uma britânica com uma doença incurável morreu com ajuda médica em Zurique, depois de ter travado uma batalha legal em Inglaterra para se deslocar à Suíça, onde a lei permite a eutanásia.

É urgente que Portugal produza legislação que permita a morte com dignidade quando toda a esperança se apagou e o próprio recusa a vida.

5 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

O Papa e a Imaculada

À falta de outra ocupação, vários teólogos católicos estão reunidos, de 4 a 7 de Dezembro, na Universidade Pontifícia Lateranense no XXI Congresso Mariológico Mariano Internacional, organizado pela Academia Pontifícia Mariana Internacional.

O tema e os termos são bizarros para incréus: «Maria de Nazaré acolhe o Filho de Deus na história», mas a ICAR confiou a orientação destas discussões ao Cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, que preside ao Congresso em nome do Papa.

Há nesta maratona teológica dois objectivos, pelo menos, que constituem uma obsessão de JP2:

– Reafirmar a virgindade de Maria (uma mentira muitas vezes repetida…)

– Reabilitar o Papa Pio IX (autor do dogma da virgindade de Maria).

Pio IX, o último papa detentor de poder temporal, mandou fuzilar patriotas garibaldinos, construir os muros do gueto de Roma em 1850 e encorajou os padres a baptizarem em segredo crianças judias retiradas aos pais; condenou a separação da Igreja do Estado, excomungou os que se opuseram ao poder temporal dos papas, os liberais, os maçons, os socialistas e os comunistas. Enfim, foi um santíssimo patife – mesmo para um papa católico.

Pio IX era um anti-semita primário que chamava cães aos judeus e deixou marcas culturais que tiveram o seu epílogo no holocausto perpetrado por nazis e fascistas em que pereceram seis milhões de judeus.

João Paulo II, quiçá sensibilizado com a encíclica Sillabus errorum onde Pio IX afirma que a Igreja é «inconciliável com o progresso e a civilização», cismou na sua reabilitação. Começou por lhe confiar um milagre e fê-lo curar, sem intervenção cirúrgica, uma carmelita que fracturara uma rótula, a troco de duas novenas que a freira lhe dedicou. Depois, em face do prodígio, decidiu beatificá-lo. Já se fala na encomenda doutro milagre para ser canonizado. Mais um santo à altura da ICAR.

4 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

Apologia da abstinência

O padre Feytor Pinto, presidente da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde, durante o 18º Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, afirmou que «a Igreja não está suficientemente atenta ao problema da sexualidade e afectividade humana” e observou que existe algum «desconforto» nos sectores católicos em abordar estes temas. Não é preciso ser um conhecedor profundo da axiologia da Igreja Católica para concluir que não se trata apenas de «desconforto», mas sim de completa condenação de tudo o que esteja com uma sexualidade e afectividade carnais.

De acordo com o padre, este alheamento da ICAR levou a que os principais promotores de campanhas de luta contra a sida sejam organizações não-governamentais que defendam o uso do preservativo como única forma de combater o contágio pelo VIH.

«O drama é que quando as pessoas ouvem falar em sexo seguro pensam apenas na protecção exterior, com o uso do preservativo» e preferem «ignorar a necessidade de mudança dos comportamentos», declarou Feytor Pinto. «Em vez de contrariar os comportamentos, tenta-se eliminar as suas consequências», frisou, lastimando que os organismos de prevenção da sida não falem em abstinência sexual, monogamia ou fidelidade, preferindo não olhar à «prostituição dos valores» em que as relações vivem. Feytor Pinto não fez mais do que seguir as orientações do Vaticano, segundo as quais a epidemica é resultado de uma «imunodeficiência de valores morais e espirituais» e que esta doença não é mais do que uma «patologia do espírito» que deve ser combatida com o «ensino do respeito pela valores sagrados da vida e uma correcta prática sexual»

Nada de novo, então, se passa no seio da Igreja quanto ao combate contra a sida. Para a ICAR a única maneira de combater o vírus é ignorar a necessidade inerente ao ser humano de se relacionar sexualmente com o próximo, independentemente de procurar ou não um compromisso a longo prazo. A defesa da abstinência é contra-natura e é hipócrita.

É de uma irresponsabilidade brutal, assassina até, a posição da ICAR sobre a luta contra o vírus da sida. Estima-se que, actualmente, 36,1 milhões de pessoas estejam contagiadas. Em 2000, foram infectadas cerca de 5,3 milhões de pessoas, sendo 600 000 crianças.

Desde que a epidemia é conhecida, o vírus matou 21,8 milhões de pessoas.


Em 2003 3 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas com o VIH.

Calcula-se que 51% da população mundial infectada com VIH/SIDA (mais de 20 milhões) são mulheres e mais de 60% dos jovens seropositivos são mulheres.

Diariamente, ocorrem 16 000 novas infecções, 55% são mulheres.

E, perante estes dados, vemos uma das organizações que tem mais influência nas sociedades a propagandear que o preservativo não é um meio seguro para combater o contágio. Tudo em nome da manutenção de valores hipócritas que nem os próprios membros da hierarquia da ICAR seguem.

4 de Dezembro, 2004 Palmira Silva

O quadro negro do desenho inteligente

Apesar da razão e da ciência,
os maiores trunfos da humanidade,
condescende em ilusões e práticas mágicas
que reforçam o teu auto-engano,
e perder-te-às incondicionalmente!

Mefistófeles no Fausto de Goethe

Nas religiões em geral e no Catolicismo em particular, a dúvida deve ser evitada, enquanto a fé é nutrida e cultivada. A história de São Tomé é uma advertência contra a procura de confirmação experimental, de provas de «milagres» que contrariam as leis da natureza. É exaltada a fé sem restrições espúrias como sejam as evidências materiais e científicas.

Para defender a fé, o cristianismo destruiu bibliotecas, repositórios do conhecimento de civilizações «pagãs», queimou livros de ciências «profanas» em orgias de fé, deixando o mundo cristão mergulhado na ignorância, na superstição e no fanatismo. A Idade Média correspondeu a um período negro na História das civilizações Ocidentais, um período de obscurantismo, do qual o mundo cristão só saiu quando foi redescoberta a Cultura Greco-Romana. Uma Ciência, uma Arte e uma Filosofia novas começaram a despontar, sob os olhos aterrorizados da Religião que temia perder o seu domínio despótico e tirano, mantido pela força da espada, fogueira ou afins, durante séculos.

A disputa do cristianismo contra a Ciência pela posse da verdade é assim História antiga. No Ocidente, o embate mais mediático e conhecido foi o caso Galileu. Essa batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou Galileu a renegar as suas teses para não sofrer o destino de Giordano Bruno: ser imolado pelo fogo em nome da pureza e verdade da fé. Mas o futuro dessa disputa seria diferente: pouco a pouco, a religião perdeu a autoridade para explicar o mundo. Quando, no século XIX, Darwin lançou a sua teoria sobre a evolução das espécies, contra a criação divina, o fosso entre ciência e religião já era intransponível.

No post «Os Dinossauros de Deus» abordei o princípio antrópico. Este é devotado ao «Desenho Inteligente», DI, mais uma suposta arma final apresentada pelos crentes numa batalha que foi perdida no século XVII: a batalha para descrever a Natureza com base nas Escrituras ou em termos de causas finais (princípio teleológico) e causas eficientes.

Um dos fundadores do movimento DI foi o professor de direito da Universidade de Berkeley, Philip E. Johnson, autor do livro «Darwin on Trial», que se descreve como um cristão conservador criacionista, que acredita que o evolucionismo é incompatível com a crença num Deus omnipotente, criador do céu e da Terra e do Homem à sua imagem. Ou seja, o distinto jurista cunha a Evolução como uma filosofia (fundamentalista) ateísta e naturalista, e afirma que «Ser um cientista não é necessariamente uma vantagem, quando lidamos com um tópico tão abrangente como a evolução, que se entrelaça com muitas disciplinas científicas e também envolve os toques da filosofia.», ou seja, um juiz será, também necessariamente, o mais capacitado para opinar (negativamente) sobre evolução que um cientista! E estes deveriam esperar por autorização «superior» das instâncias religiosas antes de ousarem explicar algo que seja já alvo de uma explicação religiosa.

Claro que esta tentativa de afirmar os cientistas incapazes de descrever a Natureza, pelo facto de descartarem causas sobrenaturais e de desígnio insondável na explicação de fenómenos problemáticos para as religiões, não é muito convincente e assim o passo seguinte na defesa de um «arquitecto supremo» foi a arregimentação de cientistas para a causa.

Os dois cientistas mais activos no DI são Michael Behe, autor de «Darwin’s Black Box» (A Caixa Preta de Darwin), e William Dembski, autor de «Intelligent Design: The Bridge between Science and Theology» (Desenho Inteligente: A Ponte entre a Ciência e a Teologia). Dembski e Behe são membros do Discovery Institute, um instituto de «pesquisas» de Seattle patrocinado por fundações cristãs.

William Dembski é um matemático que alega poder provar que a vida e o universo não poderiam ter acontecido por acaso e por processos naturais e, como tal, são o resultado do projecto inteligente de Deus. Também afirma que «a solidez conceptual de uma teoria científica não pode sustentar-se distanciada de Cristo» o que ilustra a motivação (e solidez) das suas teses.

Já Michael Behe restringe-se aos “sistemas irredutivelmente complexos,” sistemas que não poderiam funcionar caso faltasse apenas uma das várias partes. “Sistemas irredutivelmente complexos… não podem evoluir de uma maneira Darwiniana,” afirma, porque a selecção natural opera na forma de pequenas mutações. Logo, para este autor, o desenho inteligente deve ser responsável por esses sistemas irredutivelmente complexos. Na realidade, alguns dos supostos sistemas complexos que Behe utiliza como argumento, por exemplo o flagellum bacteriano, já foram explicados, ou seja, o seu principal argumento é baseado não só na sua ignorância do trabalho de outros investigadores como na assunção que a Natureza é limitada pela imaginação de Behe.

As supostas «descobertas» destes cientistas não foram publicadas em qualquer revista ou editora científicas, apresentadas à comunidade científica ou sujeitas ao julgamento dos pares. Pelo contrário, a refutação das ideias disparatadas de Behe por um evolucionista (por acaso mencionado no livro de Behe como uma «testemunha» de defesa ) mereceu um artigo na Nature (apenas acessível a subscritores). E respostas de cientistas conhecidos e respeitados na comunidade científica, como Peter W. Atkins ou H. Allen Orr que recomendo. Assim como o artigo de Richard Dawkins sobre a indevida imiscuição da religião na ciência.

O conflito entre a visão mecanicista da Natureza e a visão teleológica que se delineou a partir do século XVI resolveu-se per se. A ciência afirmou-se e progrediu em parte porque os cientistas tentaram descrever os fenómenos naturais sem recurso a um propósito final. O Deus de Leibniz, cuja existência é perfeitamente demonstrável, que contém em si todas as verdades eternas e necessárias, tornou-se assim uma hipótese desnecessária para a ciência.

3 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

A escola deve ser laica

A obsessão das Igrejas pelo ensino não é mais do que a tentativa de recuperação de uma arma política para controlar as consciências, promover o proselitismo e exercer o poder. A ICAR conseguiu em Portugal uma preponderância que compromete a laicidade. A mais escandalosa concessão, na escalada meticulosa e metodicamente preparada, é a Universidade Católica, com direitos e regalias de que mais nenhuma universidade privada goza. São excessivos os estabelecimentos dominados pela ICAR, desde o ensino pré-escolar ao superior, sem descurar os numerosos lares que lhe servem de apoio. O poder religioso só tem sido limitado pelas dificuldades de recrutamento do clero, compensado por uma legião de prosélitos dispostos a servir a ICAR.

A tradição ancestral do monopólio das igrejas nacionais na educação pública rompeu-se com a separação da Escola e da Igreja, que se iniciou em finais do séc. XVIII e se prolongou até aos princípios do séc. XX, umas vezes de modo gradual, outras de forma violenta. Foi este percurso histórico que quebrou o monopólio religioso que as igrejas em geral, e a ICAR em particular, se esforçam por recuperar, sem esquecer o carácter patológico das madraças islâmicas.

A ideia da separação entre a Igreja e o Estado está intimamente ligada à história política europeia e não é, segundo hoje se propala, uma singularidade francesa. Começou na Inglaterra de John Locke, com a Carta sobre a Tolerância (1689) onde se pedia já que a Igreja fosse completamente separada do poder político, pedido formulado em latim (Epistola de Tolerantia no seu nome original latino) para que as barreiras linguísticas não limitassem a difusão da pretensão através de toda a cristandade. Antes, já John Locke empreendera a refutação do direito divino dos reis e do absolutismo régio.

A convicção de que a descrença conduzia à depravação do indivíduo e à ruína social era o argumento para legitimar a educação confessional, torná-la obrigatória e justificar a discriminação e perseguição dos que enjeitavam a autoridade eclesiástica. O progresso da humanidade está ligado à emancipação da tutela religiosa. A progressiva secularização do ensino e da assistência estão na base das modernas sociedades democráticas. É por isso que a ICAR trava uma luta desenfreada contra o laicismo com pressões intoleráveis sobre os governos dos países onde se instalou.

A separação da Igreja e do Estado, em França, comemora no próximo ano um século. Da Espanha à América latina os povos pretendem romper as grilhetas impostas pela ICAR. Cabe aos livres-pensadores ser solidários nessa luta de emancipação e combater a vocação totalitária que parece ter recidivado no cristianismo (não apenas na ICAR) por um estranho contágio da esquizofrenia islâmica.

Não há países livres onde o ensino e a saúde são monopólio da Igreja. Não há democracia onde esta domina o Estado. Não há felicidade onde os padres controlam a sociedade.

2 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

Regresso ao passado

Cristãos, muçulmanos e judeus juntaram-se em Doha, no Qatar, na defesa da «família tradicional» e aprovaram um documento, a «Declaração de Doha», onde se sublinha que «a família é a célula natural e essencial da sociedade», exortando que os governantes «promulguem e apliquem políticas que reforcem a estabilidade do casamento». Não se sabe é qual é o conceito exacto de família tradicional. Será aquela em que a mulher passa do jugo do pai para o do marido? Em que a mulher está confinada às lides da casa? Em que a principal utilidade da mulher é ter filhos e servir de saco de pancada do marido? Em que os filhos estão submetidos à vontade do pai? Isso é que são valores tradicionais, nada dessas tretas de igualdade e de direitos.

A «Declaração de Doha» sublinha a importância de «atender às normas religiosas e morais que contribuem para a estabilidade cultural e o progresso social», progresso esse que não se tem notado nos últimos tempos e que tem andado disfarçado de retrocesso na defesa de direitos, liberdades e garantias.

O cardeal Alfonso López Trujillo, presidente do Conselho Pontifício para a Família e representante do Vaticano neste evento, e que proferiu uma conferência sobre «A complementaridade do homem e da mulher: aproveitar os talentos de mães e pais» (especialmente os talentos culinários e parideiros de mães), afirmou que a família é uma instituição anterior ao Estado, defendendo que «nenhum governo tem o direito de mudar a definição de família ou de matrimónio». Ou seja, os Estados soberanos, como na Idade Média, têm de se submenter a conceitos não-jurídicos de matrimónio fundados em concepções morais e religiosas que não servem a nenhum Estado que se quer de Direito.

Não se ficando por aí, Trujillo declarou que «em todas as culturas e religiões há uma verdade presente: a família está baseada no matrimónio, o único lugar válido e apropriado para o amor conjugal». Não recebem, assim, a bênção todas as relações para-familiares como as uniões de facto que, actualmente, os ordenamentos têm vindo a reconhecer como situações dignas de tutela jurídica.

Parece que o regresso a uma família tradicional implica o regresso da mulher a um papel subalterno de cozinheira e parideira, ao desaparecimento de uma noção contratualista de casamento , à proibição do divórcio e à restauração de costumes tão interessantes como a poligamia e a lapidação feminina.